|Centenário da Revolução de Outubro

Entrevista a Levy Baptista, presidente do Conselho Directivo da Associação Iúri Gagárin

«Se malham na Revolução de Outubro, é porque ela está aí muito presente»

Para conhecer melhor a associação que sucedeu à Associação Portugal-URSS e saber mais sobre as iniciativas que tem estado a promover no âmbito das comemorações do centenário da Revolução de Outubro, o AbrilAbril falou com o presidente do seu Conselho Directivo, Levy Baptista.

Levy Baptista, presidente do Conselho Directivo da Associação Iúri Gagárin, durante a entrevista com o 'AbrilAbril'
Créditos

No dia 27 de Outubro, o Auditório do Liceu Camões, em Lisboa, foi pequeno para todos os que se quiseram participar na Festa do Centenário da Revolução de Outubro organizada pela Associação Portuguesa de Amizade e Cooperação Iúri Gagárin (AIG).

Para conhecer melhor a associação que sucedeu à Associação Portugal-URSS e saber mais sobre as iniciativas que tem estado a promover no âmbito das comemorações do centenário da Revolução de Outubro, o AbrilAbril falou com o presidente do seu Conselho Directivo, Levy Baptista.

Recentemente, no Público, afirmava-se que a Revolução Outubro era vista cada vez mais como um «acidente anacrónico» cujo lugar convém rejeitar. Podia comentar.

Há aí uma verdadeira campanha contra a Revolução de Outubro. Mas a gente já sabe como é que é – os casos sucedem-se, as distorções.

Enquanto eu digo «Nós estamos a comemorar o centenário da Revolução, etc.», na generalidade o centenário não está a ser comemorado, bem pelo contrário. Isto é um dos chamados «temas muito fracturantes». Dizem «Ah, isto já foi chão que deu uvas, já não se liga» – e não é nada disso.

Os que malham na Revolução de Outubro, se muito malham é um sinal, é porque ela está aí muito presente, porque as suas ideias continuam muito vigentes.

Fui muitas vezes à União Soviética e vi perfeitamente o muito que lá se conseguiu, o que lá se fez de diferente. Hoje, procura-se descontextualizar as coisas, desvalorizar o que lá se alcançou.

«Fui muitas vezes à União Soviética e vi perfeitamente o muito que lá se conseguiu. Hoje, procura-se desvalorizar o que lá se alcançou.»

Algumas figuras centram-se na desvalorização da figura de Lénine, em dizer que «Lénine foi o mau da fita», e a mim, com toda a informação que possuo, o que li e vi, incumbe-me contrariar toda essa informação que nos procuram impingir. Por isso tive a obrigação de escrever dois artigos, um deles para a Seara Nova. Nele tracei todo o panorama, todo o papel decisivo que o Lénine teve na Revolução. Ele era teimoso; era evidente que ele era teimoso. Ele andava metido numa coisa que nunca tinha havido. E ele é que conduziu aquilo, isso é inegável. A figura dele é indissociável da Revolução Socialista de Outubro. Nos últimos momentos ele disse «Isto é assim! E vocês vão ver que é assim». E teve razão.

Isto é uma figura a abater. Porque, ainda agora, ele é uma figura histórica.

É uma figura a abater e esta campanha toda que se constrói contra a Revolução de Outubro e os seus ideais, tudo o que ela representou – pode ser por medo? Pode ser uma campanha construída por medo?

Do Putin, da Rússia – apesar de não saberem nada do que aquilo é, um sexto da Humanidade, com uma dimensão geográfica brutal. Parece-me que há para aí um pavor – «cuidado, que eles podem vir para aí outra vez». Se não tivessem medo, estavam calados. Porque a melhor maneira de combater alguma coisa é não falar nela. Não se fala, não existe. Agora, quando se fala, quando se fala mal e, sobretudo, desta maneira, distorcendo, é porque há um problema, que incomoda.

Falou das suas viagens à URSS. Como é que surgiu a sua ligação à Associação Iúri Gagárin (AIG)?

Foi logo a seguir ao 25 de Abril. Houve um grande movimento. Era uma grande novidade. Antes, era muito difícil ir aos países socialistas. Em 1976, tive ocasião de ir a Moscovo e à Arménia. E, a partir daí, fiquei sempre ligado à associação. Sou um sobrevivente, sou da fundação.

