Como andorinhas com o chegar da Primavera, os novos estudantes do ensino superior chegam agora às Universidades.
É na sua recepção que se insere a questão da «praxe», produto original de Coimbra e da sua velha universidade, durante séculos a única no país. Alguns estudos e ensaios têm sido a ela dedicados, dos quais se destaca o mais recente, Caloiros e Doutores, de João Teixeira Lopes, João Sebastião, Elísio Estanque, João Mineiro e José Pedro Silva (2018).
A palavra «praxe» que, segundo A. Manuel Nunes, citado por Elísio Estanque, teria começado a ser usada nos fins do século XIX, no sentido de «selvagem», tem, contudo, usos diversos e limites mal definidos, estando ligada tanto a rituais iniciáticos opressivos como a desfiles e festas académicas.
A sua raiz histórica parece encontrar-se na autonomia atribuída aos estudantes de Coimbra, considerados um corpo especial com estatuto e regulamentos próprios (e até polícia e prisão próprias), que os situava como um pequena elite diferenciada e ilustrada, situada acima do resto da populaça, os «futricas».
Provenientes da fidalguia ou da burguesia abastada, os estudantes constituíam assim uma juventude seleccionada, boémia e despreocupada, que, no futuro, iria tomar conta da nação.
Muito desse ethos já tinha mudado em meados dos anos sessenta (1965), quando cheguei a Coimbra. Mas, embora mudanças mais profundas se começassem a anunciar com as lutas estudantis de 62 e 65, o sentido elitista ainda persistia, manifestando-se de múltiplas formas, dominando a vida económica e social da cidade, uma vez que só uma minoria privilegiada tinha acesso ao Ensino Superior.
Na «Lusa Atenas» todos eram tratados por «doutores» (era real a pergunta do carregador na estação dos comboios: «o senhor doutor é caixeiro-viajante?») e a velha Universidade mantinha a sua aura mítica, transmitida de geração em geração.
Embora também ligado a diversas tradições estudantis («latadas», «serenatas» «Tomada da Bastilha», «Queima da Fitas», «Repúblicas»…), o termo «praxe» era (e ainda é) habitualmente usado para designar os rituais de recepção aos caloiros.
Na altura, tratava-se essencialmente da sua perseguição, depois das seis da tarde, por «trupes» de estudantes mais velhos, para os gozar, humilhar, rapar ou «dar nas unhas». A praxe, contudo, estendia-se também a outros actos, acabando com o «rasganço» da capa no fim do curso, derradeiro gesto de despedida, deixando o agora verdadeiro doutor, nu e devidamente pronto para vencer na vida.
Na realidade, eu, recém-chegado de Aveiro, pouco sabia desses hábitos, e pouco conhecia do código escrito da praxe (1957) em que o caloiro era classificado como estando vários graus abaixo de cão. Nem isso me interessava em demasia.
Detestava todos esses rituais de forma distanciada e pouco emotiva, considerando desprezível essa infantilidade instalada que teria de aturar.
O que para mim era claro, educado num ambiente político de esquerda que valorizava as liberdades (num tempo de ditadura), era que, por trás dessa conversa de «tradição», «gozo» e «irreverência estudantil», havia uma grotesca falta de respeito pelo caloiro como estudante e cidadão, vítima do exercício arbitrário de violência (com a anuência das autoridades universitárias e policiais), o que me parecia inaceitável como forma «normal» de ser recebido pelos colegas mais velhos.
Será de reconhecer, contudo, que nesses últimos anos da década de sessenta, antes da Crise de 69 que tudo mudou, eram raros os viciados nas «trupes» que emboscavam os caloiros à saída dos cafés ou dos cinemas, olhados pela maioria como «apancadados» ou atrasados mentais.
Figuras como o «Drácula», que conseguiu formar-se em medicina e se dizia fazer consultas a cavalo, com o emblema do Auto Clube Médico colado no lombo do animal, até ser suspenso da profissão por actos perigosos, ou o «Mata-Gatos», conhecido pela macabra actividade de enforcar os pobres bichos, servem como exemplos do género.
Para além desses obcecados, havia apenas trupes episódicas, formadas por grupos de estudantes (machos) que bem bebidos e após um festejo qualquer, decidiam «divertir-se» à custa dos caloiros.
Paradoxalmente, só uma pequena minoria da esquerda estudantil dessa época contestava essa prática e a coarctação de direitos e liberdades que ela significava. A maioria, entre os quais, os mais influentes nas «Repúblicas» (casas de estudantes autogeridas), considerava que pôr em causa a praxe era criar divisões na frente da «luta associativa» (a Associação Académica de Coimbra tinha sido «fechada» pelo governo e entregue a uma comissão formada por estudantes pró-salazaristas), continuando a praticá-la nas próprias «Repúblicas», onde o caloiro frequentemente não se sentava à mesma mesa dos «doutores» e era rapado pelos membros da casa.
Com início da maior crise estudantil portuguesa, em 1969, a praxe de rua, com trupes a perseguirem caloiros e outras atitudes discriminatórias, viu rapidamente o seu fim.
Como se uma rajada de ar fresco tivesse varrido o rame-rame bafiento da cidade e da academia, a mobilização dos estudantes para a luta, abriu as almas a um tempo novo, duro, mas empolgante, com greves, reuniões, discussões, teatro, música e convívio, que levou a picos desconhecidos a fraterna solidariedade da comunidade estudantil, esbatendo as rígidas fronteiras entre rapazes e raparigas.
O luto académico manteve a praxe de rua e as festas tradicionais suspensas nos anos seguintes, mas foi a mudança de espírito de uma academia finalmente mais aberta, humanista e sensível aos problemas do seu tempo (onde a guerra colonial era uma marca incontornável), que tornaram o retorno dessa praxe inaceitável.
