Localizado entre o bairro dos Anjos e a Penha de França, o Miradouro do Monte Agudo é um dos poucos espaços verdes da freguesia de Arroios. Foi encerrado no último confinamento, durante o qual foi levada a cabo uma obra de expansão do gradeamento envolvente, por forma, alegou a Junta de Freguesia, responsável pela intervenção, «a evitar comportamentos desviantes e inibir a prática de actos ilícitos o que possibilitará a todos os residentes e visitantes uma maior segurança, bem como irá promover a tranquilidade, o bem-estar e a saúde dos moradores da zona contígua». Ao contrário de espaços semelhantes da cidade, ainda não reabriu.
«É o preço a pagar por uma sociedade de aparência pacificada, a paz podre de não bater à porta do vizinho negociando para que ponha a música mais baixo porque basta ligar para a polícia, ou para o condomínio, ou pedir uma regulamentação mais restritiva, que guionize pormenorizadamente a puta da vida e acaba-se mesmo é a procurar a app que troque a conversa franca por estrelinhas»
Num dia da semana passada, ao fim da tarde, eu e uma amiga fomos para as escadas do miradouro beber cerveja. No tempo que lá estivemos, cerca de uma hora e meia, passaram mais de duas dezenas de pessoas. Quase todas entraram no miradouro. Com os portões fechados e o gradeamento aumentado, a forma de entrar é perigosa, uma vez que é preciso contornar habilmente o portão por uma das suas extremidades laterais. Onde este acaba, começa um considerável fosso — o miradouro é realmente no alto de um monte. Um pé mal posto ou falta de força nas mãos atira o corpo por ali abaixo. Eu e a amiga olhámos as pessoas com curiosidade, um bocadinho de inveja porque as escadas já estavam sem sol e lá em cima devia estar lindo, a vista sobre o Ritz, o melhor prédio da cidade. Repetimos a avaliação de risco do salto e acabámos na conclusão de sempre: ir até se vai, mas e voltar depois das cervejas?
Moro nas imediações do miradouro. Nas noites em que me proponho atentar, dou sempre por gente lá. Oiço-as da minha janela, lá no cimo. Às vezes têm música, falam, gritam, riem, parecem — adivinho — dedicar-se despreocupadamente e inteiras a essa coisa «desviante» que é viver. Integro-me no rol de vizinhos, felizmente muito plural, a quem isso não preocupa.
Não sei se e que outras variáveis entram aqui em jogo, mas a junta está claramente muito consternada com o que considera uma ocupação indevida do espaço público. O nosso grande problema é que o quadro do «devido» é muito estreito, é cada vez mais estreito. E por isso as instituições, nomeadamente autarquias, têm vindo a aprofundar este papel — tantas vezes legitimado e requerido pelos próprios cidadãos — de ideólogos, propagandistas e obreiros de uma higiene urbana num sentido nocivamente muito lato: a que horas se anda na rua, em que ruas, quantas pessoas se juntam, a que decibéis projectam as vozes, para que fins. É o preço a pagar por uma sociedade de aparência pacificada, a paz podre de não bater à porta do vizinho negociando para que ponha a música mais baixo porque basta ligar para a polícia, ou para o condomínio, ou pedir uma regulamentação mais restritiva, que guionize pormenorizadamente a puta da vida e acaba-se mesmo é a procurar a app que troque a conversa franca por estrelinhas. Em suma, uma paz conseguida em troca de uma qualquer mediação institucional abusiva, que cilindra direitos fundamentais e que nos escusa ao confronto, esse confronto que é propulsor, que é necessário, que abdicado e delegado alimenta opressões.
«a presença hiper-regulatória das instituições parece ter o efeito de fazer esquecer as potencialidades dos organismos vivos: estou mesmo convicta que o simples movimento da cidade amenizaria parte dos problemas que a junta diz identificar. É que não me lembro de alguma vez ter apanhado fogueirinhas em ruas de livre circulação (e se as houvesse?)»