A AIG sucedeu à Associação Portugal-URSS. Para além da Rússia, mantêm-se as relações de amizade com países que eram antigas repúblicas da União Soviética?

Isso tudo mudou, levou uma grande volta. A Associação Portugal-URSS fazia parte de um grande movimento centrado na paz. Havia uma Casa da Amizade em Moscovo. Era uma maneira de organizar a defesa da paz e a cooperação.

Quanto ao nome, pensou-se no Tolstoi, mas acabou por se escolher o Gagárin, por uma questão de abrangência. É que ele andou lá por cima, no espaço. [Riso] É de todos.

A URSS deixou de existir, mas há aí muitos eslavos das antigas repúblicas, que estão integrados em associações, têm escolas para os miúdos e desenvolvem actividades, muitas das quais culturais. Eles têm uma apetência cultural muito grande – mas não é só tradicional, é que com a União Soviética isso foi muito ampliado.

«Os eslavos têm uma apetência cultural muito grande – mas não é só tradicional, é que com a União Soviética isso foi muito ampliado.»

É preciso perceber que a União Soviética deu estrutura àquelas repúblicas da Ásia Central, que nem alfabeto tinham – e não foi uma questão de lhes impor o russo, foi a de criar alfabetos próprios, no respeito pelos povos, pelas várias etnias. Houve um respeito pelas nacionalidades.

Quanto às escolas eslavas que aqui há, elas têm muita gente que não é da Rússia – há muitos da Ucrânia também. As relações com as outras ex-repúblicas são mais complicadas.

O seu conhecimento da União Soviética, as suas viagens resultam de...

Nós, a associação daqui, tínhamos um protocolo com eles – eles tinham com toda a gente – e todos os anos fazíamos os dias de Portugal na URSS e os dias da URSS em Portugal. Era uma forma de intercâmbio. Eles todos os anos escolhiam uma república, organizavam um programa e vinham cá. Nos dias de Portugal na URSS, fui lá várias vezes, mas também muitas outras vezes, porque era preciso assinar protocolos.

Nós íamos daqui – geralmente designávamos uma região, Santarém, Coimbra, etc. – e desenvolvia-se um programa que permitia conhecer as regiões. Por vezes, também havia geminações de cidades. Enfim, eram programas – deles e nossos – que permitiam conhecer melhor as regiões, as repúblicas, os povos. Era assim que funcionava.

Que objectivos tem a associação actualmente?

Os nossos objectivos estatutários são os mesmos. As nossas relações são essencialmente de carácter cultural. Damos todo o apoio que nos pedem às mais variadas iniciativas, como ainda agora aconteceu no Folio, em Óbidos, e os artistas estão sempre dispostos a colaborar connosco. A Festa do Centenário [a 27 de Outubro] é disso um exemplo.

«Estamos sempre disponíveis para ajudar»

No que respeita à Revolução de Outubro, gostaríamos que nos falasse sobre o modo como a AIG se envolveu, sobre as iniciativas que promoveu.

Estamos sempre disponíveis para ajudar todas as organizações que organizam actividades, iniciativas relacionadas com as comemorações do centenário.

Fora desse âmbito, em Maio, demos um grande contributo para a Festa da Vitória e da Paz, que se realizou em Lisboa. Este é o tipo de coisas que nós fazemos.

No âmbito mais específico da Revolução de Outubro, convém notar que nós temos qualquer coisa na ordem dos 4000 filmes, que estão na Cinemateca, instituição com a qual temos nós temos uma excelente colaboração. E agora foi feito um programa sobre Outubro – até veio cá o correspondente da Cinemateca russa. Nós temos lá depositados esses nossos filmes. E participámos num ciclo organizado pela Cinemateca.

Temos uma excelente biblioteca, a Leão Tolstoi, que agora está na Faculdade de Letras. Como não tínhamos possibilidade de manter tudo aquilo, oferecemos à Faculdade de Letras, que tem sido impecável.

Na área das publicações, a AIG recuperou artigos da revista Paz e Amizade relacionados com a Revolução de Outubro.

Sim, sim... Nós tínhamos essa revista e recuperámos vários artigos que mostram a actualidade da Revolução e as transformações que gerou.

Vimos na vossa página que estão a produzir um documentário sobre estudantes portugueses que fizeram os seus estudos na União Soviética...

