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Saúde: a nuvem por Juno (I)

Para garantir a fixação dos médicos e de outros profissionais ao SNS, não é preciso nenhuma medida coerciva que os «prenda» ao serviço público, menos ainda sob o falso e demagógico pretexto de estarem a «pagar» uma dívida que contraíram para com o Estado

CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

«Tomar a nuvem por Juno» foi a expressão, inspirada na mitologia grega, que a Ministra da Saúde usou na entrevista dada à RTP3, no passado dia 28 de Janeiro, a propósito de um outro assunto que não o da interpretação do seu próprio discurso.

Mas talvez seja essa uma forma apropriada de caracterizar alguns dos rasgados elogios que têm surgido nos media e nas redes sociais, provenientes de profissionais da saúde e gente honesta que exulta com alguns acenos diferentes do antecessor e o ar mais fresco da nova ministra.

Vale a pena seguir o guião do jornalista Vítor Gonçalves, para analisar alguns dos principais problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e qual o real conteúdo do que aí foi dito e do que sabemos estar a acontecer.

A entrevista começou pela segunda greve declarada pelos dois pequenos sindicatos recém-formados de enfermeiros e pela histriónica bastonária da Ordem.

A ministra referiu as melhorias nos salários, horários e carreiras, incluindo as do governo de Passos Coelho (?...) avançando com a possibilidade de uma resposta «jurídica» a uma greve com métodos enviesados, polémicos e agressivos, financiada por um nebuloso crowdfunding em que a empresa que o administra ganha 7,5%.

Sobre isso, apenas parece oportuno tecer um comentário: independentemente da instrumentalização do direito à greve e do seu exercício por forças de direita, procurando explorar o justo descontentamento para criar maiores dificuldades ao serviço público, se o governo pensa que vai resolver o mal-estar dos profissionais da saúde com soluções «musculadas» e administrativas, como a requisição civil, sem resolver o problema de fundo de trabalhadores esgotados e mal remunerados, está bem enganado.

Os médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares foram dos trabalhadores mais maltratados pelos governos da troika, alvos preferenciais e continuados da política de agressão ao SNS, ainda não suficientemente revertida.

Tem sido a dedicação dos profissionais que tem assegurado a resiliência do SNS ao persistente desgaste provocado pelas políticas privatizadoras dos governos do antigo «arco do poder» (PS, PSD, CDS), mantendo-o como um dos pilares centrais da nossa democracia que continua a garantir os mais amplos e complexos cuidados de saúde à população portuguesa.

«durante as duas primeiras décadas de SNS e antes das sucessivas vagas de ataque ao serviço público pelo PS, PSD e CDS, os médicos, embora pudessem ganhar mais no privado, consideravam o SNS o seu local nuclear de trabalho, onde aprendiam e ensinavam, se diferenciavam e progrediam por concurso público, subindo os diversos graus da carreira, integrando o «quadro» estável de um Serviço e de um Hospital (sem empresas externas a assegurarem tarefas desgarradas), o que permitia e estimulava o trabalho em equipa, a multidisciplinaridade e a homogeneidade técnico-científica que ainda hoje não encontram na medicina privada»

Mas se foram atenuadas ou travadas algumas medidas mais gravosas dos governos da troika, as esperanças abertas pelo governo do PS com melhorias pontuais, tiradas a ferro pelos partidos à sua esquerda, não foram suficientes para curarem as feridas vindas de trás, menos ainda para voltar ao caminho de desenvolvimento que o SNS trilhou nas suas duas primeiras décadas.

«Não há dinheiro para tudo», diz o primeiro-ministro. Um discurso mal sustentado e repetitivo que já vem de muitos anos e ministros atrás. Porque quando se pensa nos mil e cem milhões de dinheiros públicos agora gastos no interminável buraco do Novo Banco, que se vão somar aos milhares de milhões já gastos a tapar a especulação financeira, existem duas conclusões a que a direita foge, dizendo serem uma cassete sobre «outra coisa», sem conseguir apagar a evidência: dinheiro há, mas é gasto em apoios, subvenções, benefícios fiscais ou rendas proporcionados aos grandes negócios. O «centrão» neoliberal usa a delapidação dos dinheiros públicos, o tráfico de influências e a corrupção política para levar as instituições públicas à penúria.

Primeiro estrangula-se, a seguir culpa-se o carácter estatal da gestão pela falta de ar (em que, por vezes, ela colabora) e depois oferece-se a ilusão do oxigénio privatizando a pataco, mantendo frequentemente os mesmos gestores. No SNS como no Ensino Superior. Na CP como nos CTT. Em Portugal como na Venezuela.

A entrevista prossegue abordando o pré-anúncio do veto presidencial de Marcelo à Lei de Bases da Saúde se não houver um «consenso alargado», o que é o mesmo que dizer se o PSD não a apoiar.

Tão fraco foi o Presidente inventando essa pretensa garantia de estabilidade futura, que até a nova ministra expôs a sua evidente fragilidade e contradição: a Lei de 1990, que abriu as portas à privatização da Saúde com o apoio de Marcelo, foi aprovada apenas com os votos do PSD e CDS e (infelizmente) está em vigor há 28 anos.

Como as propostas do PSD e CDS são claras na defesa da privatização da Saúde com apoio e financiamento do estado (considerando até que passa a ser considerado «serviço público» tudo o que seja pago com dinheiros públicos, mesmo que sejam cuidados prestados por empresas privadas, o tal «consenso alargado» quer dizer apenas continuar a dar facadas ao SNS e dar colo e caldos de galinha aos grandes privados.

Marcelo voltou a passar das marcas e esqueceu-se dos seus limites. Entre selfies, beijos e lambuzadelas cheias de afectos, quando a coisa toca as cordas mais sensíveis dos seus best friends for ever dos negócios, assume-se como líder do PSD que foi, e o homem de direita que nunca deixou de ser. E não tem pejo em fazer uma pressão alta contra qualquer proposta que ponha em causa a linha neoliberal da lei de 90 ou anuncie um hipotético desvio socializante governamental apenas esboçado nos considerandos e num ou noutro ponto com algum cheiro de esquerda da sua proposta.

A questão é que poucos cidadãos lêem os textos com o olhar treinado em manhas e vírgulas, procurando entre cada palavra os alçapões que por vezes ali surgem. E ou a Lei da Bases traça fronteiras claras e linhas vermelhas duras como muros, ou abre portas e janelas por onde depois entra uma habilidosa legislação complementar que vira tudo ao contrário, levando à prática o inverso que o texto parece enunciar.

«Mas alguém tem dúvidas sobre isso?» – perguntou a nova ministra ao entrevistador, sublinhando a importância do que depois poderá ser acrescentado em legislação avulsa, embora sem qualquer crítica ou clarificação.

«Para garantir a fixação dos médicos e de outros profissionais ao SNS, não é preciso nenhuma medida coerciva que os «prenda» ao serviço público, menos ainda sob o falso e demagógico pretexto de estarem a «pagar» uma dívida que contraíram para com o Estado, como se já não tivessem, durante os vários anos de internato, fornecido trabalho, exigente, extenuante e mal pago»

Foi assim, que o «tendencialmente gratuito» da Constituição, passou a ser tendencialmente pago, sem sequer travar as «taxas moderadoras» no SNS, que não moderam nada e apenas servem para tornar concorrencial o acesso à grande privada.

Ora se para o comum dos mortais, «tendencialmente gratuito» contém, como finalidade, o vir a ser «gratuito», enganam-se os que pensam que tal é uma verdade linear. Maria de Belém, em entrevista ao Expresso de 19 de Janeiro de 2019, afirma que «há projectos à esquerda que falam em gratuitidade no acesso à Saúde, algo que não está conforme a constituição». «Gratuito» é, pois, para a ex-ministra, contrário ao «tendencialmente gratuito»...

Digam-me então, se com uma «mãozinha de reaça» (como dizia a canção), não vale tudo?...

E se é verdade que a Lei de Bases de 1990, com o «é apoiado o sector privado da saúde [...] em concorrência com o sector público», abriu mais a porta aos grandes negócios na Saúde, também é verdade que haveria muitas graduações nesse apoio e nada obrigava os governos (nomeadamente do PS) a fazerem-no como o fizeram, apoiando as parcerias público-privadas (PPP) e levando o SNS ao definhamento, chorando depois lágrimas de crocodilo pelas suas dificuldades.

Afirmar, na retocada proposta da ministra Marta Temido, que o papel do sector privado é «complementar» e não «concorrencial» ao SNS, são palavras que parecem apontar no bom caminho, mas continuam a levantar muitas dúvidas, porque a prática do governo as contradiz, prolongando, por dois anos, a PPP de Cascais (em fim de contrato), e propondo a continuação da de Braga, que só não se concretizou por tal não ter sido aceite pelo Grupo Mello (que exigiu mais milhões) criando dificuldades legais ao seu prolongamento sem concurso.

De resto, foi a própria ministra a afirmar, na entrevista, ter pertencido ao grupo de trabalho que deu um parecer favorável à continuação dessas PPP, que mesmo entidades insuspeitas de desvios socializantes, como a Entidade Reguladora da Saúde e até o próprio Tribunal da União Europeia (Relatório especial nº9/2018, «Parcerias Público-Privadas na UE: insuficiências generalizadas e benefícios limitados») não as consideram vantajosas em geral.

Outro dos pontos focados foi a mobilidade de profissionais que migram do sector público para o privado, por alegada falta de atractividade do primeiro.

Também aqui, primeiro apertou-se o pescoço e agora repetem-se as queixas de asfixia.

A ministra aventou en passant algumas soluções, como a de prender os médicos durante uns anos ao SNS (a exemplo dos pilotos da Força Aérea e dos médicos militares), como se essa fosse uma forma aceitável de os manter. Serão certamente, profissionais tão motivados como os sentenciados a trabalhos forçados.

Marta Temido parece desconhecer que, em Portugal, durante as duas primeiras décadas de SNS e antes das sucessivas vagas de ataque ao serviço público pelo PS, PSD e CDS, os médicos, embora pudessem ganhar mais no privado, consideravam o SNS o seu local nuclear de trabalho, onde aprendiam e ensinavam, se diferenciavam e progrediam por concurso público, subindo os diversos graus da carreira, integrando o «quadro» estável de um Serviço e de um Hospital (sem empresas externas a assegurarem tarefas desgarradas), o que permitia e estimulava o trabalho em equipa, a multidisciplinaridade e a homogeneidade técnico-científica que ainda hoje não encontram na medicina privada.

A pulverização criada pelos contratos individuais e com empresas de trabalho temporário, o fim das carreiras que definiam a hierarquia organizacional substituídas por venenosas «avaliações individuais de desempenho», a galopante partidarização das administrações e a «empresarialização» dos objectivos clínicos, com números e estatísticas criativas e «lucros» virtuais, copiando a pior lógica da privada «à americana», ajudaram a dar cabo desse ambiente e, com a falta de investimento e o corte nas remunerações, semearam o desânimo e o cansaço.

Focando o estatuto de dedicação exclusiva, a ministra referiu a «boa experiência de outros países» e o exemplo do Prof. Manuel Antunes, do Centro de Cirurgia Cardíaca dos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Para os muitos que, como eu, passaram mais de duas décadas da sua vida hospitalar em regime de tempo completo prolongado e dedicação exclusiva, os duas citações devem ter despertado um sorriso de espanto pela naivité e verdura.

No primeiro caso, porque, mais do que a «experiência de outros países», há a experiência de cá. Da nossa terrinha. Do SNS português. Dos milhares de médicos que optaram livremente por esse regime de trabalho que, com uma melhor remuneração (embora inferior à que podiam usufruir no privado), benefícios na reforma e uma maior estabilidade e realização profissionais, romperam com o padrão herdado da época da Misericórdias de que ainda hoje persistem sequelas, do trabalhar de manhã, quase à borla, para depois ir «ganhar a vida» à tarde, nas «Caixas», no consultório ou na clínica.

