São exigentes os tempos que vivemos.
Não obstante as desigualdades sociais e económicas nunca inteiramente ultrapassadas, durante algumas décadas do século XX foi possível aos trabalhadores e aos povos desfrutar de patamares de dignidade, conforto e estabilidade como nunca antes. Nada disto caiu do céu, foi tudo alcançado a pulso, com muita luta, por um caminho tudo menos recto ou isento de curvas apertadas.
No entanto, os prognósticos da irreversibilidade dessas conquistas revelaram-se demasiado optimistas. Enquanto os povos avançavam, o Capital nunca dormiu e não parou de desenhar formas para se metamorfosear.
O resultado dessa metamorfose está à vista: pese embora a corajosa resistência de milhões de pessoas, as últimas três décadas foram, no essencial, de profundo retrocesso. Tão grave quanto isso, o Capital soube sofisticar as formas de explorar e de oprimir. Vejamos:
Por um lado, a matriz neoliberal expandiu-se a quase todas as esferas da vida social. A lógica subjacente à organização da sociedade é, cada vez mais, uma recauchutagem da «sobrevivência do mais apto» de Darwin. Somos desde pequenos ensinados a competir antes de cooperar, a ser «empreendedores» antes de pensadores críticos. O emprego, é sempre temporário; o posto de trabalho, um local de transição para o desconhecido; a casa em que vivemos, local de passagem para outras quaisquer quatro paredes com um telhado por cima. A precariedade é a norma; a insegurança sobre o futuro, a regra; a ansiedade sobre o que virá a seguir, uma constante.
Por outro lado, a sofisticação da opressão também não parou de avançar. A brutal disciplinação da classe trabalhadora por meio da violência explícita e da repressão deu um lugar a formas de controlo «suaves». Todos nós fornecemos voluntária e permanentemente dados sobre as nossas preferências, os sítios onde vamos e com quem estamos. Em troca recebemos informação moldada para responder precisamente à nossa «individualização». Mesmo caminhando no meio de e interagindo com milhões de pessoas, estamos cada vez mais confinados aos limites da reprodução da lógica predatória do capitalismo. Passamos os dias amarrados ao determinismo algorítmico do Big Data, vulneráveis ao rastreio e informação por parte daqueles que controlam a nossa informação – seja para «optimizar» a velocidade a que trabalhamos, seja para «monitorizar» as nossas interacções.
«o que as acções de luta dos motoristas da Uber mostraram é que – tal como no tempo de Gervásio – também hoje, neste quadro tão absurdamente complexo, é dos trabalhadores o mundo, assim eles entendam que, como dizem Marx e Engels no fim do Manifesto Comunista, nada têm a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam»
A cereja amarga no topo deste bolo podre é a lógica cultural prevalecente neste tempo que vivemos. Recuperando Fredric Jameson1, rapidamente concluiremos da sapiência das suas palavras quando afirmava que a lógica cultural do capitalismo nos ensina mil formas de imaginar o fim do mundo antes de conseguirmos imaginar o fim do capitalismo. Da guerra total ao apocalipse climático, sem esquecer o retiro espiritualista dum aparentemente ingénuo «regresso às raízes», este tempo de netflixização – fase superior da hollywoodização – está recheado de exemplos gritantes de como nos tentam, tantas e tantas vezes, fazer crer que vivemos nos «dias do fim». Isso, ou como as alegrias e os dramas da família real inglesa são algo de interesse público e universal.
Sim, são exigentes os tempos que vivemos... mas alguma vez não o foram?
Há poucos dias faleceu António Gervásio, destacado militante comunista. Entre muitas outras, Gervásio teve a tarefa de, junto com outros camaradas, organizar as greves que permitiriam que, em 1962 (sublinho, em pleno fascismo!), se conquistassem as jornadas de trabalho diárias de 8 horas nos campos do Sul.
Poderá algum de nós imaginar o que tinham os organizadores dessa greve para oferecer aos trabalhadores que incitavam a lutar? No meio da longa noite fascista, enquanto apertava a opressão colonial e a repressão na metrópole, que «rede» tinham os que afrontavam a classe dominante? Sem contratos de trabalho, sem qualquer tipo de protecção de social, acabar num calabouço da PIDE ou da GNR, a ser espancado, era um desfecho com elevado grau de probabilidade. E ainda assim, as greve fizeram-se, as reivindicações foram satisfeitas!
Tal como há sessenta anos Gervásio, e outros como ele, tiveram a coragem e o engenho para questionar o curso da História, também hoje há quem esteja disponível – corajosa e criativamente – para o fazer.
De tantos processos de luta em curso, permitam-me destacar as acções recentemente levadas a cabo pelos motoristas da Uber. É útil notar como estes são trabalhadores dramaticamente precarizados.
Sujeitos a situações legais e ilegais, claras e menos claras, que envolvem algoritmos complexos; estatutos de «empresário por conta própria», quando, na verdade, são visível e indiscutivelmente assalariados; horários desumanos para salários de miséria; esquemas sem fim que agravam a sua exploração e os deixam muitas vezes sozinhos a lidar com ela.
Aqui não se retrata tudo ao pormenor, mas dá para ter uma boa ideia do que está em causa.
Em jeito de conclusão, o que as acções de luta dos motoristas da Uber mostraram é que – tal como no tempo de Gervásio – também hoje, neste quadro tão absurdamente complexo, é dos trabalhadores o mundo, assim eles entendam que, como dizem Marx e Engels no fim do Manifesto do Partido Comunista2, nada têm a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam.
- 1. Crítico literário, filósofo e teórico marxista, mais conhecido pela sua análise da cultura contemporânea, em particular do pós-modernismo no contexto daquilo a que chamou a cultura de massas do capitalismo tardio. Ver Wikipedia, aqui.
- 2. Uma cuidada tradução portuguesa está disponível em linha, aqui.
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