Isso é uma coisa que o Paulo Guerra e o Edgar Feldman estão a fazer – com muito entusiasmo. Tem a ver com o facto de muita gente lá ter estudado – e ainda se continuam a reunir.

No trailer, na apresentação já disponível do documentário, o Manuel Rocha afirma que faltavam toalhas mas que, em contrapartida, em termos de cultura não faltava nada.

Isso é como as esferográficas, que não havia ou às vezes eram de má qualidade, mas havia pianos. E trazíamos discos praticamente de borla. Ia-se ao Bolshoi. Os museus estavam cheios. E essa herança cultural mantém-se na actualidade. Os museus continuam cheios. Eles tinham outra educação – e continuam a tê-la. Herdaram isso, essa formação cultural. Os livros, os discos eram baratíssimos. Os espectáculos estavam cheios... De malta nova. É uma mentalidade diferente. Liam e lêem muito.

«Os museus estavam cheios. E essa herança cultural mantém-se na actualidade.»

Mas, é preciso frisar, o que era essencial nunca falhou, nunca faltou. Por isso, creio que houve uma má gestão de imagem. Ou que não houve uma verdadeira preocupação com isso.

Falámos aqui de várias coisas, iniciativas – o ciclo de cinema, a Paz e Amizade, o documentário... E a festa? É encarada pela associação como ponto culminante das iniciativas em torno da Revolução de Outubro?

É. E foi importante, para contrariar a maré. Se não o fizermos, com tudo o que lemos todos os os dias por aí, ficamos sozinhos em campo.

Vimos que várias iniciativas que não são organizadas pela associação são divulgadas pela AIG, nomeadamente a que vai ter lugar na FLUL ou Museu de História Natural...

E não nos limitamos a divulgá-las. Damos todo o apoio necessário, apoiamos em tudo o que nos é possível.

«Semente de transformação do Mundo»

Voltando ainda à Festa do Centenário, na intervenção que então proferiu afirmou que «os revolucionários de Outubro quiseram lançar à terra a semente da transformação do mundo». Que frutos resultaram dessa semente?

A Revolução de Outubro vem na sequência da «fúria do mar» da revolução francesa de 1789 e do «assalto ao céu» da Comuna. Essa semente foi lançada e continua. Tem de haver uma alternativa ao mundo actual e a alternativa começou lá.

A história da transformação do mundo, estas ideias morreram? Não morreram. Um mundo destes, com as suas desigualdades e injustiças, tem de ser mudado.

A Revolução não foi nenhum piquenique. E todos se permitem dizer o que bem entendem. Eu vivi o 25 de Abril e aquilo foram vários cursos universitários ao mesmo tempo. Quem não andou a dormir na forma aprendeu muito, ganhou espírito crítico, sobretudo em relação à informação.

«A história da transformação do mundo, estas ideias morreram? Não morreram.»

Escusam de me vir contar histórias sobre o que foi a Revolução de Outubro, o que foi e não foi, a Guerra Civil, ou, na actualidade, sobre a Venezuela – «ah, passa-se isto e aquilo»! No 25 de Abril, certa imprensa falava no «sangue nas valetas em Lisboa».

Por isso, hoje, quando me vêm com histórias sobre isto e aquilo, digo «não me contem histórias». Podem vir vender essas coisas dos Antónios Barretos e das Teresas de Sousas e essa tralha. É que não emprenho pelos ouvidos. O 25 de Abril ajudou-me a criar essa resistência, a tirar sempre a bissectriz, a estar sempre alerta. Não me é fácil aceitar essas histórias.

Também na festa, disse que os princípios da Revolução continuam válidos, daí a necessidade de nós os celebrarmos, os comemorarmos.

Sim, claro. Se eles não importassem, eu nem sequer me chateava, não estava a defendê-la, a escrever textos em que pondero, peso as palavras.

Gostávamos de ter o seu ponto de vista sobre a Revolução quanto aos avanços que implicou.

A Revolução foi um incómodo e continua a incomodar. O mundo mudou, e não voltou tanto atrás como nos querem fazer crer. Para pensarmos em avanços, para nós, portugueses, basta ter em conta o que foi o fim das colónias, o que foi o fim do império. Provavelmente tudo isto acabaria por acontecer, mas não tão depressa sem a Revolução de Outubro.

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