«há que educá-la desde cedo [a juventude universitária] para o respeito pelo «outro», seja ele caloiro, árabe, judeu ou refugiado, mas também por si própria, já que o futuro não está no regresso aos piores hábitos do «antigamente», mas no envolvimento colectivo e solidário de todos na construção de um mundo mais justo»
Com a Revolução dos Cravos e a democracia, o país deu um salto de gigante, e a abertura da academia de Coimbra à comunidade «civil» aprofundou-se, participando nas mudanças necessárias à renovação da Universidade e no movimento mais geral do povo português na construção de uma vida melhor.
Só mais tarde, nos finais da década de setenta, se defrontaram concepções diferentes quanto ao retomar da Queima das Fitas, com a esquerda estudantil, manifestando alguma incompreensão, a opor-se, invocando uma herança vinda de trás que na realidade não existia.
De facto, entre 69 e 74, a Queima apenas não foi retomada porque a ofensiva do governo não deu tréguas – com novo fecho da AAC, polícia de choque nas Faculdades, estudantes presos, torturados e julgados –, não permitindo afrouxar o luto e pagar a ajuda que os comerciantes da cidade tinham dado à academia, abdicando do dinheiro adiantado para a Queima suspensa em 69.
Foi esse vazio que a direita estudantil aproveitou para se impor como guardiã das tradições académicas (tão bem utilizadas pela esquerda antes do 25 de Abril), restabelecendo mais tarde, já nos anos 90, uma nova praxe de rua, mais agressiva, acéfala e machista, agora levada a cabo em grupo e também pelas «raparigas», cada vez mais numerosas na academia.
A desejada democratização e massificação do acesso à Universidade, trouxe novas camadas da população ao ensino superior tornando-o menos «seleccionado» e mais proletarizado.
Já em finais dos anos setenta, Eduarda Cruzeiro, citada no referido estudo de Teixeira Lopes e col., referia que «a emergência da praxe estaria relacionada, entre outras coisas, com a necessidade de socializar os novos estudantes, cuja origem social se começava a diversificar».
Mas o futuro dos estudantes universitários, com o avanço das políticas de direita, passou a estar cada vez mais ameaçado de precarização e desemprego.
Dificilmente hoje se podem considerar os estudantes universitários como um pequeno grupo privilegiado que tem o futuro assegurado, apesar do título ainda contar socialmente, como se pode perceber pelo exemplo dos «Relvas» portugueses e estrangeiros.
Na realidade, com a intensificação da exploração do capital e das suas crises, muitos dos jovens «doutores» terão de pagar empréstimos, continuar a viver em casa dos pais ou procurarem emprego noutros países, passando pelas agruras de trabalhos indiferenciados e mal pagos, sujeitos à lei da selva dos «mercados».
Mas a ilusão dos novos universitários de pertencerem a uma elite permanece em muitos estudantes, principalmente nos de origens humildes, a quem acenam com o american dream de um empreendedorismo que assegura a todos o futuro risonho de Steve Jobs ou de Bill Gates, embora o sucesso continue muito ligado à origem de classe, e a mobilidade social dos mais pobres, demore, em Portugal e segundo a OCDE, cinco gerações para subir de degrau.
António Revez (2000), também citado no estudo de Teixeira Lopes e col., considera a praxe como «uma forma de transmissão de uma determinada moralidade num contexto de dominação, mesmo que, frequentemente, os seus protagonistas não estejam plenamente conscientes do conteúdo moral que está em causa».
Coimbra, tão parca em exportações mas tão rica em outros campos, acabou por exportar o pior da sua herança académica, essa praxe de rua, agressiva e humilhante, para outras universidades entretanto criadas, ainda sem tradições mas sedentas de as inventarem, numa busca identitária tantas vezes tentada através de enviesadas cópias, posicionando-se depois como «mais papistas do que o papa».
É nesse mundo académico onde, nos anos sessenta, o prestígio individual se conquistava na acção conjunta e fraterna na defesa de ideais de liberdade e respeito cívico, que voltou a medrar o abuso dos mais novos, justificado como «amadurecimento» e «treino» para enfrentar uma sociedade onde se deve aceitar a humilhação pelo «chefe», para depois conseguir ser «chefe» e humilhar os outros.
Apesar disso, um inquérito efectuado em 2007 (Estanque e Bebiano), apontava que, na academia de Coimbra, embora a maioria defendesse a manutenção da «praxe» em sentido geral, uma significativa maioria (67,8%) «repudiava qualquer forma de violência física ou simbólica».
Nesse mesmo ano, o decreto-lei nº62/2007 estabelece, na alínea b, n.º 4, artigo 75, que constitui infracção disciplinar dos estudantes «a prática de actos de violência ou coacção física ou psicológica sobre outros estudantes, designadamente no quadro da praxe académica».
Apesar disso, em 2012, um abaixo-assinado de docentes da Faculdade de Letras alertava para a intimidação e praxes violentas, solicitando medidas aos órgãos universitários. Também por todo o país, os processos contra essas práticas se têm vindo a multiplicar.
Na realidade, para travar essa repetição de rituais de vexame e crueldade de uma juventude universitária já com poucos privilégios, há que educá-la desde cedo para o respeito pelo «outro», seja ele caloiro, árabe, judeu ou refugiado, mas também por si própria, já que o futuro não está no regresso aos piores hábitos do «antigamente», mas no envolvimento colectivo e solidário de todos na construção de um mundo mais justo.
E quando a natural generosidade da juventude é para isso canalizada e se estimula uma socialização baseada na amizade e no respeito mútuo, toda essa miserável ganga ideológica com que a tentam intoxicar desaparece, como um raio de sol que põe fim à escuridão.
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