Embora o Serviço Médico à Periferia (1975-1983) já tivesse inaugurado a dedicação exclusiva, esse implícito «acordo» com o poder, de trabalhar pouco (só de manhã) e ganhar pouco (do Estado), manteve-se dominante nos primeiros anos do SNS, sendo ainda hoje invocado por um discurso populista e hipócrita, responsabilizador dos profissionais afastados da participação democrática na gestão, e que apenas têm procurado adaptar-se, melhor ou pior, ao (mau) enquadramento que a tutela estimula e define, levando-os à dispersão e à saída.

«Bastava não ter acabado [...] com a concessão do regime de dedicação exclusiva […] e garantir cada vez mais uma remuneração justa e digna, correspondente à diferenciação técnico-científica atingida, condições favoráveis e estimulantes ao desenvolvimento e realização profissionais, possibilidade de aperfeiçoamento e de formação contínuas com progressão nas carreiras, respeitando o trabalho em equipa e multidisciplinar e o estatuto reconhecido pelos pares, assegurando a participação activa e democrática nas decisões e órgãos que lhes dizem respeito, assegurando a valorização, a estabilidade e a segurança no futuro»

A livre opção por um regime de tempo prolongado e exclusividade, aberta no inicio dos anos 90 (que contou com uma adesão que apanhou de surpresa o governo e a própria comunidade médica), veio possibilitar um novo tipo de trabalho, onde fixação e permanência nos serviços permitia maior motivação, empenho e planeamento estratégico, reflectindo-se positivamente nas relações interpessoais e interdisciplinares e no avanço e alcance de ambiciosos objectivos. E o SNS, tendo já alargado a carreira aos cuidados primários e à saúde pública, deu um pulo chegando, em 2001, ao 12º lugar no ranking da Organização Mundial de Saúde, o seu melhor posicionamento de sempre.

Por estas e outras razões, ao procurar como outro exemplo o do Centro do Prof. Manuel Antunes, cuja experiência profissional, remuneração, estatuto e influência social e política, pouco têm a ver com o da «tropa normal» que construiu o SNS (mesmo quando igualmente competente e diferenciada), a ministra cometeu outro lapso. Encontraria em Coimbra e na instituição que administrou (como em outras unidades e serviços do país) casos bem mais representativos do impulso colectivo proporcionado pela dedicação exclusiva, como o do Hospital Pediátrico de Coimbra que chegou a ter, nesse regime, mais de 90% do seu corpo clínico (incluindo a quase totalidade dos Directores de Serviço), o que rapidamente o guindou para um lugar de referência nas áreas mais complexas e especializadas da patologia infantil.

Para garantir a fixação dos médicos e de outros profissionais ao SNS, não é preciso nenhuma medida coerciva que os «prenda» ao serviço público, menos ainda sob o falso e demagógico pretexto de estarem a «pagar» uma dívida que contraíram para com o Estado, como se já não tivessem, durante os vários anos de internato, fornecido trabalho, exigente, extenuante e mal pago.

Bastava não ter acabado (a partir de 2009) com a concessão do regime de dedicação exclusiva (por decisão política governamental e não porque a Lei de Bases de 90 a tal obrigasse) e garantir cada vez mais uma remuneração justa e digna, correspondente à diferenciação técnico-científica atingida, condições favoráveis e estimulantes ao desenvolvimento e realização profissionais, possibilidade de aperfeiçoamento e de formação contínuas com progressão nas carreiras, respeitando o trabalho em equipa e multidisciplinar e o estatuto reconhecido pelos pares, assegurando a participação activa e democrática nas decisões e órgãos que lhes dizem respeito, assegurando a valorização, a estabilidade e a segurança no futuro.

É isso que não tem acontecido. É também isso que qualquer nova política que queira romper com o sombrio passado dos governos-coveiros do SNS deve querer implementar. Como acontecia, apesar das hesitações e dificuldades, antes dos «aperfeiçoamentos empresariais» que os ministros PS, PSD e CDS dos tempos do «arco do poder» e da troika introduziram e que têm feito debandar do SNS alguns dos seus melhores profissionais.

(fim da primeira parte)

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