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TAP: a história do saque que a Comissão de Inquérito não irá apurar

Para entendermos o presente precisamos de entender o passado e a TAP não foge à regra. O AbrilAbril elaborou um dossier de análise à história da companhia aérea de bandeira portuguesa. Procurou-se situar os objectivos da criação da TAP, os processos de ameaça de privatização e a forma como em diversas fases a empresa foi moldada aos interesses capitalistas. Este é o primeiro de dois artigos.

A TAP, companhia aérea de bandeira do Estado português, reveste-se de particular importância pela missão que teria que desempenhar no quadro da coesão territorial, da ligação às comunidades imigrantes e aos PALOP.  A discussão em torno do que deve ser a TAP mistura-se com a discussão das responsabilidades do Estado e deve obedecer a um enquadramento.

A empresa foi criada oficialmente em 1945, durante o fascismo, por necessidade, uma vez que Portugal era o único país colonialista sem uma companhia aérea de bandeira. É o Secretariado da Aeronáutica, de que Humberto Delgado era director-geral, que cria a companhia. Já tinha havido uma primeira iniciativa privada que falhara.

Após a criação da empresa, em 1951 é promulgado o Decreto-Lei n.º 38444 que autorizava o Governo «nos termos do caderno de encargos» a «fazer a concessão do serviço público de transportes aéreos de passageiros, carga e correio». O Governo fascista fez o que os bons neoliberais modernos gostam e criou condições para entregar o monopólio ao sector privado. O caderno de encargos previa que a concessão se destinava a «organizar e manter, pela forma mais adequada ao interesse público, o funcionamento regular, permanente e contínuo do serviço público de transportes aéreos de passageiros».

Apesar de ter sido aberto o concurso público para a concessão do serviço público, não apareceram candidatos e no Parecer Subsidiário da Secção de Obras Públicas e Comunicações de 1952, na parte relativa à aviação cívil é inscrito que «Espera o Governo, dada a ausência de resultados práticos do concurso aberto em 1951, organizar brevemente uma sociedade portuguesa destinada a explorar, em regime de concessão, aqueles serviços. Embora a aquisição do material compita normalmente a essa companhia, é prudente prever que o Estado tenha de auxiliá-la na obtenção dos meios financeiros necessários, como aconteceu com outros empreendimentos de alto interesse para a economia nacional e que exigiram avultado investimento de capitais».

Criadas as condições para alienar a companhia de bandeira, em 1953 a TAP é transformada em Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada com o Decreto-Lei 39188. No documento estavam as condições para a concessão, nomeadamente a manutenção de sete ligações aéreas. Assim, tambeḿ era estabelecido que seria dado um regime de exclusividade num prazo de 20 anos com benefícios fiscais e que entre outras tantas regalias, seria concedido um subsídio anual pelo Estado.

Além do definido nas bases do Decreto-Lei, o seu preâmbulo tinha ainda inscrito que para «facultar à nova empresa a obtenção de outros meios financeiros necessários à aquisição de aeronaves», o «Estado obriga-se a subscrever, na medida em que não encontrar colocação, um empréstimo obrigacionista de 75.000 contos, a emitir pela concessionária, e garante o pagamento integral dos respectivos juros e amortização».

Esta linha política relativa à TAP não era, em todo o caso, aspecto isolado. Era parte efectiva da política económica fascista. O próprio ditador fascista, Salazar, assumiu-o num discurso feito nesse mesmo ano, em 1953, proferido no Palácio Foz a 28 de Maio, no acto inaugural do ciclo de conferências ministeriais e da Exposição do Plano de Fomento: «O ponto morto em que nalguns sectores parece ter caído a nossa economia, precisada de um impulso sério; a necessidade de investir somas muito elevadas que a presença do Estado pode afoitar; a indispensável vantagem de dar incentivo e exemplo – criaram-nos a alternativa ou de aguardar que os particulares tomassem a direcção requerida pelas necessidades gerais ou de tomar a iniciativa de empreendimentos que em circunstâncias normais ficariam estranhos à actividade estatal. O papel do Governo será, porém, em tais casos o de fomentar a criação das empresas, apoiá-las técnica e financeiramente, ditar-lhes regimes adequados de exploração… e retirar-se, quando não seja necessária a sua presença ou o seu auxílio».

