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Julgados de Paz – Justiça mais próxima dos cidadãos

Há que assumir, de uma vez por todas, o alargamento da rede de Julgados de Paz a todo o território nacional para que, finalmente, seja cumprido o princípio constitucional da igualdade na Justiça.

Julgado de Paz em Telheiras, Lisboa. Fevereiro de 2018
Créditos / O Corvo

«A instituição dos Juízes de Paz como avindoura, isto é, como concertadora de desmandos ou de desavindos, tem entre nós uma existência de séculos, pois que data do tempo de el-rei D. Manuel, que lhe deu regimento em 1519, diferindo o pedido que em 1418 lhe haviam feito as Cortes de Elvas».
(in Reforma Judiciária de 1892, artigo 134.º)

Os Julgados de Paz têm raízes na história da administração da Justiça em Portugal, tendo sido extintos durante a vigência do Estado fascista. Em 1997, com a 3.ª Revisão Constitucional, são restaurados e os primeiros entravam em funcionamento em 2002.

A sua base constitucional é o Art.º 202.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). E a base legal que deu suporte à sua criação foi a Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (Lei da organização, competência e funcionamento dos Julgados de Paz, já alterada pela lei n.º 54/2013, de 31 de Julho).

No nosso sistema de Justiça, os Julgados de Paz são um órgão de soberania (Art.º 110.º, n.º 1 da CRP) independente (Art.º 203,º da CRP), com competência para administrar a Justiça em nome do povo (Art.º 202.º da CRP).

É, pois, no quadro das nossas melhores tradições na aplicação da Justiça que os Julgados de Paz novamente surgem, na prossecução de um elemento basilar do Estado de Direito Democrático, que é o direito dos cidadãos ao Direito e à Justiça. E, em certo sentido, para contrariar a imagem que o cidadão em geral tem sobre a Justiça, com a sua carga de formalismos, custas judiciais proibitivas, morosidade dos processos e por estes factos uma Justiça distante dos cidadãos e dos sectores mais vulneráveis da nossa sociedade.

É o Art.º 2.º, n.º 8 da lei 78/2001 (a lei dos Julgados de Paz) que refere: «os procedimentos nos Julgados de Paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual».

«Extintos durante a vigência do Estado fascista, […] os Julgados de Paz ressurgem em 2002, na prossecução de um elemento basilar do Estado de Direito Democrático, que é o direito dos cidadãos ao Direito e à Justiça»

Desta forma, os primeiros Julgados de Paz entraram em funcionamento, num quadro experimental, em Janeiro e Fevereiro de 2002, com jurisdição em Lisboa, Oliveira do Bairro, Seixal e Vila Nova de Gaia, vocacionados para um novo tipo de resolução de litígios, privilegiando a participação das partes na resolução do litígio e em estreita colaboração e parceria entre o Ministério de Justiça e o Poder Local, numa perspectiva de proximidade da Justiça.

É assim que, numa perspectiva legal, os Julgados de Paz têm competência para apreciar e decidir sobre acções cíveis, com excepção das matérias relacionadas com o direito de família, direito de sucessões e direito do trabalho e cujo valor não ultrapasse os 15 000 euros.

Igualmente, o recurso aos Julgados de Paz está sujeito a uma taxa única no valor de 70,00 euros. No entanto, caso seja efectivado acordo entre as partes, durante o processo de mediação, o valor a pagar é de 50,00 euros dividido por ambas as partes.

Os Julgados de Paz são, assim, Tribunais de sentido popular e vocacionados para resolver problemas concretos com que os cidadãos e as comunidades se confrontam, e incluem-se naquilo que hoje são considerados meios alternativos em que os litígios podem ser resolvidos por meio de Mediação, Conciliação, Transacção, ou através de julgamento e consequente sentença. As partes são responsáveis pelas decisões que constroem.

Embora a criação dos Julgados e Paz dependa do aval do Ministério da Justiça, a sua instalação tem de corresponder à vontade das Câmaras Municipais, sendo que as despesas gerais com o seu funcionamento são partilhadas por estas duas entidades.

A lei define que a instalação dos Julgados de Paz deva obedecer a critérios de proximidade geográfica e acessibilidade e, neste sentido, fixa a circunscrição territorial como sendo o concelho, ou agrupamentos de concelhos e de freguesias.

Actualmente existem 25 Julgados de Paz, distribuídos por 65 concelhos e abrangendo 3,4 milhões de habitantes. Desde a sua instalação, em 2002, até Dezembro de 2008, foram distribuídos 115 821 processos e resolvidos 111 811, ou seja, com uma eficácia de 71% e com uma demora processual média de 106 dias – o que, considerando o panorama geral da Justiça, é muito positivo1.

A opinião generalizada dos cidadãos que recorrem aos Julgados de Paz existentes (escassos 25) é é que, apesar das dificuldades de toda a espécie com que se debatem (falta de pessoal, carga processual, instalações inadequadas e escassez de material técnico e de meios financeiros), é relevante o empenho no seu funcionamento de apoio ao cidadão e por uma Justiça simplificada e apelativa na resolução de pequenas e grandes causas2.

