Há dias, enquanto procurava qualquer coisa para me entreter na televisão, concentrei-me numa daquelas ideias mais ou menos óbvias que o tédio nos provoca: o monopólio do entretimento americano. Em dezenas de canais, a esmagadora maioria das séries e filmes era estadunidense. A primeira reacção à minha própria ideia foi «Thank you, Doctor Obvious!» (uma expressão self-evident da própria ideia). Mas, na verdade, a minha observação estava a tentar ir para além da ideia de simples colonialismo cultural.
Para minha sorte, Raquel Ribeiro escreveu no Contacto um interessante texto sobre a perceção que temos de nós próprios, da nossa identidade, e de povos de outras geografias políticas. Este texto levou-me a pensar nos motivos dessa perceção, na sua natureza, no desenvolvimento e no resultado social.
«O fascínio pela cultura francesa e inglesa, que pretendeu sempre aproximar-nos daqueles cujo modelo de sociedade mais nos inspirava, alienou-nos da perceção do nosso desespero em estar no centro do «mundo civilizado» e da sofisticação cultural»
Partindo do mote de Raquel Ribeiro, recordei outras leituras com as quais conclui que a construção da nossa imagem é histórica, forjada em acordos fundadores da realeza nacional e perpetuada pelo modelo expansionista e colonial português. Tudo isso me sugere que o dilema geopolítico, entre país imperialista e país periférico, criou uma perceção, uma ilusão e um fetiche de grandeza que vimos projetados e confirmados na nossa cultura, de Fernão Lopes a Camões ou Pessoa, acompanhados por equiparação às culturas mais proeminentes da Europa.
O fascínio pela cultura francesa e inglesa, que pretendeu sempre aproximar-nos daqueles cujo modelo de sociedade mais nos inspirava, alienou-nos da perceção do nosso desespero em estar no centro do «mundo civilizado» e da sofisticação cultural. Um dos grandes exemplos dessa perceção é a corrida de cavalos em Os Maias, de Eça de Queiroz, também ele responsável pelo fetiche das culturas europeias.
Ao longo do séc. XX, a hegemonia da cultura dominante foi-se transformando e mudando de geografia. Se para a geração dos meus pais a influência francesa determinou a sua forma de olhar para o mundo, para a minha geração foi a cultura anglo-saxónica que criou as bases para a perceção que o indivíduo tem de si próprio e que funcionou como um espelho da sua identificação no mundo tal como lhe é apresentado. A essa substituição não são alheios os desenvolvimentos económicos e tecnológicos que acompanharam aquele século e que hoje se consolidaram. Aqui, resulta bem uma ironia do Prof. Ernesto d’Andrade, da Faculdade de Letras de Lisboa: «o know-how ou, como se diz em bom português, o savoir-faire». Há, aliás, uma cena na série francesa Baron Noir que consegue representar, ainda melhor, as camadas de substituição cultural pelas quais já passámos: num encontro entre a presidente francesa e o chanceler alemão, a língua escolhida para comunicarem é a inglesa. Confio na intencionalidade da cena.
«Ao longo do séc. XX, a hegemonia da cultura dominante foi-se transformando e mudando de geografia. Se para a geração dos meus pais a influência francesa determinou a sua forma de olhar para o mundo, para a minha geração foi a cultura anglo-saxónica que criou as bases para a perceção que o indivíduo tem de si próprio e que funcionou como um espelho da sua identificação no mundo tal como lhe é apresentado»
É claro que hoje há mais portugueses a viajar, ainda que por períodos curtos, num modelo de turismo rápido. Podíamos concluir que uma parte dessa experiência tem uma grande influência na perceção dos portugueses do seu lugar no mundo. Mas essas mesmas viagens são o resultado de um mercado de tendências, influenciadas, em primeiro lugar, pelos produtos de entretenimento e pelo algoritmo do gosto. O papel das redes sociais, nesse domínio, tem sido fundamental, não no sentido do indivíduo que procura o destino mas do destino que procura o indivíduo. Para uma perceção mais realista será necessário permanecer a médio ou longo prazo, como no exemplo dado por Raquel Ribeiro, onde nos podemos confrontar com relações de poder impossíveis de avaliar numa breve visita de lazer. Porque é antes de iniciarmos a viagem que nasce a perceção que temos de nós e daqueles que consideramos nossos semelhantes.
A aparência de estarmos entre semelhantes é-nos trazida por um modelo de ficção que reflete uma perspetiva sobre a sociedade, sobre padrões morais e até sobre a geopolítica. Chega até a ser difícil distinguir entre o que é ficção e propaganda, porque tudo é produto de entretenimento. A massificação desses produtos de entretenimento, das séries de televisão às eleições estadunidenses, cria uma espécie de coincidência de perspetivas, como se fizéssemos todos parte da mesma sociedade. Mas quando os americanos nos identificam com Espanha ou nos colocam a desempenhar papéis de classes baixas (nas raras oportunidades em que os portugueses têm direito à existência ficcional) ficamos surpreendidíssimos e colocamos a possibilidade de assim ser porque (1) os americanos são muito ignorantes ou (2) os nossos emigrantes, coitados, são pessoas simples, mas quando nós formos lá mostraremos que somos extremamente sofisticados, deslumbraremos com o nosso cosmopolitismo e com a nossa cultura e resolveremos tudo. Porque somos brancos, claro, e não pobres hispânicos. Até temos António Guterres a ocupar o lugar de topo da Benetton da geopolítica.
«A aparência de estarmos entre semelhantes é-nos trazida por um modelo de ficção que reflete uma perspetiva sobre a sociedade, sobre padrões morais e até sobre a geopolítica. Chega até a ser difícil distinguir entre o que é ficção e propaganda, porque tudo é produto de entretenimento»
Enquanto consumidores do monopólio do entretenimento, é inevitável consolidarmos as perspectivas que nos são dadas e essa consolidação terá um efeito na aceitação ou rejeição do discurso político dominante. Não se pode achar que toda a gente usa plataformas de streaming e que tem acesso aos mesmos produtos. Até essa ideia de que estamos todos a ver o mesmo é resultante do modelo de sociedade que vemos projetado na ficção e na tendência crescente para a distopia realista e nos produtos baseados numa história verídica. Os filmes e séries de ação, de espionagem e policiais promovem subliminarmente perspetivas morais e estéticas estadunidenses sobre a sociedade (interna e internacional), muitas vezes sem qualquer rigor histórico – uma velha tradição de Hollywood que se foi aperfeiçoando. Não se trata apenas do velho cliché dos EUA a salvar o mundo, mas a ideia de as suas próprias convicções se tornarem o padrão moral do mundo. E essas convicções profundas (o bom capitalismo e o mau capitalismo) servem tanto a democratas como a republicanos e servem, também, outras geografias influentes como o Reino Unido e a Alemanha. São essas geografias que vão determinar quem é branco e quem não é, o que são classes sociais e como olhamos para elas, que ideia temos de desenvolvimento e de progresso, o que é o multiculturalismo ou a solidariedade internacional, o que é a normalidade e o que não é. Enfim, o que é certo e o que é errado.
Esta tem sido, para já, uma das formas mais eficientes de o modelo económico capitalista sustentar a sua posição, tal como demonstra Mark Fisher em Capitalism Realism (Zero Books, 2009), onde se mostra como dentro do próprio sistema nascem produtos que o denunciam e que, ao mesmo tempo, o alimentam. Porque, na verdade, a massificação dessa denúncia só é possível dentro das suas próprias regras, com as suas próprias ferramentas e promove mais a ilusão de pertença a uma vanguarda iluminada do que a pertença real a uma classe explorada.
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