Com a Revolução de Abril, a TAP conheceu um novo capítulo. Importa frisar que o grosso da arrecadação de receitas da empresa vinha das linhas áreas exclusivas com as ex-colónias. Com a Revolução, logo em 1974,  o Decreto-Lei n.º 619/74, de 14 de Novembro, define que com a independência dos territórios de Angola e Moçambique, objectivo do processo de descolonização em curso, a TAP - Transportes Aéreos Portugueses, deixava de «ter o exclusivo dos serviços aéreos para aqueles territórios», o qual lhe era assegurado pelo respectivo contrato de concessão. Isto introduziu a concorrência das linhas aréas, mas não o fim das mesmas.

A grande alteração dá-se em 1975 com a nacionalização oficial da empresa. O Decreto-Lei nº205-E/75, de 16 de Abril de 1975 nacionaliza a companhia dos Transportes Aéreos Portugueses, a contar a partir de 15 de Abril de 1975. Até à Revolução, o Estado detinha 33,67% do capital da TAP, a Fazenda Nacional 24%, a CGD 5.87% e o Banco da Agricultura e os CTT 1.9% cada. O interessante é que de acordo com decreto, com a nacionalização da Banca e Seguros, o Estado detinha já 65% do capital social da empresa, ou seja, já sem o decreto a TAP era maioritariamente do Estado Português. 

O passo seguinte à nacionalização da TAP foi alterar o seu regime jurídico. Com o Decreto-Lei n.º 469-A/75, de 28 de Agosto a TAP deixa de ser uma Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada e, assim, reverte-se por completo os objectivos de 1953. A empresa passa a ser pública e revogam-se os estatutos que até então estavam em vigor. 

Os novos estatutos da TAP surgem com o Decreto-lei 471-A/76, de 14 de Junho em consonância com o Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril que «Estabelece as bases gerais das empresas públicas». Dá-se assim o passo definitivo para uma outra TAP, livre (até deixar de estar) de uma gestão ao serviço dos interesses capitalistas que moldavam a natureza do Estado às suas necessidades e faziam do fascismo o seu instrumento. 

Uma outra escala

Com a contra-revolução, as conquistas alcançadas do 25 de Abril de 1974 passam a estar ameaçadas. Entra em marcha um plano para a recuperação capitalista de diversos sectores e com isso, também entra em marcha a submissão do poder político ao poder económico. A TAP torna-se um alvo e com isso, a acção de muitos Governos entra na linha da desestabilização da empresa para corresponder à gula dos privados. O normal seria, dada a alteração da realidade, adaptar a empresa, uma vez que tinha perdido o monopólio de exclusividade que detinha. Seria praticável manter a missão da TAP e enquadrar o seu serviço à sua missão, mas passaria a vigorar uma lógica de competição dificíl de aguentar e de preparação para a sua privatização.  

O Governo da Aliança Democrática (AD), uma coligação de PSD/CDS/PPM, foi assim o primeiro rosto visível da deterioração da TAP. O ano de 1980 marca uma forte contestação por parte dos trabalhadores tendo como exemplo um plenário de trabalhadores realizado a 8 de Janeiro, onde era exigida a publicação e cumprimento do acordo alcançado com a administração da empresa que continha as tabelas salariais e a execução de uma cláusula que dizia respeito a um problema de reenquadramento. Neste plenário, os trabalhadores definiram uma greve com um período de 36 horas levada a cabo pelos 5000 trabalhadores de terra. 

Ante a situação económica da empresa que estava de ano para ano a apresentar prejuízo, o governo AD aprova em Conselho de Ministros, em Julho de 1980, uma resolução que declarava a TAP em situação económica difícil. Tal resolução acabou por marcar a postura dos sucessivos governos na relação com os trabalhadores da companhia. Começando logo pelo primeiro ponto, o governo caracterizava as acções sindicais como «perturbações» que tinham «vindo a afectar e a bloquear a actividade normal da empresa». 

A hostilização aos trabalhadores vai ainda mais longe, acusando-os de piorarem a situação da empresa: «subestimando esta situação, uma minoria de 480 trabalhadores, num quadro de pessoal de cerca de 10000, bloqueia a actividade normal da empresa, que, deste modo, se vê confrontada com greves sucessivas», chegando a dizer que há um «surto grevista» que era (veja-se) «concertado entre sindicatos do sector que representam grupos profissionais situados em posição estratégica».

Na tal resolução, considerando a grave situação da companhia aérea, o governo AD, de maioria absoluta, considerava «ultimada a preparação do acordo de saneamento económico e financeiro» e termina dizendo que «a degradação da empresa decorrente de toda esta situação, que a via do diálogo insistentemente tentada não conseguiu ultrapassar, por irredutível obstinação dos sindicatos na reivindicação de condições não só ilegais como ofensivas do princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei, obriga o Governo a ponderar de novo a medida que em Fevereiro havia sido avançada: a declaração da empresa em situação económica difícil, a que poderá seguir-se, se necessário, o encerramento temporário da TAP para efeitos de reorganização das actividades nos termos previstos no regime de bases das empresas públicas».

Nesse mesmo ano, o governo aprova em Conselho de Ministros a Resolução nº 274/80 que incumbe os ministros das Finanças e do Plano, do Trabalho e dos Transportes e Comunicações de activarem as medidas adequadas a uma profunda reestruturação da TAP, visando a sua consolidação. Esta resolução acaba por não esconder o carácter profundamente neoliberal do governo uma vez que criticava a «instabilidade laboral», considerando que havia uma «inadequação da actual estrutura organizativa da empresa» e que se «impunha a mais severa disciplina na utilização dos fundos públicos». Transpondo para a actualidade, esta é actualmente a mesma linha de argumentação dos partidos de direita na Assembleia da República e, em parte, do Governo com a sua política de direita. 

Entretanto, em Setembro de 1980, é realizado um acordo de saneamento económico–financeiro entre o Estado e a TAP que faz com a TAP emita um empréstimo obrigacionista, algo que passa a estar regulado com a aprovação da Portaria nº 991/80 de 17 de Novembro. Este aspecto coloca que, já de certa maneira, as garantias dadas pela TAP tinham já que ir de encontro dos interesses de quem comprasse os títulos de dívida da TAP.

A confirmação do retrocesso 

Se o governo AD significou um ataque à TAP, o governo PSD de Cavaco confirmou-o. Num quadro de integração europeia e de alterações constitucionais, a direita revanchista viu a janela de oportunidade para intensificar a contra-revolução, alicerçada na entrada na CEE em 1986 e muniu-se de justificações para a venda e desintegração do sector estratégico Estado.  

A verdade é que a entrada de Portugal na CEE, a par de toda a intensa propaganda feita, veio a confirmar com o decorrer dos tempos, a natureza do projecto em questão. A revisão constitucional de 1989 introduz na Constituição da República as privatizações, sendo que o governo PSD de Cavaco já vinha a preparar terreno para a integração capitalista na CEE, com a Lei n.º 84/88 que transformava as empresas públicas em sociedades anónimas e permitia a privatização de 49% das mesmas.

É importante recordar que numa entrevista à RTP no programa 1ª página, a 16 de Maio de 1989, o que dizia Cavaco sobre esta lei, a Revisão Constitucional e o Sector Empresarial do Estado: «Pode-se de falar privatização parcial. a Constituição da República neste momento está a ser revista, há um entendimento entre o PS e o PSD para que sejam possíveis as privatizações porque não faz qualquer sentido um governo não cumprir o seu programa, o seu programa de privatizações. Eu espero bem que essa norma seja aprovada porque, não tenhamos dúvidas, se a Constituição da República por qualquer coisa não fosse revista, este governo ou qualquer governo não tivesse possibilidade de transferir a propriedade de muitas das nossa empresas públicas para a iniciativa privada, nós teríamos muitas dificuldades em ganhar a batalha da integração plena na europa comunitária.»

Com a Revisão Constitucional de 1989, o PSD consegue assim aprovar a Lei nº 11/90, Lei Quadro das Privatizações. Apesar disto, e tendo em conta todo os desmantelamentos que se verificaram com as privatizações, a TAP aguentou-se na esfera do Estado, mas passado um ano foi promulgado o Decreto-Lei nº 312/91, de 17 de Agosto, onde a companhia aérea nacional passava a ser uma Empresa Pública a Sociedade Anónima. O objectivo era o mesmo de 1953 com o Decreto-Lei 39188 que tornou a TAP uma Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada. A grande mudança está no facto deste decreto ser prova cabal da perda de soberania pois surge por imposição externa. 

