Há 36 anos, com o apoio de França, Blaise Compaoré promoveu um golpe de Estado que derrubou o regime progressista e assassinou o presidente Thomas Sankara, militar socialista e anti-imperialista. Em 2014, a ditadura de Blaise Compaoré caiu. Hoje, o Burkina Faso é um dos Estados que na região do Sahel romperam com as ingerências de França na política interna destes países. À frente, está o jovem militar Ibrahim Traoré.
Qual é a imagem que os burquinabês têm actualmente de Thomas Sankara?
Essa revolução foi interrompida por uma ditadura que durou 27 anos. Temos a imagem de um Thomas Sankara que já não é apenas burquinabê, mas universal. Sankara é, sem dúvida, o ícone da nova geração africana na luta contra toda a dominação imperialista e neocolonial. Nós, burquinabês, conservamos a imagem de Sankara como um homem íntegro e dedicado a libertar o seu povo do jugo colonial e a mostrar que a única forma de ser livre é aceitar quem somos e confiar nos nossos próprios meios. Apreciamos a imagem de um presidente simples com grandes ideias do qual temos saudades.
Celebramos o julgamento sobre [o que aconteceu a] Sankara e aos seus camaradas assassinados a 15 de Outubro de 1987, porque é um acontecimento histórico, um antes e um depois para as gerações futuras de dirigentes e, sobretudo, uma demonstração de que sem justiça não há perdão nem reparação e que nenhum crime deve ficar impune. A perda prematura de Sankara deixou as suas políticas inacabadas e o seu assassinato condenou o processo revolucionário. A sua morte prematura foi uma grande perda para a humanidade, mas o seu legado está hoje mais vivo do que nunca.
E quais foram as consequências do regime de Blaise Compaoré para o Burkina Faso?
Blaise Compaoré governou com mão de ferro durante 27 anos e dedicou-se a apagar todas as referências a Sankara, mas, pior, tentou apagar a sua memória sem sucesso. Durante a ditadura de Blaise, o Burkina tornou-se num país corrupto às mãos de uma máfia de gangsters fantoches do Eliseu [residência oficial dos presidentes franceses], sendo Blaise o favorito da metrópole e o principal aliado de França, cumprindo as ordens de Paris.
Blaise liderou e esteve envolvido em muitos dos conflitos na sub-região e esteve envolvido nas rebeliões da Libéria, encenou e apoiou a rebelião na Costa do Marfim e negociou com terroristas no Mali, etc.
Desde 2014, quando a revolta popular derrubou Compaoré, houve vários golpes militares e a situação política é instável. A que se deve tanta instabilidade?
A revolta popular de 2014, liderada pelas Organizações da Sociedade Civil (OSC) e por alguns líderes da oposição, foi uma demonstração de que a situação era a gota de água para o povo burquinabê face ao esgotamento e à decadência de um regime em queda livre. A revolta popular de 2014 marcou o fim do regime de Blaise Compaoré porque o povo burquinabê estava cansado da má governação, da impunidade, da corrupção, da insegurança, das crises económicas e do desespero de uma juventude frustrada.
Os golpes de Estado são o resultado da degradação da situação económica e política, mas sobretudo da insegurança e da perda de soberania nacional devido ao terrorismo desde a queda de Kadhafi. Em 2015, o general Gilbert Diendéré, antigo braço direito de Blaise Compaoré, encenou uma tentativa falhada de golpe de Estado contra o governo de transição liderado por Michel Kafando com o único objectivo de restaurar o antigo regime.
A 24 de Janeiro de 2022, Paul-Henri Sandaogo Damiba, um tenente-coronel que tinha combatido a subversão jihadista, derrubou o governo civil democraticamente eleito do Burkina Faso de Roch Marc Christian Kaboré. A 30 de Setembro de 2022, um jovem capitão do exército, Ibrahim Traoré, deu um novo golpe de Estado, acusando justamente o seu antecessor de ter falhado na sua luta contra a insegurança. As razões dos dois últimos golpes de Estado no Burkina Faso são idênticas, excepto no caso do general Gilbert Diendéré, cujo único objetivo era restaurar o antigo regime de Blaise.
