Foi há muito tempo, ainda no século passado, que uma Comissária Europeia – Loyola de Palacio - verbalizou o objectivo do processo de liberalização do sector aéreo na UE: reduzir o quadro de companhias de bandeira a três, evidentemente, dizemos nós, centradas nos três Estados que determinavam o andamento do processo – França, Alemanha e Reino Unido. Isso já aconteceu no essencial, sendo a TAP uma das poucas que ainda não foi arrastada para essa conclusão. Hoje, diria Loyola de Palacio como dizem todos os que hoje querem fazer o mesmo: é necessário consolidar o mercado.
Ora agora o Polígrafo descobriu que a letra dos Tratados Europeus e das Directivas não permite que a UE imponha uma privatização. E vai de taxar de falsa a afirmação de Paulo Raimundo, num debate eleitoral, de que a União Europeia só permitiu meter dinheiro na TAP porque o fim era a privatização. É uma forma de pressão colocada sobre aqueles que, tendo uma perspectiva diferente da perspectiva dominante, são sistematicamente confrontados, por via dessa diferença, pelas opiniões dominantes.
Mas vamos aos factos. E os factos não são apenas os Tratados e os seus conteúdos.
Desde logo importa recordar que, perante uma pandemia que tinha colocado o sector aéreo mundial no chão e à beira da falência, o Estado Português foi obrigado a pedir autorização à União Europeia para poder auxiliar a maior empresa portuguesa, a TAP. Só esta obrigação já é um condicionamento, numa UE onde os donos das empresas privadas não foram obrigados a pedir autorização para as capitalizar. As regras da UE tornam mais difícil a uma grande empresa ser pública que privada, e empurram as empresas estratégicas, sobretudo as dos países periféricos, para a privatização.
Trata-se uma pressão geral, sistemática. Intensificada pelas directivas para a liberalização de cada sector (as mesmas que querem proibir a TAP de deter a SPDH e que proíbem a gestão de aeroportos de ter em conta os interesses das companhias nacionais). Que pontualmente, como aconteceu no quadro do Pacto da Agressão, chega à imposição frontal de privatizações como a da TAP (ou não fazia parte da Troika a Comissão Europeia?).
Esse condicionamento está também bem presente no processo de resgate e reestruturação da TAP durante a pandemia.
A Decisão (UE) 2022/763 da Comissão Europeia que autoriza a operação mostra um pouco de como se faz a pressão para a privatização. Recordemos que a Comissão Europeia pode proibir o apoio de Estado, o que funciona como uma ameaça gigantesca para um governo, como o do PS, sem a mínima vontade de enfrentar a Comissão Europeia.
No ponto 57 da deliberação a Comissão Europeia reconhece que «a Comissão levantou dúvidas, em primeiro lugar, quanto à proporcionalidade do auxílio, sublinhando que as fontes de contribuição própria eram maioritariamente provenientes da redução dos custos, ou seja, cingiam-se a evitar custos, sem novo financiamento por parte de um investidor ou mutuante do mercado [...]» para depois esclarecer, no seu ponto 67, como o Estado português superou essas dúvidas, registando que «Novo financiamento dos investidores e do mercado: Portugal indica que a TAP Air Portugal foi contactada por potenciais novos investidores, com interesse numa futura compra de participações [...]». A Comissão começa por considerar fazer falta uma outra fonte de financiamento – não tem que ser privada, claro, basta não ser do Estado português! – dificuldade que o Governo resolve dizendo ter interessados em comprar capital da TAP.
Por fim, o ponto 248 da mesma deliberação refere que «As estimativas da Comissão revelam um crescimento do valor do capital próprio da TAP Air Portugal ao longo do período de planeamento, que sobe de […] EUR – […] milhões de euros em 2022 para […]1 milhões de euros em 2025. A Comissão considera que, a partir de hoje, se trata de uma previsão razoável da remuneração que Portugal poderia auferir com o auxílio estatal através da venda da sua participação à TAP Air Portugal.»
Na mesma Decisão, fica claro que as privatizações da SPDH e da Cateringpor2 foram uma imposição da Comissão Europeia, que tão pouco deveria ter legitimidade para o fazer. Sem esquecer que outras imposição da Comissão Europeia – como a entrega a um concorrente de 18 slots no Aeroporto de Lisboa e uma redução brutal de trabalhadores que objectivamente fragilizou a empresa e a sua capacidade operacional – contribuem para empurrar a empresa para privatização.
É pois evidente que a Comissão Europeia condicionou o processo, e condicionou-o no sentido da privatização. É a esse resultado que conduzem o conjunto de regras «objectivas» que criou. Essa pressão existiu, e isso não deveria levantar dúvidas para ninguém. Estas pressões – ilegais como bem recorda o Polígrafo – não servem de álibi a um Governo da República, que a elas deveria resistir e a elas pode resistir. Mas que existem, existem.
E existem porque a Europa está num processo onde a crescente centralização e concentração de capitais, e a destruição das soberanias nacionais dos Estados periféricos são objectivos principais, e nunca assumidos, da intervenção da Comissão Europeia.
- 1. Estamos a usar a versão censurada dos documentos que a Comissão Europeia e o Estado português tornaram pública. O PCP conhece o conteúdo da versão não censurada, por via da CPI à TAP.
- 2. Ponto 29 da Decisão (UE) 2022/763 e pontos 278 e 279, que deixam claro que essa venda é para prejudicar a TAP e beneficiar a sua concorrência.
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