Com o novo governo PS a invocar uma renovada paixão pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), talvez valha a pena fazer uma revisitação ao que mais marcou a Saúde nestes últimos anos.
A verdade é que, ao contrário do que a direita às vezes afirma, o governo não passou a ser o dos partidos à esquerda, que o viabilizaram com o objectivo de travar a ofensiva dos governos da troika que se propunham continuar a infernizar a vida dos portugueses.
E, embora com efeitos limitados, foi isso que aconteceu na Saúde. Impediu-se o pior mas a situação mantém-se crítica, porque o PS, longe de se empenhar com vigor em destruir os restos dessa agressão, tem vindo a discutir cada pequeno passo nesse sentido, avançando aos bochechos e a ritmo de tartaruga ou recuando como um caranguejo.
Como pano de fundo da movimentação de 2019, a aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde na Assembleia da República.
Claramente melhor que a Lei de 1990 até aí em vigor (que estipulava o apoio do Estado ao sector privado), a nova Lei de Bases, com reforço do papel central do SNS como grande prestador público, pode ser considerada uma vitória da esquerda tirada a ferros aos sectores mais recuados do PS, ligados a velhos compromissos com os grandes grupos financeiros.
Apesar de enunciar princípios mais consentâneos com a filosofia solidária e universal que presidiu à criação do SNS, persistem, no entanto, fronteiras difusas por onde se pode infiltrar uma prática governativa a eles contrária, mantendo a promiscuidade de interesses como já antes acontecia.
Para além das linhas estruturantes que a informam (já a serem postas em causa com a abertura de um novo concurso para a PPP de Cascais), foram tomadas, pelos governos de Costa, medidas avulsas, algumas com aspectos positivos, como a diminuição no abuso das taxas moderadoras ou o aumento do número de contratações (ainda assim insuficientes e sem inserção num plano de reconstrução de carreiras).
«Haverá [...] quem se interrogue se valeu a pena viabilizar um governo do PS que tinha o poder de fazer tanto e fez tão pouco. Um governo que podia ter alterado decididamente o rumo de definhamento do SNS, em vez de apontar para reversões que não cumpriu ou só o fez poucochinho, recuperando o estafado discurso do «não há dinheiro», desmentido na abundância com que ele aparece para os grandes negócios e parcerias ruinosas ou para o «superavit» oferecido à «Europa» de Centeno»
Já quanto à melhoria de salários dos profissionais do SNS, estes mantiveram-se muito abaixo do esperado, e também não se alargaram significativamente os cuidados continuados e paliativos, nem se alterou a gestão partidarizada e «empresarial» que, focada em ilusórios objectivos economicistas, nunca esteve tão longe de estar centrada no doente.
Haverá, por isso, quem se interrogue se valeu a pena viabilizar um governo do PS que tinha o poder de fazer tanto e fez tão pouco. Um governo que podia ter alterado decididamente o rumo de definhamento do SNS, em vez de apontar para reversões que não cumpriu ou só o fez poucochinho, recuperando o estafado discurso do «não há dinheiro», desmentido na abundância com que ele aparece para os grandes negócios e parcerias ruinosas ou para o «superavit» oferecido à «Europa» de Centeno.
Sem dúvida que alguns avanços foram conseguidos, e o fim do ambiente de guerra declarada ao «Estado Social» e aos direitos do trabalho pelos governos de Passos Coelho, constituiu um ganho que não deve ser subestimado. Mas, com o desbaratar das esperanças nos governos de Costa, aumentou a insatisfação com as listas de espera e as condições de atendimento no SNS, enquanto se reduziam os chamados «tempos máximos garantidos», uma forma demagógica de aparentar a defesa de doentes necessitados de consultas ou de cirurgias, desinvestindo no serviço público e justificando o seu desvio para o sector privado.
Integrando o coro de protestos, ressurgiram conhecidos coveiros do SNS (designadamente do PSD e do CDS) que ainda há pouco lhe cortavam verbas e inventavam insustentabilidades.
Embora continue a constituir a grande reserva de capacidade instalada capaz de dar resposta às situações e patologias mais complexas, muito à frente do sector privado, o SNS vai-se progressivamente deteriorando, fruto do continuado estrangulamento político e financeiro, que a recente injecção de umas centenas de milhões atenua sem resolver (e sem acabar a «lei dos compromissos» que põe a burocracia mercantil à frente da saúde dos cidadãos).
