Ao longo dos últimos dias muito se tem falado em Portugal do dito «estado de emergência». Depois de dias em que esse foi, a par da evolução ao milímetro dos infectados com COVID-19, o grande tema mediático, a Assembleia da República lá o decidiu – para muitos como se fosse uma absoluta inevitabilidade, uma condição necessária (e talvez até suficiente) para fazer face à pandemia em curso.
Mais do que focar aspectos de pormenor sobre a decisão em concreto, o objectivo deste texto é essencialmente chamar a atenção para o que o recurso ao estado de emergência significa historicamente e que perigos comporta.
Comecemos pelo início. O estado de emergência é, provavelmente, o maior paradoxo das sociedades democráticas. Vejamos: é uma figura prevista na constituição de um país (no caso português, no artigo 19) que confere às instituições democráticas desse país, a possibilidade de – democraticamente – suspenderem a democracia ou, se se preferir, alguns direitos democráticos.
Paradoxal que chegue?
O absoluto paradoxo constitui-se no facto de essa democrática suspensão da democracia servir para (alegadamente)... defender o estado democrático!
Não surpreendentemente, o estado de emergência é uma marca das sociedades democráticas e, nessa medida, é bastante recente.
«se – como tudo parece indicar – a brutal desaceleração da actividade económica se prolongar por algum tempo e as medidas de protecção social não tiverem em conta que cortes em salários, despedimentos, ‘lay-offs’ mais ou menos selvagens, podem, rapidamente, lançar na miséria muitos milhares de pessoas, o quadro pode mudar de forma drástica»
Ele é originalmente criado apenas após a Revolução Francesa. A razão para isto é tão óbvia que terá, provavelmente, passado ao lado da maioria de nós: só é preciso um estado de excepção à democracia quando há de facto democracia. Logo, antes de haver democracia, não fazia sentido considerar a possibilidade de interromper algo que não existia.
Voltando à História, veremos que a sua consagração, enquanto interrupção democrática da democracia, está essencialmente associada à guerra, designadamente à guerra civil. Por razões de espaço não faremos aqui a cronologia de todos os momentos em que em sociedades democráticas se decidiu suspender – parcial ou totalmente – a democracia, mas há algo que desde já podemos retirar como conclusão: o estado de emergência foi, é e será sempre, um acto de conservação das estruturas de poder existentes em determinado contexto.
O III Reich alemão é a mais evidente prova histórica disso mesmo. Acabado de chegar ao poder, Hitler impôs o estado de emergência e assim deixou o estado de coisas até ao último dia da sua existência. Esta ferramenta foi essencial para que pudesse encontrar legitimidade legal para todos os atropelos que viria a fazer.
Dirão alguns que Hitler, tal como Napoleão, são exemplos extremos. É certo, mas se esquecermos esses casos e viajarmos até ao passado recente, veremos que não melhora substancialmente.
Após os ataques às Torres Gémeas, a 11 de Setembro de 2001, George W. Bush – à época presidente dos EUA – fez aprovar o Patriot Act, que consistia na supressão de direitos fundamentais a todos aqueles que o estado considerasse associáveis ao terrorismo. O Patriot Act já se foi, mas mesmo depois de imagens que chocaram o mundo, a prisão de Guantánamo continua com os portões fechados e não se prevê que se abram tão cedo.
Anos mais tarde, num quadro não muito diferente, após o ataque terrorista ao Bataclan, em Paris, François Hollande – presidente francês – fez aprovar o estado de emergência em França. O seu prolongamento muito para lá do pico dos acontecimentos associados ao terrorismo, num tempo em que o governo procurava impor medidas de forte retrocesso social, constituiu-se como uma prova de que – tal como no passado – o uso desta figura constitucionalmente prevista era particularmente propenso a derrapagens anti-democráticas.
Uma vez mais se poderá invocar que este quadro nada tem a ver com os anteriores. Quem o faça não estará completamente equivocado – entre o COVID-19 e a rapaziada da Al-Qaeda ou do ISIS que as grandes potências treinaram e armaram, e um dia resolveram morder a mão do dono, há realmente anos-luz de distância.
Não obstante, há sinais que não podem passar despercebidos. Entre outros, Macron e Marcelo referiram-se ao combate à pandemia como uma «guerra». Na Coreia do Sul, o controlo da doença foi feito através da monitorização dos passos dos infectados por sistemas de geo-localização e vídeo-vigilância (não está mal, mas se dá para isto...). Em Israel, segue-se por um caminho semelhante. Em Espanha, em menos de uma semana, já foram detidas pelo menos 88 pessoas – sem que se conheça dados em concreto de cada uma das detenções.
Ainda não temos nada disto em Portugal? Verdade, mas se – como tudo parece indicar – a brutal desaceleração da actividade económica se prolongar por algum tempo e as medidas de protecção social não tiverem em conta que cortes em salários, despedimentos, lay-offs mais ou menos selvagens, podem, rapidamente, lançar na miséria muitos milhares de pessoas, o quadro pode mudar de forma drástica.
Podemos então, rapidamente, encontrar uma situação em que as consequências da «cura» se apresentem tão penosas como as da doença... e aí, suspender direitos como o da greve, o do direito à resistência (a ordens ilegítimas), ou de reunião e manifestação servirá a quem?
Como nos diz Giorgio Agamben no seu denso, mas muito interessante Estado de Excepção, poderemos deparar-nos com uma situação em que «o aspecto normativo da lei pode então ser obliterado e contradito com impunidade por uma violência governamental que (...) continua a alegar estar a aplicar a lei».
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui