|Comissão de inquérito à TAP

Quem ofereceu os 55 milhões a David Neeleman?

As declarações de Miguel Cruz, ex-presidente da Parpública e ex-secretário de Estado do Tesouro, na CPI, contradizem as declarações do anterior responsável da Parpública.

David Neeleman (E) e Humberto Pedrosa (D) riem à saída do edifício da Parpública, após a empresa gestora de participações do Estado lhes ter vendido 61% do capital da TAP. Lisboa, 13 de Novembro de 2015
CréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

A Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP (CPI) chegou à fase final dos seus trabalhos, na qual vão ser ouvidos os governantes e ex-governantes. Esta terça-feira foi o dia de Miguel Cruz, enquanto Pedro Marques foi à Comissão de Economia falar do mesmo assunto.

Alguém mente

As declarações de Miguel Cruz, que foi presidente da Parpública e depois secretário de Estado do Tesouro, entram em total contradição com as declarações do anterior presidente da Parpública, Pedro Pinto. Miguel Cruz afirmou perentoriamente que só conheceu a origem do dinheiro usado para comprar a TAP (o adiantamento da Airbus por conta da futura compra de 3,6 mil milhões de euros de 53 aviões pela TAP) muito depois de assumir a presidência da Parpública e que essa informação não lhe foi passada por Pedro Pinto. Por seu lado, Pedro Pinto, não menos perentoriamente, afirmou na CPI que todo o processo era conhecido da Parpública e foi, naturalmente, transmitido a Miguel Cruz. Alguém mente. Ou um ou os dois. Embora esta mentira à CPI seja relativa a um processo que custou 55 milhões de euros ao erário público!

Longe vão os tempos em que as mentiras à CPI por um processo que nos podia ter custado 500 mil euros levantavam a indignação da comunicação social. Agora, é claro como água que alguém está a faltar à verdade: Miguel Cruz, Pedro Pinto, Pires de Lima ou Pedro Marques, ou os quatro estão a faltar à verdade para construir o típico álibi da política de direita, onde ninguém é culpado, nem assume a culpa de nada, mas o dinheiro público acaba sempre no bolso dos capitalistas, das sociedades de advogados e dos outros intermediários destas negociatas.

Este jogo, entre PS e PSD, só é possível porque o essencial dos contratos foi (e continua) mantido em segredo, escondido do escrutínio popular, com o povo apenas a ter direito a conhecer as versões de quem os assinou. 

55 milhões a voar

É que, sendo cada vez mais claro que David Neeleman embolsou 55 milhões de euros sem nada de seu ter colocado na TAP, as declarações antagónicas na CPI complicam a possibilidade do cabal apuramento das responsabilidades políticas por este saque. Sendo claro e evidente que o governo PSD/CDS foi obreiro da privatização e que escondeu do povo português a forma como a TAP foi «comprada», tem que ser totalmente responsabilizado. Entretanto, não é ainda claro se a informação foi ou não transmitida ao Governo PS e, concretamente, se este, em 2017, quando decidiu a recompra da TAP, sabia que as prestações acessórias que David Neeleman colocou na transportadora estavam a ser pagas pela TAP à Airbus.

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TAP. O negócio Neeleman de 2015

Apesar de BE e PS terem impedido (cada vez se percebe menos porquê) de levar a Comissão de Inquérito à TAP até à privatização de 2015, os trabalhos têm contribuído decisivamente para se perceber os contornos desse negócio.

CréditosNuno Fox / Agência Lusa

Sem uma bola de cristal, não é possível provar intenções. Nunca saberemos se Pires de Lima e Sérgio Monteiro foram enganados por Neeleman ou cúmplices da sua fraude. Eles preferem fingir acreditar que enganaram o empresário americano que ganhou milhões com a operação TAP. Também não é possível provar o que teria acontecido se não se tivesse declarado uma pandemia. Nunca saberemos se o plano de Neeleman era simplesmente inchar a sua operação, retirar tudo o que pudesse e depois desaparecer, ou se a teria levado até uma operação bolsista. O que sabemos é que a estratégia – de alto risco para a TAP e zero risco para ele – adoptada pelo empresário americano tropeça na Covid e arrasta a TAP para o precipício. E que, no final, Neeleman e as suas empresas ganharam muitos milhões com a operação TAP e deixaram-na com um buraco de mais mil milhões de euros do que o que existia antes da sua chegada, para nós pagarmos.

Risco Zero: os capitais usados são da própria TAP

No mundo capitalista, um investidor nunca arrisca mais que os capitais que coloca numa determinada empresa. Ora, David Neeleman não colocou qualquer capital na TAP. Ele viu a oportunidade de tomar o controlo da empresa através de um mecanismo muito simples:

Negociou com a Airbus a compra de 53 aviões (uma compra de cerca de 3,6 mil milhões de euros) e recebeu desta uma comissão antecipada de 230 milhões de euros;

Com esses 230 milhões ele comprou a TAP (que foi vendida por 10 milhões) e usa o resto para fazer a capitalização com prestações acessórias (que mais à frente ainda lhe garantiriam o controlo total e efectivo da empresa, sem ter que simular uma sociedade com Humberto Pedrosa);

Ele transfere para a TAP a obrigação de compra dos 53 aviões, aceitando esta pagar uma multa de 230 milhões se não comprasse os aviões (no fundo, assegurando a devolução da comissão recebida por Neeleman se a TAP não comprasse todos ou parte dos aviões).