Nesse contexto, a ruptura de Serviços de Urgência constitui apenas a manifestação mais visível dessa degradação, que podia ser evitada se, mudando o padrão de «urgencialização» do acesso ao SNS, o poder político investisse decisivamente numa estratégia de coordenação e reforço dos cuidados de proximidade, levando à prática soluções há muito conhecidas.
O doloso apagamento das Carreiras Médicas, uma das traves mestras do SNS – que, antes da sua substituição por contratos individuais e enviesadas «avaliações de desempenho», assumia um papel nuclear na progressão, avaliação e hierarquização dos serviços clínicos, com os resultados que se conhecem na excelente qualidade técnico-científica dos médicos portugueses –, agudizou a fragilização organizativa e a desmotivação e fuga de especialistas, sem que os últimos governos PS tenham tomado medidas estruturais para combater essa tendência.
«Embora continue a constituir a grande reserva de capacidade instalada capaz de dar resposta às situações e patologias mais complexas, muito à frente do sector privado, o SNS vai-se progressivamente deteriorando, fruto do continuado estrangulamento político e financeiro, que a recente injecção de umas centenas de milhões atenua sem resolver (e sem acabar a «lei dos compromissos» que põe a burocracia mercantil à frente da saúde dos cidadãos)»
Por outro lado, centenas de jovens médicos vêem-se impedidos de ingressar no Internato da Especialidade pela falta de vagas devido à diminuição da capacidade formativa ligada à saída dos quadros mais experientes.
São esses médicos indiferenciados que, cada vez mais, constituem uma reserva de mão-de-obra barata, atirada para biscates precários e mal pagos em hospitais e clínicas privadas ou em empresas de trabalho precário que tapam, a peso de ouro, os buracos abertos no SNS «para poupar dinheiro».
Face a esse triste cenário, o discurso ministerial vai-se esgotando num esbracejar sem rasgo, sem abandonar o tom de resposta meramente casuística, saltando da escandalosa falta de pediatras no Hospital Garcia da Orta para a grosseira má-prática da ecografia obstétrica da clínica de Setúbal (possibilitada pela busca do lucro e a falta do controlo inter pares assegurado no SNS), passando para as agressões aos profissionais da Saúde, desde há muito previsíveis bodes expiatórios da degradação do sistema.
Sintomaticamente, como solução para este grassar do mal-estar, o governo propõe bolinhos e chá nas salas de espera, educação das potenciais vítimas em cursos de gestão de conflitos (tão em voga), e instalação de «botões de pânico» para quando os utentes perderem a paciência e a cabeça, estimulados pela permanente cascata de acusações ao serviço público que enchem os programas da TV (ignorando o que acontece nos privados).
Paradigmáticas são também algumas iniciativas governamentais que assumem um significado per si, quando parecem querer enveredar pelo caminho certo para depois se desviarem dele com a introdução de condições que invertem todas as premissas.
Uma das medidas aventadas pela ministra Marta Temido foi a reposição do regime de «dedicação exclusiva». Desta vez, contudo (e ao contrário do que existiu até 2009), ele seria obrigatório e reservado aos médicos do Internato da Especialidade, que deveriam ficar compulsivamente presos ao SNS durante alguns anos, «como forma de pagarem o que o Estado gasta na sua formação».
A asneira é total e a justificação falsa e irritante. Os Internos da Especialidade representam uma importante e imprescindível força de trabalho, intenso e remunerado abaixo do que seria justo, que aproveita o entusiasmo e a dedicação dos jovens médicos empenhados na sua formação. A sua disponibilidade para além do dever é, de resto, frequentemente explorada em tarefas e tempos de trabalho não justificados com a sua aprendizagem técnico-científica. Nada devem ao Estado. É precisamente o contrário. É o SNS e o Estado que muito lhes deve.
Para quem conhece a vida hospitalar, pode até parece que a sugestão ministerial tem como objectivo desviar o sentido da discussão e acabar com qualquer hipótese de reposição da «dedicação exclusiva» na forma como vigorou, com excelentes resultados, até 2009: um regime aberto a todos os médicos especialistas, opcional e mais bem remunerado.
