A coragem é uma característica que associamos muitas vezes ao destemor, àqueles que, intrépidos, enfrentam circunstâncias adversas e avançam heroicamente na penumbra. Talvez seja redutor. Recorro a Caetano Veloso e a uma frase que repito muitas vezes para me convencer a assumir uma outra atitude perante as coisas mais simples da vida: «coragem grande é poder dizer sim».
Abusando aqui de uma platitude, a grande luta está, muitas vezes, dentro de nós, da resistência que fazemos em embarcar na aventura, na maravilha. O conservador G.K. Chesterton dizia que o mundo nunca morreria à fome por falta de maravilhas, mas sim por deixarmos de nos maravilhar. Perdemos a coragem para dizer sim porque perdemos a coragem de ir ao encontro mais simples.
Subestimamos demasiado as pequenas coragens do quotidiano, os exercícios de reconhecimento daquilo que implica a nossa relação connosco próprios e com os outros. Não sei se por preguiça ou por falta de prática. É certo que o isolamento a que tantos de nós fomos forçados no período da pandemia deixou consequências que aos poucos se vão revelando. Perdemos ferramentas essenciais para regressar ao convívio com os outros, para acolher as suas particularidades, idiossincrasias e gerir a nossa paciência para tudo aquilo que interrompe as nossas expectativas mais profundas.
Talvez tenhamos, até, desistido das expectativas. Talvez as tenhamos deixado ser derrotadas pela incerteza dos dias do isolamento e ficado atomizados nos sofás, habituados à falta de compromisso, à inexistência de uma relação que implica esforço, disponibilidade e cuidado. Com tudo isto fomos perdendo a coragem de assumir o que queremos e o que não queremos; perdendo a coragem de procurar o encontro fora das caixas de conversação privadas das redes sociais, onde as cumplicidades não precisam de compromisso sério, não são exigentes e podem, aparentemente, ser ignoradas sem embaraço. Gastamos horas em trocas de mensagens, mas pouco tempo destinamos ao encontro, à conversa franca que abre o caminho para a verdade e para a possibilidade da amizade.
«Nenhuma relação entre nós, sobretudo a amizade, sobrevive à falta de coragem. Sem coragem colocamo-nos numa posição de desconforto que nos constrange, que nos sequestra.»
É, por isso, preciso muita coragem para enfrentar esse monstro isolador que nos impede de reconhecer que estamos a sabotar o encontro, que estamos a adiar o coração com desculpas que decorrem do medo de qualquer tipo de intimidade, que nos obrigue a sair de nós próprios e a lidar, com naturalidade, com as expectativas dos outros, sem nos queremos livrar deles ao mínimo sinal de responsabilização.
Nenhuma relação entre nós, sobretudo a amizade, sobrevive à falta de coragem. Sem coragem colocamo-nos numa posição de desconforto que nos constrange, que nos sequestra. Não é possível viver em paz com a sensação de que não conseguimos dizer aos outros o que queremos, o que não queremos, que sentimentos associamos às nossas relações, que confusões e equívocos precisamos de expurgar, para que nos possamos relacionar de forma limpa.
A arte do encontro é aceitarmos as possibilidades, é o desbravamento do caminho sem medo de nada, é a disponibilidade para os sentimentos dentro da realidade de cada um, sem confundir isso com cobrança e entrando, de seguida, numa espiral de subterfúgios e negações que nos vão afastando do mundo e até mesmo de nós.
Para a arte do encontro é preciso coragem para não ceder à mesquinhez do egoísmo, para procurar a luz em vez de uma escuridão que engana, que nos ilude para um conforto que afinal não é senão solidão. Já não nos basta combater a misantropia. É fundamental combater o equívoco que são tantas vezes as narrativas que nos contamos a nós próprios para disfarçar essa falta de coragem para viver com os outros. Já não nos basta derrotar a ideia de que o inferno são os outros. É preciso superar a ideia de que se não nos mexermos não temos responsabilidade nenhuma. Porque a arte do encontro é o caráter da vida.
(para a Rita M.)
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