«Os golpes de Estado são o resultado da degradação da situação económica e política, mas sobretudo da insegurança e da perda de soberania nacional devido ao terrorismo desde a queda de Kadhafi.»
Uma das principais críticas dirigidas ao último presidente democraticamente eleito, Roch Marc Christian Kaboré, foi a sua incapacidade para combater a violência extremista que gangrenava o país, as grandes ameaças à segurança, as incessantes catástrofes humanitárias e os milhões de jovens sem oportunidades, a deterioração da situação de segurança com a crescente violência jihadista e a incapacidade do governo para fornecer recursos e protecção ao exército.
O tenente-coronel Damiba, que estava no poder há oito meses, foi também acusado de ter mantido o mesmo sistema de segurança que falhou nos governos anteriores. O mal-estar foi crescente no seio do próprio exército nacional e, sobretudo, nas forças especiais que integram a unidade Cobra, devido ao assédio constante dos grupos jihadistas, nomeadamente o JNIM (Grupo de Apoio ao Islão e aos Muçulmanos) e os seus aliados locais.
Qual é o papel dos atentados do Estado Islâmico e da Al-Qaeda no contexto actual?
O terrorismo é uma ameaça real em toda a região do Sahel. O resultado mais evidente são os golpes de Estado no Mali, no Burkina Faso e, mais recentemente, no Níger. Alguns governos estão a diversificar os seus parceiros comerciais e a presença das milícias [do grupo] Wagner demonstra a incapacidade dos governos para vencer a guerra contra o terrorismo. O terrorismo está a mudar o contexto geopolítico com a emergência de novos parceiros comerciais (Rússia, China, Arábia Saudita, Turquia, etc.). O terrorismo abriu um grande fosso nas relações entre os países do Sahel e a França com a emergência de novos aliados. O debate sobre a soberania está em cima da mesa e a presença de tropas francesas é questionada. As relações com a França não são as melhores com duras críticas à política francesa em África.
«O debate sobre a soberania está em cima da mesa e a presença de tropas francesas é questionada.»
Critica-se também a gestão e o posicionamento de algumas organizações continentais como a CEDEAO [Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental] e a União Africana na resolução de conflitos internos (golpes constitucionais e militares, perda de soberania devido ao terrorismo, rebeliões, relações com a França, soberania económica).
Recordemos que um em cada dez burquinabês está deslocado e que mais de três milhões sofrem de fome, a que acresce o facto de os ataques terroristas terem aumentado 76% no primeiro semestre de 2022. Nestes sete anos, mais de sete mil pessoas foram mortas e cerca de dois milhões de pessoas, 10% da população, fugiram das suas casas, de acordo com a agência da ONU para os refugiados (ACNUR).
Existe apoio popular ao capitão Ibrahim Traoré?
No seu discurso de tomada de posse, Ibrahim Traoré apelou a uma «mobilização patriótica e popular» e prometeu pôr termo à insegurança provocada pelo terrorismo jihadista, uma das razões que justificou o golpe de Estado. Ibrahim Traoré não é um novo Sankara, mas lembra-nos muito Thomas Sankara.
«Recordemos que um em cada dez burquinabês está deslocado e que mais de três milhões sofrem de fome, a que acresce o facto de os ataques terroristas terem aumentado 76% no primeiro semestre de 2022.»
É o chefe de Estado mais jovem do mundo, que fez um discurso pan-africanista na Cimeira Rússia-África e teve a coragem de dizer algumas coisas aos líderes africanos que seguramente nos fez recordar Sankara. O seu discurso na Cimeira Rússia-África agradou-nos e deu-lhe mais popularidade e reconhecimento no continente. Alguns consideram-no um discurso pan-africanista ao estilo de Thomas Sankara como quando perguntou como era possível que África, «com tanta riqueza no seu solo, com uma natureza generosa, água e sol em abundância, seja ainda hoje o continente mais empobrecido, um continente tão faminto que alguns dos seus dirigentes percorrem o mundo a pedir cereais?»