«A «exclusividade» [médica] representou, de facto, a partir da década de noventa, um passo decisivo para a fixação e maior «profissionalização» dos médicos nos cuidados primários e hospitalares do SNS, eliminando a perda de tempo e a instabilidade do saltitar do pluriemprego, aumentando a diferenciação e o desempenho e proporcionando um ambiente propício à investigação, ao ensino e a uma maior realização profissional»
A «exclusividade» representou, de facto, a partir da década de noventa, um passo decisivo para a fixação e maior «profissionalização» dos médicos nos cuidados primários e hospitalares do SNS, eliminando a perda de tempo e a instabilidade do saltitar do pluriemprego, aumentando a diferenciação e o desempenho e proporcionando um ambiente propício à investigação, ao ensino e a uma maior realização profissional.
Porque não, então, propor, aos médicos do SNS, a reposição de condições semelhantes (com aumento de salário base + acrescento por tempo completo prolongado de 42h + prémio por dedicação exclusiva + benefício na contagem do tempo para a reforma), restaurando o regime que terminou, há cerca de dez anos, por decisão governamental com argumentos falsamente «austeritários»?
Com a extinção da «exclusividade», o Estado fragilizou a coesão de equipas e serviços que, no SNS, asseguravam toda a actividade programada e as urgências, passando a gastar mais em contratos individuais, outsourcings e empresas de trabalho temporário. Só em 2018, foram gastos, com estas últimas. e segundo informações oficiais (portal BASE), cerca de 104,5 milhões de euros, o valor mais alto de que há registo, mostrando uma tendência crescente e não o contrário. Mesmo assim, este valor pode estar subestimado porque há muitos hospitais que não os declaram.
Outra medida legislativa apresentada como «estruturante» pelos últimos governos PS, foi a formação dos chamados Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) nos Serviços hospitalares.
Como é hábito, a sua criação diz procurar o aumento de produção de actos médicos e cirúrgicos para diminuir as listas de espera, acenando, aos profissionais interessados – «médicos, enfermeiros, assistentes técnicos, assistentes operacionais, gestores e administradores hospitalares e outros profissionais de saúde, de acordo com a área ou áreas de especialidade» –, com um acrescento remuneratório pago em separado.
Embora a proposta pareça benéfica para todas as partes (profissionais e doentes), não se trata, como aparenta à primeira vista, de simplesmente criar um estímulo extra para compensar o aumento da actividade do Serviço.
Trata-se, sim, o que é muito diferente, de criar um ou mais grupos autónomos e auto-organizados que, utilizando as mesmas instalações, o mesmo material, o mesmo aparelho logístico do(s) Serviço(s), contratualizam com a Administração de forma independente e por um período de três anos, o «ataque» às listas de espera.
Como se pode concluir da portaria nº 330/2017, haverá profissionais e doentes que se relacionam no enquadramento «normal» do Serviço hospitalar, e outros (profissionais e doentes) que passam a pertencer ao CRI – se forem para isso propostos ou escolhidos –, criando-se assim entidades separadas que se podem sobrepor total ou parcialmente, com uma hierarquia, responsabilidade e relações externas diferenciadas: o «Serviço», tal como já existia, e essa espécie de «empresa», o CRI, criado por alguns dos seus profissionais (com outros que podem vir de fora).
Segundo o Público de 8 de Fevereiro de 2020, já teriam sido criados, em 2019, dezanove CRI em diversos serviços hospitalares, estando prevista a próxima constituição de mais quarenta.
Os CRI, constituem, assim, uma nova forma de «empresarialização» e fragmentação dos serviços hospitalares do SNS que verão baixar ainda mais a sua homogeneidade organizativa, com distribuição de alguns sacos de dinheiro a grupos de profissionais formados ad hoc, naturalmente atraídos por esse estímulo monetário.
Mais uma vez se privilegia a pulverização de prémios e pagamentos à tarefa, em vez de se aumentarem os salários-base e se reforçarem os recursos materiais e humanos dos serviços para que o SNS possa dar uma resposta atempada a todas as solicitações.
Com a má memória das anteriores «paixões» do PS (como a que em tempos teve pela Educação), se for este o tipo de arrebatamento que o governo de Costa sente pelo SNS, então, estamos conversados…
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