A 14 de Dezembro de 1987, um ano depois da entrada de Portugal na CEE e na sequência do Acto Único Europeu que cria as etapas para a implementação do mercado interno, dá-se a decisão do Conselho Europeu, a decisão 87/602 /CEE, que considerava que devia ser «aumentada a flexibilidade e a concorrência no sistema de transportes aéreos da Comunidade» e que deviam «ser afrouxados os limites artificiais à capacidade que as transportadoras aéreas podem oferecer e ao seu acesso ao mercado». A decisão vai mais longe e assume frontalmente o dogma neoliberal «considerando que o aumento de acesso ao mercado irá estimular o desenvolvimento do sector dos transportes aéreos da Comunidade e dar origem a serviços melhorados para os utentes» e limitando a participação dos Estado nas companhias de bandeira umas que seria necessário assegurar que as limitações em determinados Estados e companhias não propiciassem  «vantagens injustificadas a qualquer transportadora aérea».

Rapidamente se entende que o caminho dessa decisão era a liberalização, não fosse a intenção replicar a Lei de Desregulamentação das Companhias Aéreas dos EUA. Claro está que este foi o primeiro grande pacote comunitário relativo à aviação civil, mas já dava para entender as intenções e o governo português não se via rugado com elas. 

O segundo pacote de medidas comunitárias visou continuar a desbravar este caminho iniciado. Primeiro com o Regulamento (CEE) nº 2342/90 que impôs a liberalização das tarifas entre Estados-membros e depois com o Regulamento (CEE) nº 2343/90 de de 24 de Julho de 1990 que visava “consolidar” o mercado interno, imprimir a lógica concorrencial abrindo o «acesso ao mercado» e assim obrigando os Estados-membro passar licenças às companhias comunitárias para poderem operar nos seus territórios. Isto viria a complicar a vida da TAP que, passando a operar dentro da lógica vigente de competição, teria agora de digladiar-se com empresas bem maiores e com mais capacidade. 

Do rol de medidas comunitárias, o último destes pacotes data de 1992 tendo já em mente o Espaço Schengen, a abertura das fronteiras e livre-circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais. Assim, os Regulamentos (CEE) nº 2407/92, o nº 2408/92 e o nº 2409/92 de 23 de Julho vieram dar o passo final e consolidar toda a desregulamentação, procurando apenas enquadrar, seja a nível de tarifas, seja na emissão e permissão de concorrência, seja pela abolição de rotas exclusivas. É o Regulamento (CEE) nº 2407/92 que (veja-se no mais recente caso privatização da TAP que na segunda parte de artigo) que mais a fundo vai. Este regulamento passou a ditar que as empresas teriam obrigatoriamente que ser maioritariamente detidas por capitais públicos ou privados de Estado-membro, a necessidade de as transportadoras aéreas terem que comprovar capacidade financeira que lhes permitisse cumprir com as suas obrigações e que os gestores ou administradores teriam que comprovar a sua idoneidade moral baseando-se na sua boa conduta. Tudo isto passaria a entrar em vigor a 1 de Janeiro de 1993.

Em 1993, o balanço dos resultados da TAP não era animador. Com a liberalização do transporte aéreo no quadro comunitário, a companhia aérea ressentiu-se e entrou em pré-falência. No segundo semestre desse mesmo ano o governo elabora então o Plano Estratégico de Saneamento Económico e Financeiro (PESEF). 

Importa frisar que o PESEF não era só mais uma «reestruturação estratégica». Era acima de tudo um plano que previa um corte de gastos que em primeira análise implicava despedimento dos trabalhadores, uma uma injecção de capitais que contrariasse a tendência financeira verificada e abatesse o passivo e a privatização parcial da TAP. No fundo, o PSD procurava embrulhar, fazer o laço e oferecer a um monopólio da concorrência. 