Foi este o negócio que o governo PSD/CDS fez, foi este o negócio que esconderam do povo português.

Em bom português, é com dinheiros da TAP, que a empresa está hoje a pagar, com dinheiros que tiveram que ser financiados pelo Estado português, que David Neeleman compra a TAP. O risco patrimonial do «empresário» foi zero.

Ao assalto da TAP

Tomado o controlo da companhia, David Neeleman aproveita para concretizar um conjunto de outras operações que lhe irão trazer uma grande vantagem patrimonial.

Três delas decorrem ainda durante a própria operação de compra com a Airbus, onde é fácil identificar os custos para a TAP. A primeira é a desistência da opção de compra dos 10 A350, que a TAP tinha assegurado a um bom preço por ter participado no processo de desenvolvimento do mesmo. Essa desistência da opção de compra está avaliada em 140 milhões, e implicou o abandono de uma linha de crescimento da operação – para a Ásia, nomeadamente para a China – que estava por detrás da compra desse tipo de aviões. Esta abrupta mudança de planos fica ainda mais estranha se pensarmos que o administrador da TAP que planeou a compra dos A350 (Fernando Pinto) foi o mesmo que foi contratado pela administração privada como consultor, com uma remuneração de 130 mil euros mensais. A segundo será o preço dos aviões que Neeleman negociou, que vários avalistas consideram estar inflacionado, com potenciais perdas para a TAP de 200 milhões. O que pode significar que a TAP, comprando ou não os aviões, devolveria sempre a comissão que a Airbus entregou a David Neeleman. Há ainda uma terceira vertente deste processo, ainda mais difícil de provar sem uma investigação criminal internacional: na mesma altura, Neeleman terá negociado outras aquisições de aviões com a Airbus para empresas de que é ainda hoje proprietário.

Durante os quatro anos de gestão privada, a TAP vai ter com a Azul (de David Neeleman) uma relação subserviente e onde é prejudicada. Vai pagar à Azul para utilizar os seus ATR na ponte aérea, o que rentabilizou uma parte da frota da Azul que não era rentável, mas fez a TAP «optar» por uma má solução, cara e pouco fiável. Vai libertar o aeroporto de Campinas (São Paulo) para que a Azul faça o seu hub de ligação a Portugal, e ainda vai fazer uma operação de code-share para facilitar a difusão destes passageiros pela Europa, colocando em risco a mais rentável das operações TAP, a ligação ao Brasil, em favor do crescimento da Azul nesse mesmo mercado. Vai receber dois aviões muito degradados da Azul, recuperá-los como se fossem seus, e devolvê-los à Azul, uma operação com um custo de largos milhões de euros.

A forma como os administradores privados vão ser remunerados no período de gestão privada é outro elemento que nos mostra os privados a irem ao pote. Além dos 130 mil por mês a Fernando Pinto, temos os milhões pagos a Max Urbanh e a Antonoaldo Neves, e os prémios pagos mesmo com prejuízos anuais superiores a 100 milhões.

A TAP a inchar

Com a entrada de Neeleman na companhia, a TAP é colocada a inchar. Desde logo porque tal é fundamental para absorver e justificar a compra dos 53 novos aviões. É certamente discutível qual a intenção com que esse crescimento foi feito, mas é indiscutível, agora que se conhece o mecanismo de compra da empresa, que esse crescimento era necessário, antes de mais nada, para que Neeleman pudesse ter comprado a TAP.

Reconheça-se que os novos aviões trazem vantagens competitivas importantes à TAP. Gastam menos combustível e são mais ecológicos. Aumentaram a dívida e os compromissos da companhia, mas desde que o crescimento da operação continuasse, não era impossível que a operação se equilibrasse e começasse a dar lucros. E há elementos, apurados pela CPI, que fazem crer que pelo menos alguns dos envolvidos acreditavam nesse cenário (por exemplo, Fernando Pinto recebia um conjunto de opções de compra de acções da TAP numa futura capitalização em bolsa que nessa altura valeriam 7 milhões de euros). Não faz sentido receber, num contrato secreto, opções de compra, se não se acredita que a empresa vai ser colocada em bolsa.

