A chamada «caravana migrante», integrada por milhares de pessoas orginárias da América Central – na sua maioria hondurenhas – partiu no passado dia 13 da cidade de San Pedro Sula, nas Honduras, com o intuito de atravessar a Guatemala e o México, antes de chegar à fronteira com os Estados Unidos. Muitos partiram apenas com a roupa que têm no corpo, decidindo empreender uma jornada de cerca de 4000 quilómetros com a esperança de encontrar trabalho e melhores condições de vida, e procurando escapar à violência e à falta de perspectivas nos seus países de origem.
A administração norte-americana reagiu afirmando que uma eventual chegada dos «marchantes» às suas fronteiras constitui uma «ofensa à sua soberania» e ameaçou retirar a ajuda financeira à Guatemala, às Honduras e a El Salvador, caso o grupo tente atravessar a fronteira.
Com os cerca de 3000 migrantes a avançarem já pelo México adentro, o Partido Liberdade e Refundação (Livre), liderado pelo ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya, condenou a reacção das autoridades norte-americanas.
Num comunicado, citado pela Prensa Latina, afirma: «Se os Estados Unidos estão habituados a promover golpes de Estado e impõem medidas económicas draconianas e ditaduras criminosas na América Latina, é inaceitável que, agora, maltratem e rejeitem as pessoas que fogem da morte e de um sistema de exploração grosseiro e desumano.»
A propósito de declarações do Secretário de Estado, Mike Pompeo, que visam responsabilizar a oposição hondurenha «pela grave crise humanitária que os emigrantes enfrentam», o Livre acusa Pompeo de, na sua qualidade de ex-director da Agencia Central de Inteligência (CIA), ser conhecedor da «cumplicidade da ex-Secretária de Estado Hillary Clinton e do Comando Sul [dos EUA] no golpe de Estado militar [perpetrado] nas Honduras em 2009», uma «acção violenta que destruiu a democracia e afundou o país na miséria».
A miséria e a violência – promovida pelo actual governo neoliberal hondurenho, em conluio com paramilitares colombianos e esquadrões da morte – são a causa da realidade que «força milhares de compatriotas a saírem [do país], em busca de emprego, protecção e refúgio».
Face às duras críticas que o êxodo «migrante» mereceu da parte de Donald Trump, o presidente da Guatemala, Jimmy Morales, afirmou este sábado, numa conferência de imprensa conjunta com o seu homólogo hondurenho, Juan Orlando Hernández, que estão «a trabalhar para garantir um regresso pacífico e seguro, e evitar que estas manifestações se continuem a dar no futuro», revela a HispanTV.
Hipocrisia mediática e institucional
Em declarações proferidas este domingo à HispanTV, José Egido, especialista em temas internacionais, frisou que a crise migratória que as Honduras enfrentam revela o «completo fracasso das políticas económicas e sociais» vigentes no país, na sequência do golpe de Estado contra o governo legítimo do presidente hondurenho Manuel Zelaya, em 2009, executado com o apoio do então presidente norte-americano Barack Obama e da sua Secretária de Estado, Hillary Clinton.
O especialista destacou ainda a hipocrisia mediática e de certas instituições, que construíram uma narrativa de «catástrofe humanitária» associada à migração de cidadãos venezuelanos para países vizinhos, alimentando o pretexto para uma intervenção militar, mas não estabelecem as mesmas premissas ao lidar com a questão nas Honduras, de onde a população, empobrecida, foge das condições impostas pelas políticas neoliberais.
«Nem a OEA [Organização de Estados Americanos], nem os Estados Unidos, nem o Grupo de Lima falam de qualquer tipo de sanções contra este governo, que força, de facto, [a população] a sair para não morrer de fome, milhares de pessoas a que se juntam cidadãos [de outros países] latino-americanos, como os da Guatemala, cujos governos seguem as políticas norte-americanas», disse Egido, destacando o «absoluto fracasso» de tais políticas, que levam as pessoas à miséria.
Nas declarações à HispanTV, o especialista espanhol em temas internacionais elogiou ainda a «caravana», pela sua «integridade e coragem».
Tratados de livre comércio e deterioração económica
Numa peça publicada dia 19 pelo portal venezuelano Misión Verdad, intitulada «La caravana migrante: hondureños huyen del Tratado de Libre Comercio» [A caravana migrante: os hondurenhos fogem do Tratado de Livre Comércio], destaca-se a degradação económica provocada pelas políticas do governo hondurenho, «eleito [no final de 2017] sob fortes acusações de fraude por parte da oposição», e que estão a conduzir a uma situação de «migração forçada».
No centro destas políticas económicas estão, segundo a peça, os tratados de livre comércio (TLC) firmados pelas Honduras e outros países centro-americanos com os Estados Unidos e a Europa, que consagram a salvaguarda dos interesses das «grandes corporações transnacionais em detrimento das pequenas economias da região».
Como exemplo do contributo dos TLC para a deterioração da situação económica e das condições laborais dos trabalhadores hondurenhos, o texto refere o Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana (DR-CAFTA, na sigla em inglês), firmado em 2004 e ratificado pelas Honduras no ano seguinte, com forte oposição sindical e de partidos de esquerda.
Se, por um lado, as multinacionais criaram empregos, elas propiciaram também as condições para o aumento da exploração dos trabalhadores, o agravamento das condições de higiene e segurança no trabalho, com a cumplicidade dos governos hondurenhos, destaca o texto.
Para além disso, a agricultura familiar, sustentável ao longo de gerações sucessivas, foi fortemente atingida, levando ao aumento exponencial do desemprego no sector agrícola. «Milhares de pessoas tiveram de emigrar para o México ou os Estados Unidos em busca de trabalho, porque passou a ser impossível ganhar o suficiente para viver no campo e sustentar uma família», lê-se no texto.
O direito à emigração e os seus negócios
Se, por um lado, emigrar é um direito, o texto chama a atenção para fenómenos que estão associados a esse «direito», na medida em que, subjacente a ele, está a «asfixia económica» de países e a «pauperização das condições de vida» por parte de potências hegemónicas.
A peça realça, ainda, os interesses dessas potências em beneficiar de mão-de-obra estrangeira e barata, com a qual é fácil não manter qualquer tipo de «compromisso formal» – algo entranhado «no neoliberalismo que vigora nos Estados Unidos e seus satélites», afirma-se.
Nesta perspectiva, sob o «direito» a emigrar encaram-se os interesses económicos que procuram «legitimar a escravidão, mobilizando mão-de-obra que, antes de chegar ao destino, é vendida a quem mais oferece».
Neste sentido, lembra que existem redes que operam entre a América Central e os Estados Unidos e que negoceiam com os «sem papéis» em busca do «sonho americano».
Para muitos, esta quimera tem um custo muito elevado: morrer no deserto do Arizona ou afogado no Rio Grande. Outros acabam presos em redes cúmplices com as autoridades fronteiriças, e, dentro ou fora dos EUA, enfrentam os mais variados riscos, da detenção e repatriamento à escravização pelos cartéis do narcotráfico que disputam entre si o controlo dos territórios e das suas presas.
Outro negócio é o das prisões norte-americanas onde são detidos os migrantes ilegais. No ano fiscal de 2017, a Agência de Imigração e Controlo de Alfândegas (ICE) deteve mais de 143 mil pessoas e, de acordo com a Misión Verdad, mais de metade permanece em prisões privadas. Trata-se do maior sistema de detenção de migrantes, uma fonte de lucros enorme para as empresas que o gerem.
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