O triunfo imperial do espectáculo bordelizou a cultura, com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. Uma poderosa máquina trituradora, onde se misturam pepitas e ganga até as indiferenciar numa poeira de lumaréus de lantejoulas, rasoiradas pela bitola de tudo ser cultura para nada ser cultura. Uma cultura de impacto máximo e de obsolescência imediata, numa acelerada sucessão de modas e humores públicos que procura extrair o máximo lucro do empobrecimento moral, intelectual, em que tudo é diversão promovida pelas indústrias culturais e criativas, onde tudo se normaliza e esvazia de sentido. Um dos mecanismos que o capitalismo pós-democrático usa com eficácia, que promove a alienação até a transformar num conformismo petulante em que não se distingue a realidade das aparências. O objectivo final é que os povos fiquem cada vez mais incapazes de perceber os verdadeiros jogos políticos para castrarem a sua capacidade de intervenção.
É a crise profunda do sistema democrático, em que a política se dissolve no entretenimento promovido pelas indústrias culturais e criativas e em que às notícias – mesmo as sistematicamente manipuladas pelos grandes centros de difusão ao serviço do pensamento único, mesmo as informações pretensamente «confiáveis» e «objectivas» da comunicação social estipendiada que são propaganda, produzida em cooperação com o Estado visando promover os interesses da classe dominante – se sobrepõem os entretenimentos travestidos de informação, os likes e tweets das redes sociais, tornando-se na prática o único contacto directo com a política. Uma situação para a qual não há respostas fáceis quanto mais profundos são os dilemas com que as sociedades se confrontam, o que facilita a emergência de fanáticos, ditadores, demagogos, todos fascistas que se apresentam como democratas, porque, como Amos Oz lucidamente esclarece nos seus ensaios políticos, «os fanáticos oferecem a redenção em duas frases»1. Textos em que apresenta Adorno como um quase profeta quando, com Horkheimer2, definiu a indústria cultural como um sistema político e económico que tem por finalidade produzir bens de cultura – filmes, livros, música popular, programas de televisão, etc. – como mercadorias e como estratégia de controlo social.
«O triunfo imperial do espectáculo bordelizou a cultura, com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. Uma poderosa máquina trituradora, onde se misturam pepitas e ganga até as indiferenciar numa poeira de lumaréus de lantejoulas, rasoiradas pela bitola de tudo ser cultura para nada ser cultura»
Uma estratégia que se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, com a Guerra Fria Cultural3 e está triunfante com as políticas pós-política.
Os anos 60 são os anos de corte em que se inicia a passagem para a política, a economia e cultura actuais. Em que o papel do estado se começa a alterar substancialmente, passando de um Estado interventivo e garante do bem-estar para o tendencialmente Estado mínimo neoliberal, dominado pelas leis do mercado e do paradigma da iniciativa privada.
É o fenómeno da globalização que decorre do desenvolvimento capitalista, em que se vende a ideia de que a liberdade do mercado seria mais igualitária quando não há nada mais desigual do que o tratamento igual entre desiguais, em que os extremamente ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres ainda mais pobres. Marx já tinha demonstrado, em O Capital, que a liberdade de mercado produz níveis cada vez maiores de desigualdade social4.
Esta nova ordem económica impõe-se com violência crescente. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto a lógica do lucro. A nova ordem é fanática e totalitária. Para esta nova ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofónicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espectacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria artística que atravessa fronteiras. Um sofisticado projecto político que procura o consentimento popular baralhando as liberdades individuais e de escolha com a liberdade do mercado.
Para essa nova ordem é fundamental anular a cultura enquanto núcleo de práticas e actividades, enquanto instrumentos de produção material, recepção e circulação que dão sentido à vida e ao mundo.
Nesse crescente vazio político e social a cultura e as artes mudaram radicalmente, substituindo a representação pela apresentação. A febre modernista de pesquisa, de romper com a tradição de ousar tudo, de perseguir o objectivo de tornar o acto de criação um acto consciente de crítica radical do espírito burguês, do seu racionalismo estreito, de desprezo pelo seu culto pelo dinheiro, é substituída pela temperatura zero pós-moderna, de individualismo exacerbado e flutuante, da sobreposição até à amálgama indistinta da arte com a moda, com a produção de pseudo-acontecimentos alinhados pelos mecanismos publicitários em que a afirmação enfática da marca é bastante para nomear uma realidade incomparável, onde a procura de originalidade se transforma na confissão parcial de não-originalidade, mascarada pela erupção constante de novidades que, invariavelmente, acabam por se revelar requentadas.
