A história de João Soares é semelhante à de milhares de moradores e lojistas que deram alma à cidade do Porto. A «casa», como gosta de chamar ao espaço onde há 21 anos gere uma livraria de livros usados, foi vendida. O novo proprietário disse que precisava do espaço e, atira o alfarrabista, «pôs o pessoal a andar daqui para fora».
«A mim, deu-me para ficar aqui até ao final de Fevereiro, vai indemnizar-me. Arranjei um espaço mais pequeno do que este e tive que arranjar outro espaço ainda para meter tudo o que tenho». Admite que não fazia ideia de ter tantos livros, tal como não imaginava que um dia teria de abandonar o n.º 40 da mítica Rua das Flores, que «tinha de tudo, em quantidade e em qualidade», e que agora, lamenta, «está reduzida a esplanadas, restaurantes, comes e bebes».
Apesar de algumas excepções, reconhece com mágoa que a rua, mas também a zona histórica envolvente, está a ficar «muito descaracterizada» e que «só com muita sorte» se ouve falar em português. «Se nos sentarmos na esplanada somos atendidos em inglês», revela.
E, se desaparecem as pessoas que faziam parte do Centro Histórico do Porto, João Soares admite que possa vir a desaparecer também a classificação de Património Mundial já que, reforça, «as características que o elegeram estão a desaparecer».
Desde a criação do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), com a aprovação do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), em 2012, registaram-se acima de 8000 despejos a nível nacional, dos quais 1900 no Porto.
Apesar de elevados, os números não chegam a ser oficiais, seja porque os agentes de execução não são obrigados a comunicar a desocupação dos imóveis ao BNA, pelos despejos «encapotados» devido às subidas abruptas dos valores das rendas ou pela não renovação dos contratos.
Uma cidade disfuncional
André Bernardino, do movimento portuense Direito à Cidade, confirma a transformação que tem vindo a ser operada na Invicta. Conta que a cidade «passou a estar configurada para turistas e elites», e que os poucos moradores que sobrevivem nas zonas mais centrais deixaram de ter serviços capazes de satisfazer as suas necessidades. «Os cafés ou mercearias que passaram a existir são direccionados para outro público, não são para as pessoas que cá moram», denuncia.
A gentrificação acaba por empurrar os moradores para a periferia. Na Baixa do Porto, graças ao NRAU de Assunção Cristas, os preços das rendas subiram cerca de 88% desde 2013. Com vistas para o Douro, a freguesia de Miragaia, que em dois anos perdeu 10% da população, espelha bem as consequências da especulação imobiliária.
O activista critica ainda Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, pelo facto de «não ter feito nada» desde a aprovação da nova lei do Alojamento Local, que, afirma, «apesar de não resolver as problemáticas da habitação, nem ser um grande travão à especulação, poderia controlar ou pelo menos atenuar o que está acontecer».
No passado dia 23 de Outubro, Rui Moreira assegurou em reunião da Assembleia Municipal que, ao contrário, por exemplo, da tomada de decisão em Lisboa, a Câmara do Porto não iria restringir novas licenças de alojamento local na cidade.
«Isto é um deslumbramento»
Regressamos à pedonal Rua das Flores, invadida pelo pó das obras e pelo barulho das máquinas, onde deverá ser erguido mais um alojamento local. Na livraria de João Soares, que abandona definitivamente esta morada em 28 de Fevereiro, a mudança começa a fazer-se.
Até ser assaltado pela venda do prédio, João Soares pagava de renda 85 euros. Actualmente o valor é de 750 e é também esta a quantia que vai começar a pagar no n.º 231 da Rua Formosa. «Isto é um deslumbramento», refere a propósito dos valores a que chegaram as rendas na Invicta.
Diz que já tem alguns concorrentes na nova morada, mas que isso não o afecta. «Quantos mais melhor e se estivessem todos na mesma zona seria óptimo» porque, explica, «é um risco enorme ir a um alfarrabista isolado que pode não ter o que nós queremos».
2939
Segundo dados do Registo Nacional do Turismo, entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2018 foram criados 2939 registos de alojamento local no concelho do Porto
Defende que este é um negócio com características «muito especiais» e que nenhuma faculdade ensina a vender livros, sobretudo livros usados, mas que ninguém liga a isso.
«Deixam morrer, como pode morrer uma mercearia ou uma salsicharia, morre também uma livraria. Neste caso não vai morrer, mas vai perder características», reconhece.
Ao alfarrabista, que começou a vender livros na feira de Vandoma, faltam palavras para descrever o sentimento de abandonar a Rua da Flores, mas afirma não ter receio. «Nem sei explicar bem, é uma nostalgia que vou tentar, e tenho tentado, vencer, porque isto continua. Eu já não vou andar por cá muitos mais anos mas isto é para continuar, ficam os meus filhos. O meu medo é já não me habituar bem ao novo traçado, à nova configuração, vamos ver como vai ser», desabafa.
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