Traoré nomeou Kyélem de Tambèla como primeiro-ministro. Tambèla afirmou que o Burkina Faso não podia desenvolver-se fora da via lançada por Thomas Sankara. O pensamento de Sankara é profundamente anti-imperialista, africanista e socialista. Parece-lhe que o governo burquinabê está a tentar seguir esse caminho, pelo menos em parte?
O primeiro-ministro Kyélem de Tambèla era estudante em França nos anos 80. Tambèla fundou uma secção do Comité de Defesa da Revolução (CDR) em Nice, em Côte-d'Azur, para defender e apoiar financeiramente a luta revolucionária no estrangeiro travada por Sankara. Durante este período, organiza-se também com grupos de esquerda: A União Nacional dos Estudantes de França (UNEF) e a União dos Estudantes Comunistas. Antes de entrar para a política, Tambèla desenvolveu uma carreira como advogado e depois como personalidade da televisão. Ganhou popularidade junto do público devido ao seu carácter franco e às suas fortes críticas aos excessos governamentais.
Penso que é prematuro adivinhar o pensamento ideológico deste governo mas o povo burkinabê tem a sensação de que este governo está empenhado em acabar de uma vez por todas com a insegurança gerada pelos ataques terroristas, que é a questão que mais preocupa qualquer burkinabê.
O discurso do governo de transição é coerente, no sentido em que pretende uma Burkina livre de terrorismo e tudo o que o impeça será tratado como tal. Ao contrário de outros governos do Sahel, o governo do Burkina apela aos jovens para que se juntem aos VDP (Voluntários para a Defesa da Pátria) para acabar com o terrorismo.
Uma das características das rebeliões na região do Sahel é o seu carácter profundamente anti-francês e anti-europeu. Como é que a França e a Europa estão a impedir o desenvolvimento destes países?
Há muitas razões, mas não acredito num sentimento anti-francês ou anti-europeu. O que está a acontecer é uma revolução, é um protesto legítimo contra a política africana da França. É uma política de contestação cada vez mais crua porque tem diante a sordidez aguda. O que está a acontecer no Sahel é uma revolução.
«A política da União Europeia, a chamada "Europa Fortaleza", deixa morrer cinco pessoas por dia no Mediterrâneo, ao mesmo tempo que assina acordos de pesca com países como o Senegal, deixando morrer sem assistência os mesmos pescadores senegaleses que, não podendo viver da pesca, se aventuram na Europa em busca de um futuro melhor.»
É óbvio que a França e a Europa estão a atrasar o desenvolvimento destes países, principalmente a nível económico, pilhando os nossos recursos naturais. Não é por acaso que o continente mais rico é o mais empobrecido. Também na política, porque as nossas elites ou governos são marionetas da metrópole. O manual dos golpes institucionais à imagem dos golpes militares. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos. A partir da diáspora, somos testemunhas do tratamento que qualquer africano recebe na sua tentativa de atravessar o Mediterrâneo. A política da União Europeia, a chamada «Europa Fortaleza», deixa morrer cinco pessoas por dia no Mediterrâneo, ao mesmo tempo que assina acordos de pesca com países como o Senegal, deixando morrer sem assistência os mesmos pescadores senegaleses que, não podendo viver da pesca, se aventuram na Europa em busca de um futuro melhor. Isso, sim, é que é sentimento anti-negro, negrofobia.
O que é que dizem as pessoas nas ruas sobre a França e a Europa? Esta rebelião que varre o Sahel é muitas vezes acompanhada pelo apoio popular e estatal à Rússia. Alguns destes governos pediram ao Grupo Wagner apoio militar para a luta contra os grupos islamistas, mas também para uma eventual agressão militar estrangeira. Porquê a Rússia? Como é que as pessoas olham para a Rússia? Não serão estes países prejudicados pela sua proximidade com Rússia, em troca da França e da Europa?
Para deslegitimar os golpes militares, é preciso deslegitimar os actuais presidentes. E, para isso, é preciso relegitimar os processos eleitorais e os controlos e equilíbrios. Se o Estado é mau, o golpe de Estado é o salvador. Não somos livres de cooperar com quem quisermos? Não sei, mas penso que cada país deve ser livre de negociar com quem quiser.
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