O Plano previa a recapitalização da companhia mediante um aumento de capital de 180 mil milhões de escudos com tranches anuais entre 1994 e 1997, bem como o pagamento de crédito por parte do Estado. A contrapartida para a empresa seria a cessação, no final do período de aplicação do plano, do conjunto de isenções fiscais de que a TAP beneficiava, a redução do número de trabalhadores através de programas de reforma antecipada, pré-reforma ou despedimento (pois estava previsto uma redução de trabalhadores de 9691 em 1993 para 7110 em 1997), a introdução de um regime de austeridade através da redução de todas as despesas desnecessárias e, por fim, a iniciação, em 1997, do processo de privatização parcial do capital da TAP.

Como não podia deixar de ser, o governo já condicionado na condução dos destinos do seu país, por toda uma Comunidade Europeia alheia aos interesses dos povos, teve de submeter o PESEF à aprovação. De acordo com os artigos 92º e 93º da versão consolidada do Tratado de Roma, com a redação que lhe foi dada pelo Tratado de Maastricht, os auxílios concedidos pelos Estados «são incompatíveis com mercado comum na medida em que afetam as trocas comerciais entre os Estados-membros os auxílios concedidos pelos Estados o provenientes de recursos estatais independentemente da forma que assumam que falseiem ou ameacem falsear concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções» a não ser que sejam «destinados a fomentar a  realização de um projecto importantes interesse europeu comum ou sanar uma perturbação grave da economia do Estado-membro». Como se isso não bastasse, acrescenta: «A Comissão procederá, em cooperação com os Estados-membros, ao exame permanente dos regimes de auxílios existentes nesses Estados», como «proporá também aos Estados-membros as medidas adequadas que sejam exigidas pelo desenvolvimento progressivo ou pelo funcionamento do mercado comum».

Começado a ser elaborado no segundo semestre de 1993, o PESEF andou por muitas mãos e passou por vários consultores que desenhavam vários cenários para a companhia portuguesa. Só chegou à Comissão das Comunidades Europeias a 31 de Janeiro de 1994 ao abrigo destes últimos artigos. Como tal, a decisão nº 94/698/CE relativa ao aumento de capital, garantias de crédito e isenção fiscal existente em favor da TAP reiterou o caminho a seguir e vincou a necessidade de liberalização da área da aviação civil. Considerando que todo o plano era «compatível com o mercado comum e com o Acordo do Espaço Económico Europeu», ficou o aviso para a TAP não aumentar a sua oferta para além dos valores fornecidos e ajustar esse crescimento numa base anual caso o crescimento real do mercado relevante do Espaço Económico Europeu seja inferior ao crescimento da oferta da TAP.

O governo ficou também avisado que caso a Comissão decidisse, após consultar Portugal, poderia nomear um perito independente para avaliar o progresso do plano de reestruturação e o cumprimento das condições associadas à aprovação do auxílio, poderia adiar as datas de pagamento por mais quatro semanas, para permitir que a formulação das suas observações  e que o auxílio apenas poderia ser utilizado para os efeitos da reestruturação e não para adquirir participações adicionais noutras transportadoras aéreas do Espaço Económico Europeu. A Comissão acabava a avisar que «em conformidade com a legislação comunitária, Portugal se abstenha de conceder mais auxílios à TAP».

Na decisão da Comissão não deixa de ser revelador o conjunto de apreciações feitas sobre a TAP como: «Muito embora seja a transportadora aérea portuguesa mais importante, a TAP (...) é uma das mais pequenas transportadoras aéreas «nacionais» da Comunidade» e «No contexto comunitário, o mercado doméstico da TAP é um mercado periférico e relativamente pequeno. Portugal constitui essencialmente um destino de férias caracterizado por um tráfego com baixa rentabilidade, em que a TAP enfrenta a concorrência de transportadoras aéreas não regulares, bem como de transportadoras aéreas regulares. Apesar da sua dimensão limitada, a TAP explora uma rede muito heterogénea.» Estas considerações revelam apenas que a Comissão sabia muito bem dos impactos da sua famigerada liberalização. 

