|25 de Abril

O que fazer com Abril?

Abril não é, apenas, o passado. Também se articulou, ao longo do tempo, nos diferentes presentes que se foram vivendo, que se foram fazendo a pulso. Presente na prática política, nos quotidianos, nos valores da comunidade. Aí está, imbuído em muito do que foi construído.

CréditosManuel de Almeida / EPA

Muitos de entre nós, defendemos a importância da comemoração dos 50.º aniversário da revolução de 25 de Abril de 1974. Para o efeito, foi, aliás, criada a Comissão Comemorativa, com dois eixos estruturantes – Memória e Futuro – cujas atividades tiveram início em março de 2022 e que estão programadas até 2026. 

Mas talvez seja prudente pensarmos que esta certeza não é partilhada por toda a comunidade. Ainda que se possa argumentar que uma grande maioria celebra e se revê em Abril, surgem vozes divergentes. Muitos são os sinais nestes tempos. E muitos de nós não querem que se comemore de igual modo o 25 de Abril e o 25 de novembro de 1975. Mas sabemos que, recentemente, temos assistido às tentativas de equivalência entre as duas datas. Trazer uma data para secundarizar a outra – uma clara estratégia política que pretende desvirtuar muito do que se considera ser o processo de construção da democracia em Portugal, no qual a revolução é central. Afinal, a história nunca deixa de ser um campo de batalha.

O que fazer, então com Abril? 

Talvez seja bastante comum, ao começar a falar de Abril, voltar a Sophia de Mello Breyner Andresen e ao dia inicial inteiro e limpo. Ao dia que quebrou o quotidiano, que abriu uma tessitura no tempo para se constituir, assim, em algo maior. Inteiro. Limpo. 

Para quem como eu – acabada de nascer -, não viveu os dias de Abril, é possível perceber porque se esperava por essa madrugada - como se espera sempre pelo fim de noites que parecem não ter fim. O dia inicial, mas, simultaneamente, com a sua própria história e genealogia. Sabemo-lo, ter esperança não significou que todos aguardavam passivamente, numa sociedade que também se ia alterando. A esperança também foi feita de luta, de resistência. Dos grandes atos aos pequenos gestos.

Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu: Onde emergimos da noite e do silêncio. Nós. Plural. Pela força de vontades partilhadas. Reganhar a voz, na luz do dia. Poder ter voz. Manifestar livremente a vontade. Seria essa a condição fundamental: a liberdade. E livres habitamos a substância do tempo.

Há esse Abril passado. Esse dia. Esse dia que se transformou em dias. De aceleração vertiginosa da politização. Os meses de dinâmicas revolucionárias ímpares. De possibilidades, de escolhas. De construção. 

Mas quando pensamos no que fazer com Abril não estamos apenas a falar do passado. É certo que esse passado tem de ser pensado, partilhado, debatido. Só se percebe a vontade de fazer chegar essa madrugada, se conhecermos e percebermos o contexto em que se vivia antes dela. O que foi essa noite e esse silêncio. A ditadura, a tão longa ditadura do Estado Novo, a opressão, a repressão, a censura, a falta de liberdades fundamentais, a violência colonial. E o medo. E a pobreza. E a guerra. E o irrespirável. 

Mas Abril não é, apenas, o passado. Também se articulou, ao longo do tempo, nos diferentes presentes que se foram vivendo, que se foram fazendo a pulso. Presente na prática política, nos quotidianos, nos valores da comunidade. Aí está, imbuído em muito do que foi construído. 

E presente também no dia de festa, em todos os outros dias 25 de Abril, nos quais os corpos e as vozes tomam a rua da cidade. As comemorações populares, os desfiles levam-nos para a rua, ocupando o espaço, tornando-nos visíveis. Dependo dos anos, com mais ou menos pessoas. Em dias de sol e em dias de chuva. Em conjunturas políticas mais difíceis ou em anos melhores. Mas as comemorações, até hoje, continuam a ser feitas – mesmo se de forma muito diferente durante o tempo do confinamento. Estão vivas. Não são apenas rotina. 

E o que fazemos quando saímos para a rua nesse dia? Mantemos uma ligação a um passado, é certo. Aí está a memória dos que lutaram mas que não chegaram a ver a Abril; aí está a memória de um dia que se partilha, entre diferentes sensibilidades políticas. Aí estão os que então viveram esses tempos. Os que fizeram esses tempos. Os que continuam a estar presentes nas lutas políticas de hoje.

Mas também estão na rua os que nasceram depois de 1974. Os que nasceram já neste novo século. Os que reivindicam que a sua genealogia também é feita de Abril. Os corpos que querem ser vistos. As vozes que querem ser ouvidas.

Mas as comemorações também são feitas de reivindicações e lutas que respondiam a diferentes contextos e a diferentes problemas. Os de hoje. Os de agora. Os que decorrem das lutas políticas atuais. Há um património que cresce. Somar, acrescentar. Esse que não perdeu o passado, mas que também inclui o que é de hoje e o que ainda queremos. Porque não está tudo feito. Porque não está tudo ganho. Porque se perde e é preciso recuperar. Estão na rua os que querem fazer outros tempos.

Abril não se articula apenas como passado e como presente. Em certo sentido, habita – ou deveria habitar – todo o tempo, todos os tempos. Abril também é futuro. 


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