Mas há, dizem, actos de vandalismo (?), fogueiras, consumo de drogas (...), a violência. Apesar de ter pedido esclarecimentos tanto à junta quanto à PSP sobre a quantidade e natureza das queixas, não obtive resposta. Não me espanta que as haja, que haja moradores que se sintam incomodados por algum barulho e, sobretudo, não espanta que se sintam incomodados com o simples facto de gente decidir ocupar espaço público «fora de horas» (supomos que as «horas aceitáveis» vêm inscritas em tábuas milenares, responsáveis por transportar, de geração em geração, as leis da existência colectiva), a fazer coisas — supõem — que não lhes parecem bem: dançar, beber, drogar-se, pinar, conspirar, a imaginação é o limite. A velha questão é que nada disto — mesmo que existisse para lá dos pesadelos da moral — é, só por si, materialmente atentador dos direitos imediatos dos incomodados. Não me parece abusivo classificar este incómodo como, no mínimo, selectivo. Selectiva (e preocupante) é também a parte que o poder autárquico toma naquilo que parece ser o engrossar de um lado deste tão clássico braço-de-ferro.
Mas todos os dias dezenas de pessoas continuam a entrar no miradouro, correndo perigo para o fazer. Muitos dos dias, diz a junta, a PSP é chamada ao local por causa de distúrbios (e entra como se os portões estão fechados? A polícia tem a chave do miradouro? Pode? Deve poder?) A solução preguiçosa de gradear mais foi um claro falhanço, mas parece haver aqui uma cegueira para lá do razoável em admitir o falhanço. Que o foi — não é pormenor — a todos os níveis: urbanística, arquitectónica, paisagística, financeira e até, no que à junta interessava, securitariamente.
O Miradouro do Monte Agudo tem uma particularidade: constitui uma ligação entre duas zonas da cidade. Esta via é, sei lá desde quando — mas, importa referir, não desde sempre, dado que o projecto original não tinha qualquer gradeamento ou portão — interdita parte do dia (à noite) e, no actual contexto, permanentemente e sem devolução à vista. É exactamente como se se decidisse, por exemplo, que o acesso ao Rossio pelo Largo de São Domingos só seria possível entre as 8h e as 20h. Estou quase disponível para descobrir o sentido oculto de opções desta natureza.
A solução parece-me passar de forma muito óbvia pela retirada de todo e qualquer gradeamento e permitir que este percurso cumpra holisticamente a sua função: ser parte integrante e integrada da cidade, sem checkpoint, sem restrição, sem privilégio.
É que esta presença hiper-regulatória, das instituições parece ter o efeito de fazer esquecer as potencialidades dos organismos vivos: estou mesmo convicta que o simples movimento da cidade amenizaria parte dos problemas que a junta diz identificar. É que não me lembro de alguma vez ter apanhado fogueirinhas em ruas de livre circulação (e se as houvesse?).
Não passando ao lado da efeméride do dia da árvore, a Junta de Freguesia de Arroios anunciou, num post do Facebook, a plantação de vegetação na freguesia. A própria presidente, Margarida Martins, comentou, em resposta, que nesse mesmo dia se plantariam árvores no Monte Agudo. Eu e vários fregueses aproveitámos o contexto de celebração para perguntar se tal significava a reabertura do miradouro. Os comentários foram apagados, a resposta continua por dar, o miradouro continua por devolver. Penso naquele outro comunicado que justificava o aumento do gradeamento. Presidida por uma pessoa tão reconhecidamente cosmopolita, o discurso que se optou veicular foi o da preocupação com os «comportamentos desviantes». Na semana passada, um partido de extrema-direita apresentou o seu candidato à Câmara Municipal de Lisboa: «sou a favor da democracia, mas não da libertinagem». Que seria se Lisboa fosse cidade insubmissa.
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