«A febre modernista de pesquisa, de romper com a tradição de ousar tudo, de perseguir o objectivo de tornar o acto de criação um acto consciente de crítica radical do espírito burguês, do seu racionalismo estreito, de desprezo pelo seu culto pelo dinheiro, é substituída pela temperatura zero pós-moderna, de individualismo exacerbado e flutuante, da sobreposição até à amálgama indistinta da arte com a moda, com a produção de pseudo-acontecimentos alinhados pelos mecanismos publicitários em que a afirmação enfática da marca é bastante para nomear uma realidade incomparável»
É esse o paradigma da arte contemporânea, em que se rasuram os pontos de referência para avaliar a obra de arte e deixam de existir os parâmetros pelos quais se guiava a apreciação. O lugar do juízo estético foi ocupado pela fascinação obsessiva num excesso de labirintos, que se sucedem e sobrepõem, corroendo as grandes unidades ideológicas, sociais, económicas e culturais, marcando o fim da modernidade, em que todas as esperanças se diluem num perdido horizonte, num tempo em que a cultura deixa de ser uma presença viva e, como diz Blanchot, «é secretamente dramático saber que a cultura não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege dissimulando-o»5.
Nestes tempos pós-modernos, em que a cultura mediática de massa multiplica e trivializa os artefactos culturais e os transforma em bens para serem consumidos sob a forma de espectáculo, condena-se pesadamente a invenção e criatividade nas trituradoras das indústrias culturais, espalhando-a em múltiplos detritos num vazio. Para que a ocultação do vazio seja eficaz, acelera-se pelas autoestradas de um bullying cultural do excesso, excesso de actividade editorial, excesso de exposições, excesso de ruído, excesso de imagens, excesso de informação, excesso de comunicação, excesso de oferta e de consumo, todo um excesso que se sobrepõe e se intercepta contaminado pelas inúmeras formas de estupidez desta época obrigada à vertigem da velocidade e da sucessão de modas que travam ou passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, em favor da estupidez, tornando mais actual que nunca o que Musil escreveu no Homem sem Qualidades6: «se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil combatê-la».
«É nesse território que a cultura actual floresce, numa terra de ninguém, e a arte, essa utilidade do inútil, perde o sentido de ser a utilidade da vida, da criação, do amor, do desejo que transforma a vida»
Esta cultura da ilusão apresenta-se como um pensamento mágico para assegurar a sobrevivência do capitalismo neoliberal simulando que a financeirização da economia é uma hipótese de crescimento num sistema que quer reduzir a humanidade a uma mercadoria hipotecária para que os homens deixem de afirmar a sua individualidade e o seu progresso pelo trabalho humano. À esquerda, às forças progressistas há que assacar a enorme responsabilidade de terem feito enormes concessões à elite do poder de direita, com um oportunismo desbragado que tem nos sociais-democratas a sua forma mais emblemática na Terceira Via do trabalhismo thactcherista de Tony Blair e, no campo comunista, no euro-comunismo de Berlinguer, Carrillo, Marchais, renunciando mesmo à sua função moral, emparceirando alegremente com as instituições do poder dominante, alinhando nas suas mais desabusadas arengas patrioteiras, dando espaço e lugar aos populismos de direita e extrema-direita do Estado-empresa.
É nesse território que a cultura actual floresce, numa terra de ninguém, e a arte, essa utilidade do inútil, perde o sentido de ser a utilidade da vida, da criação, do amor, do desejo que transforma a vida. Há que resistir, resistir sempre e sem vacilações para que a cultura e a arte se recentrem na vida e encontrem aquilo que podem e querem fazer com os seus materiais e instrumentos, sem se entregarem nas mãos do mercado, recusando-se a responder às suas exigências de gerar lucro normalizando-se pelas imposições do consumo imediato e padronizado onde se afoga o espírito crítico e, em paralelo, não se deixem colonizar pela política banalizando-se nas vulgaridades em que se afunda a invenção e a descoberta, que é o que distingue a arte.
Desafios complexos mas inadiáveis nestes tempos de danação, para que a cultura e a arte se reafirme enquanto instrumento político porque, como escreveu Maiakovski, «a arte não é um espelho para reflectir o mundo, é um martelo para o forjar»7.
- 1. Amos Oz, Contra o Fanatismo, Edições ASA (2008)
- 2. Theodor W. Adorno, Indústria Cultural e Sociedade, Editorial Paz e Terra (2000). Uma edição de 2002 está disponível online.
- 3. Frances Stonor Saunders, Who paid the Piper? The CIA and the Cultural Cold War, Granta Books (2001). Para um conhecimento en passant do Congress for Cultural Freedom, em 1967 denunciado e reconhecido como tendo sido fundado, financiado e gerido pela CIA, e do leque de notáveis intelectuais estipendiados – na maioria dos casos com o seu conhecimento – por aquela agência, ver aqui.
- 4. Karl Marx, O Capital (Livros I, II e III), tomos I-VIII, Edições Avante! (1990-2017). Trata-se da única edição completa em português, traduzida por um colectivo dirigido pelo Prof. José Barata-Moura.
- 5. Maurice Blanchot, O Livro por Vir, Relógio d’Água (1984)
- 6. Robert Musil, O Homem sem Qualidades I, Publicações Dom Quixote (2008).
- 7. Vladimir Maiakovski, Vers et proses, traduzidos por Elsa Triolet e precedidos dos seus «Souvenirs sur Maïakovski», Les Editeurs Français Réunis (1963).
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