É verdade que os esquemas de Ponzi também funcionam assim (só sobrevivem enquanto se cresce). É verdade que os dois últimos anos de gestão privada pré-pandemia, foram o período de maiores prejuízos da história da TAP (mais de 300 milhões de Euros). É pois lícito especular que o plano de alguns sempre foi tirar o máximo possível e depois afastar-se com os ganhos. Mas, admitamos que não era esse. Nesse caso, o crescimento acelerado (o maior do mundo naquele período) era só um risco calculado, um risco para a TAP, claro, dado que David Neeleman nada arriscava. Se corresse bem, traria lucros de centenas de milhões a David Neeleman (cerca de 400 milhões), se corresse mal, adeus TAP. Mas o que é que podia correr mal? E depois veio o Covid.

A pandemia

Importa pouco ter a certeza se a pandemia interrompeu um esquema de Ponzi ou uma arriscada jogada do empresário norte-americano. O que é seguro é que a TAP é mais severamente atingida pela pandemia devido às opções impostas por David Neeleman, desde o processo de compra até aos 4 anos de gestão privada da companhia.

Tendo arriscado zero em todo este processo, David Neeleman está inicialmente disponível para receber (não ele, para não ficar com quaisquer responsabilidades individuais, mas a TAP) todo o tipo de apoios do Estado. Mas recusa-se a capitalizar a TAP. Estamos perante o investidor moderno, que só aceita investir o dinheiro dos outros. Quando o Governo PS exige que parte do apoio público implique capitalização, David Neeleman começa a preparar a saída. Vai negociar a sua saída por uma indemnização de 55 milhões de euros. Um maná, para quem nada de seu colocou na TAP, conseguido quando o valor financeiro da empresa era de zero. E que se foi juntar a tudo o que já tinha sido retirado.

Concluindo

Perante este cenário, o deputado Bernardo Blanco, da Iniciativa Liberal, já defendeu por diversas vezes na Comissão Parlamentar de Inquérito que a solução seria emprestar o capital necessário à TAP (os 3,2 mil milhões de euros), continuando David Neeleman com o controlo efectivo da empresa. Que fácil é ser capitalista no mundo destes alucinados. Um mundo onde salvar uma grande e estratégica empresa pública é um crime, mas onde existe sempre disponibilidade para enviar dinheiro às pazadas para o bolso de capitalistas e especuladores.

Ora, a conclusão que salta à vista é outra: a TAP não pode continuar a ser sangrada por este tipo de gente, não pode continuar a pagar os lucros que outros fazem com a TAP. É tempo de deixar de ter como única prioridade de gestão da TAP a sua privatização, a quarta tentativa neste caso. É tempo de uma gestão pública capaz e orientada para a defesa do interesse nacional.

Este artigo integra a série de apontamentos sobre a comissão parlamentar de inquérito à TAP, disponíveis aqui.  

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O «AbrilAbril» já tinha denunciado em 2023 a origem do dinheiro usado por David Neeleman e o facto de o governo do PSD e do CDS-PP ter escondido dos portugueses a forma como a TAP foi «comprada».
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É que os contratos assinados em 2017 prevêem que, caso exista algum desacordo insanável entre o Estado e David Neeleman, o Estado para recuperar o controlo da TAP tem de ressarcir David Neeleman dos 226 milhões que (não) colocou na TAP. Ora, como desde Novembro de 2015 a TAP tinha um contrato assinado com a Airbus garantindo que lhe comprava os 3,6 mil milhões em aviões ou lhe pagava uma multa de 226 milhões, ou seja, que lhe devolvia os 226 milhões que a Airbus dera a Neeleman para este capitalizar a TAP, se esses acordos fossem executados em 2018, a TAP tinha de pagar 226 milhões a Neeleman e 226 milhões à Airbus!!!

Se o contrato de 2015 assinado pelo Governo PSD/CDS é mau para o Estado, o contrato de 2017 assinado pelo Governo PS é igualmente mau e, de facto, só há uma atenuante possível: o Governo PS não saber dos Fundos Airbus. Mas, como Pedro Marques fez questão de explicar esta terça-feira, o PS fez o acordo de 2017, contra a opinião do PCP, que defendia que a privatização fosse anulada, responsabilidade política que ninguém pode tirar ao PS e a Pedro Marques.

Quando Miguel Cruz foi questionado sobre o pagamento em 2021 de 55 milhões a Neeleman, respondeu que o fizeram para evitar o estipulado no contrato de 2017 e a respectiva garantia de devolução das prestações acessórias. Ou seja, o contrato que Pedro Marques assinara, contra a opinião do PCP, como fez questão de reforçar o deputado Bruno Dias.

Os advogados decidem?

A resposta dada por Miguel Cruz sobre o valor da indemnização paga a David Neeleman, remete-nos para o início desta CPI, para o já distante e quase esquecido caso da indemnização a Alexandra Reis: «os valores foram decididos entre advogados» disse Miguel Cruz, com o Estado a ser «defendido» pela inefável «Vieira de Almeida Advogados». Exactamente como aconteceu com o cálculo da indemnização de Alexandra Reis. Só que, desta vez, voaram 55 milhões para um capitalista. Provavelmente com a mesma falta de base legal que iam voando os 500 mil «que os advogados decidiram» atribuir a Alexandra Reis.

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