Daí que cause perplexidade o porquê de só existirem 25 Julgados de Paz, quando a unidade territorial de base da sua instalação é o concelho e quando o objectivo proclamado pelo Governo era o de que os Julgados de Paz pudessem abranger todo o país. É que o território nacional tem 308 concelhos (278 no continente, 18 nos Açores e 11 na Madeira).

A conclusão que se pode tirar é que toda a filosofia que está subjacente aos Julgados de Paz – aproximar a Justiça dos cidadãos e vice-versa – parece incomodar sectores e ferir interesses que se movimentam na área da Justiça.

Não sendo apologista das teorias da conspiração, parece-me, contudo, que, no caso concreto dos Julgados de Paz, anda tudo a conspirar contra este modelo de aplicação da Justiça.

Senão, vejamos se é normal:

- que o Ministério da Justiça ignore ou nada faça no sentido de apoiar e alargar a rede de Julgados de Paz;

- que operadores do sistema da Justiça pretendam e defendam para os Julgados de Paz o alargamento das suas competências em processo penal de crimes a que corresponda pena de prisão até 3 anos;

- que o Bastonário da Ordem dos Advogados venha proferir publicamente que os Julgados de Paz devem ser extintos;

- que entidades com responsabilidades na área da Justiça venham defender a municipalização dos Julgados de Paz, presumindo-se que na dependência hierárquica dos presidentes de Câmara;

- que se defenda que os Julgados de Paz devem ser implantados nas áreas territoriais correspondentes às comarcas que, no território nacional, são 23, o que implicaria já neste caso a extinção de dois Julgados e Paz;

- E haja ainda os que pretendem arrastar os advogados contra os Julgados de Paz, a pretexto de que são hostilizados neste instituto.

Em toda esta panóplia de falsos argumentos vagueiam interesses económicos e corporativos, todos, porém, com um objectivo comum: descaracterizar o actual modelo existente, pôr em causa a sua independência, o princípio da separação de poderes e a imagem dos Julgados de Paz aos olhos dos cidadãos.

A experiência, nestes 17 anos de funcionamento dos 25 Julgados de Paz existentes no território nacional, apesar das imensas carências de profissionais e operadores, de material e financeiras, tem provado que é um projecto útil e necessário na proximidade com os cidadãos e as comunidades.

Mas outra questão que se coloca e que me parece pertinente: é se nestes 17 anos de experiência adquirida e sendo conhecidas as suas dificuldades, se não se justificaria algumas alterações que potenciassem o modelo existente, mas sem o desvirtuar e nomeadamente:

- a revisão do quadro de responsabilidades e das comparticipações financeiras que as duas entidades principais (Governo e Câmaras Municipais) detêm na gestão, instalação, manutenção e funcionamento dos Julgados de Paz;

- o respeito pelas dotações com recursos humanos, materiais e financeiros e instalações dignas e totalmente independentes dos edifícios camarários;

- a alteração da regra recursória, criando-se um órgão superior dos Julgados de Paz, pondo fim ao vai-e-vem com os Tribunais Judiciais;

- a realização de palestras sobre o funcionamento dos Julgados de Paz, na Ordem dos Advogados, de forma a capacitar estes operadores da Justiça, quando mandatários de uma das partes, a ajudarem na solução e não no problema. Salvaguardando as devidas excepções, alguns destes operadores muito dificilmente conseguem sair da sua postura de defensores e, intervindo em função das regras do processo civil, acabam por cair em formalismos ultrapassados e prejudiciais às regras de funcionamento dos Julgados de Paz.

- a agilização e reformulação do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, por ser uma estrutura muito pesada, no sentido de a tornar mais eficaz quanto às suas responsabilidades e objectivos para que foi criada.

«É ao Ministério da Justiça, através da Secretaria de Estado da Justiça, que cabe a responsabilidade directa de dinamizar, estimular e organizar uma reunião alargada a todos os operadores do sistema da Justiça, representantes dos Julgados de Paz e mandatários do Poder Local, que marque a iniciativa do Estado no desenvolvimento de uma rede de Julgados de Paz que abranja todo o território nacional»

No fundo, há que assumir, de uma vez por todas, o alargamento da rede de Julgados de Paz a todo o território nacional para que, finalmente, seja cumprido o princípio constitucional da igualdade na Justiça.

Daqui decorre a responsabilidade do Estado de promover e estimular, através dos vários canais de difusão, a imagem de uma Justiça próxima dos cidadãos e para servir os cidadãos, de baixo custo, simples, célere e eficaz na resolução dos pequenos e grandes problemas que afectam a generalidade das comunidades.

É ao Ministério da Justiça, através da Secretaria de Estado da Justiça, que cabe a responsabilidade directa de dinamizar, estimular e organizar uma reunião alargada a todos os operadores do sistema da Justiça, representantes dos Julgados de Paz e mandatários do Poder Local, que marque a iniciativa do Estado no desenvolvimento de uma rede de Julgados de Paz que abranja todo o território nacional.

Cumpra-se a Constituição da República Portuguesa.

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