Se o PSD matava a TAP, o PS esfolava-a 

Apesar de elaborado pelo governo PSD de Cavaco, o PESEF é, na prática, quase todo colocado em prática pelo governo PS de Guterres. Este pormenor não é irrelevante na medida em que se o PSD procurou seguir as diretrizes da Comissão, o PS não se absteve. Poderá surgir quem diga que o PS foi obrigado a seguir o que já tinha sido começado e que o facto do PS, nas eleições legislativas de 1995, não ter obtido uma maioria absoluta o tenha obrigado a fazer acordos com o PSD. A realidade é que todas as opções tomadas foram, para além de premeditadas, ideológicas. Os documentos falam por si. O Programa do XIII Governo Constitucional é o mais revelador possível e espelhava bem, não só a política de direita leva a cabo, como a recusa obstinada de uma política de esquerda, bem como a visão que o PS tinha do próprio Estado.

Tal programa de Governo contemplava um ponto para a «Política Orçamental e Privatizações» e no subponto destinado às privatizações podia ler-se que o Governo iria aplicar-se numa política de privatizações «como instrumento decisivo de redução do "stock" acumulado de Dívida Pública» e que para tal iria criar um «Programa de Privatizações». O tal programa foi imposto em dois pacotes e em ambos a aviação cível estava incluída. No primeiro pacote, que nasce da Resolução do Conselho de Ministros nº 21/96, que se destinava ao bienio 1996/1997, vinha escrito que seriam «iniciados os trabalhos tendentes à privatização das actividades desenvolvidas pela ANA - Aeroportos e Navegação Aérea, E. P.». No segundo pacote, aprovado com a Resolução do Conselho de Ministros nº 65/97, lia-se, no ponto referente ao sector dos transportes e infra-estruturas conexas que «No biénio de 1998-1999 proceder-se-á à abertura do capital da TAP a outros accionistas de forma a permitir a participação de parceiros estratégicos que permitam o reforço da competitividade da companhia. O Estado deixará, assim, de ser o único accionista da transportadora aérea, continuando, contudo, a ser um importante accionista de referência».

Daqui retira-se o objectivo do PESEF. O plano, não visou uma simples reestruturação da empresa ou a eliminação do passivo. A ideia inicial do PSD e seguida pelo PS fora embrulhar a TAP para depois oferecer um sector estratégico. Toda a sequência dos actos seguintes são já em torno desse processo de privatização. Surgiram então os interessados na TAP: a Swissair, e a Air France. Das duas interessadas, o governo de Guterres, descartou a hipótese francesa e centrou-se na suiça. Essa relação com a Swissair começa em 1997 quando são feitos os primeiros acordos com a TAP e esta entra na Aliança Estratégica Qualiflyer, criada pela  Austrian Airlines, Crossair e Swissair.

Dada a aproximação entre a TAP e a Swissair e a conhecida intenção do governo, o ano de 1998 conhece assim o Decreto-lei 122/98, de 9 de Maio que estipula todo o desenho da reprivatização da TAP, colocando duas fases no processo, sendo a primeira a emissão de «acções em operações de aumento do capital social da TAP, SGPS, reservadas à subscrição por parceiros estratégicos da TAP, S. A.». Desta feita, a TAP conhece mais uma transformação e com o Decreto-lei define que seria constituída uma Sociedade Gestora de Participações Sociais, que adotaria o tipo de sociedade anónima e a denominação passaria a ser «TAP - Transportes Aéreos Portugueses, SGPS».

Nesta fase falamos de um desenho legislativo à medida dos interesses privados. Ficava mais evidente, de tempo para tempo, que o poder político estava submetido ao poder económico. A TAP, apesar da lei e das intenções, teria que estar estruturada à medida dos interesses do interessado, a Swissair, mas também do Conselho da União Europeia. Como tal, há dois momentos importantes.

Há o decreto-lei 275/99, de 23 de Julho que regula as actividades de assistência em escala ao transporte aéreo nos aeroportos que é mais uma vez provocado pela União Europeia Directiva n.º 96/67/CE, do Conselho, de 15 de Outubro de 1996, relativa ao acesso ao mercado da assistência em escala nos aeroportos da Comunidade, a qual determina a abertura do referido mercado à concorrência. Na prática desagrega a TAP e obriga à criação de várias empresas para um conjunto de funções já existentes, como por exemplo: assistência administrativa em terra e a supervisão, assistência a passageiros, assistência a bagagem, assistência de operações na pista, assistência de limpeza e serviço do avião ou assistência de restauração.

Com esse Decreto-lei e com a Directiva imposta, o governo procede à alteração do decreto-lei de 1998 que estipulava o modelo da privatização e altera-o com o Decreto-Lei nº 34/2000, de 14 de Março que altera o processo de reprivatização indirecta do capital social da TAP e aprova uma nova reestruturação da empresa. Aqui, a TAP começa a ganhar a forma que hoje conhecemos e sob a justificação da modernização, mas na realidade pela imposição do Conselho, a TAP é desagregada em ramos e assim reestruturada de forma a alegadamente «assegurar a viabilidade económica sustentada das três áreas de negócio principais da empresa, passíveis de autonomização em sociedades - transporte aéreo, assistência em escala e manutenção e engenharia». Ficou assim criado um autêntico grupo que passou a conter a TAP-Air Portugal, a TAP - Manutenção e Engenharia, S. A. e a TAP - Serviços Portugueses de Handling, S. A., ou, abreviadamente, TAP - SPdH, S. A.

À medida que avançavam as negociações, a legislação para a privatização foi avançando à medida dos interesses da Swissair. Esta absorção por parte de um grande grupo é parte determinante dos objetivos da Comissão na medida em que respeita as leis da liberalização e concorrência capitalista. Poderíamos questionar se não estávamos perante uma etapa de capitalismo de Estado que criava as condições ideais para os grandes grupos económicos. Neste caso, todas as negociações foram feitas à margem do conhecimento público e para além do interesse mútuo (Governo e Swissair), alheio aos do país, do Estado e dos trabalhadores.

Surgiu com algum espanto geral a maneira como a Swissair passou a ameaçar abandonar o negócio, até porque não havia motivo aparente para tal. A verdade é que a 1 de Fevereiro de 2001 substituindo Philippe Bruggisser, que tinha impulsionado o negócio, Eric Honegger, Presidente da Swissair, veio a público dizer «Considerámos a situação e chegámos à conclusão que do ponto de vista estratégico uma participação da TAP não iria compensar o grande investimento que tínhamos que fazer». Com isto, a direita, representada pelo PSD de Durão Barroso, apenas culpou o governo acusando-o de incompetência, ilibando a empresa privada. Havia de facto incompetência pela inocência com que o governo tratou de todo o processo, mas tal só aconteceu dada a opção política de conivência com os interesses de um grande grupos económicos. Poderia ser apenas o abandono de um negócio, no entanto, havia um acordo assinado com cláusulas e seria necessário a Swissair ressarcir a TAP pela rescisão do mesmo.

Surge então o problema da Swissair estar em falência. Philippe Bruggisser que tinha sido COO e Presidente da Swissair, em 2006 viria a ser acusado de falsificação de documentos, má gestão e danos aos credores, sendo condenado a um dos crimes e no momento da ruptura do negócio com a TAP, a empresa suiça deixava na mão outras empresas no quadro de parcerias por via da Qualiflyer e a empresa de aviação francesa Sabena da qual detinham 49% dos capitais sociais. A Swissair e Sabena acabariam por falir, deu-se também o desmembramento do Grupo Qualiflyeraté e até esse momento, em Portugal, discutia-se os pagamentos das indemnizações devidas. 

Tudo isto levou à Resolução da Assembleia da República nº 22/2000 que constituiu uma comissão eventual de inquérito parlamentar à gestão da TAP que ia desde o Plano Estratégico de Saneamento Económico e Financeiro, bem como à organização do seu processo de privatização. Questões a que importava responder, mas também questões a que alguns impuseram a bruma dos tempos. O negócio com a Swissair, os contornos e os objetivos, à data, eram revestidos com um carácter de urgência para o futuro e sobrevivência da TAP.

O negócio falhou, falhou a entrega de um sector estratégico, mas a TAP, apesar de resistir na esfera pública, ganhou uma estrutura que a fragilizou e passou a ser alvo da mais profunda instrumentalização. Desde o modelo de negócio aplicado até à compartimentação de sectores da empresa, a companhia aérea reunia todas as condições para salvaguardar os interesses dos grandes grupos económicos em detrimento dos interesses do Estado. Pode ter falhado o negócio, mas não falhou o plano de desmantelamento da TAP. O estado da TAP exige que não se deixe a culpa morrer sozinha.

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