Lembrar-se-ão os leitores do Abril Abril de aqui terem lido, a 27 de Janeiro passado, referências à cimeira de Davos e ao relatório da OXFAM que se faz eco dos resultados a que o capitalismo e a sua mão invisível (metáfora dos seus defensores para nos convencer de que não há alternativa à organização e funcionamento da sociedade) conduziram o Mundo.
Importa desvendar que são eles próprios a reconhecer, através das Nações Unidas, que em 2030, por este andar, 1% da população mundial será dona de 35% da riqueza mundialmente produzida. Segundo os analistas, caminhamos a passos largos para o precipício mas, acredito eu, há no Mundo quem não desista e continue a lutar para isso evitar e um mundo novo conquistar.
Referir a que ponto chegaram as desigualdades trazendo a terreiro várias das suas expressões sugere-me que nos foquemos sobre a sua determinante – a desigualdade económica que pode até acompanhar-nos à nascença e assim condicionar em larga medida o nosso futuro. Mas, antes de falar nas desigualdades de ordenado entre homens e mulheres ou entre diferentes estratos sociais em cada país, ou entre países, falemos das causas profundas, e essas são imputáveis à mão invisível do capitalismo que, nos dias de hoje, assume formas extremas a que a causa do neoliberalismo dá corpo.
«são [os próprios defensores do capitalismo] a reconhecer, através das Nações Unidas, que em 2030, por este andar, 1% da população mundial será dona de 35% da riqueza mundialmente produzida. Segundo os analistas, caminhamos a passos largos para o precipício mas, acredito eu, há no Mundo quem não desista e continue a lutar para isso evitar e um mundo novo conquistar»
Os advogados dessa causa que mandaram recados de Davos certamente não leram com atenção o relatório de Dezembro de 2019 das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano (Human Development Report 2019, de em diante HDR) que, na sua página 4, analisando a evolução das desigualdades no Reino Unido entre 1970 e 2013, regista que as políticas redistributivas (vistas pela social-democracia como a chave para corrigir as desigualdades) de «impostos sobre os rendimentos mais altos e progressivos, benefícios fiscais aos escalões de menores rendimentos e em função do número de filhos, e um rendimento mínimo garantido a todo o cidadão – seriam insuficientes para reverter o aumento da desigualdade». O relatório refere ainda (página 13) que os indicadores e metodologias usados para medir a desigualdade são inadequados para informar o debate público ou apoiar a tomada de decisão. As razões são diversas, mas assinale-se o reconhecimento de que os detentores da riqueza cada vez mais escondem a sua posse. Assim acontece mesmo em países que ainda gozam da «fama» de serem muito rigorosos na taxação da riqueza (por exemplo, a Dinamarca) situação que, reconhecidamente, os paraísos fiscais não facilitam. Por lá se esconde muita da riqueza criada: «Os ricos usam offshores para esconder a sua riqueza e fugir aos impostos. Em 2014 essa riqueza [no contexto dos «Panama Papers»] foi calculada em $7.6 triliões de USD, valor superior à capitalização das 20 maiores companhias multinacionais e também superior à riqueza dos 1645 mais ricos no mundo» (HDR, p. 243) ou, como referido na página 103, «a riqueza guardada em paraísos fiscais está calculada em 8% do produto mundial», ou ainda, como foi publicado em Portugal, o «fisco cruzou dados e descobriu mais ricos em Portugal».
Seduzidos pelo microfone e os títulos bombásticos, os mensageiros de Davos/2020 não acolheram o conselho das Nações Unidas de que seria melhor não dar grande relevo comunicacional às desigualdades pois isso poderia virar-se contra os poderes instalados. São as Nações Unidas a dar o seu contributo explícito, qual divisão de comunicações estratégicas da NATO, para o reconhecimento de que existe um bombardeamento de ideias e formulações veiculado pelo poderoso aparato, que engloba currículos «educacionais», comunicação social dominante e postura da União Europeia, para servir os fins dos neoliberais.
«Referir a que ponto chegaram as desigualdades trazendo a terreiro várias das suas expressões sugere-me que nos foquemos sobre a sua determinante – a desigualdade económica que pode até acompanhar-nos à nascença e assim condicionar em larga medida o nosso futuro»
Antes de viajarmos pela desigualdade económica, assinale-se o reconhecimento pelas Nações Unidas de que os dados são particularmente frágeis quando se procura medi-la. Há que ir além da desigualdade entre toda a população agrupada em fatias (10% cada fatia, 20% cada fatia ou 1% cada fatia), desigualdade essa medida pelo coeficiente de Gini (concebido certamente para ajudar Mussolini na sua teorização sobre a sociedade que pretendia) e é necessário um microscópio para observar a distribuição do rendimento, não apenas quando se compara o resto da população com os que se situam na fatia dos 10% que mais recebem, mas com os que representam só um 1% dos que mais recebem. Acresce, que a necessidade de ver as desigualdades ao microscópio tornou-se uma realidade incontornável para as Nações Unidas suscitando o desenvolvimento de um projeto de uma nova base de dados e a apresentação de um índice que pretende medir a transparência com que os Estados disponibilizam informação afim. Não nos surpreendamos! Os dados para rastrear a desigualdade na distribuição do rendimento nacional permanecem escassos em todo o mundo… Mesmo nos países nórdicos, a capacidade de medir a desigualdade deteriorou-se nas últimas décadas, em parte devido à grande riqueza escondida nos ativos financeiros offshore. A situação está a piorar em vários países, ao invés de melhorar. Aquando do cálculo do referido índice (Julho de 2019), numa escala de 0 (obscuridade) a 20 (transparente), nenhum país ultrapassou 15 e são às dezenas os que merecem zero. Na zona verde (entre 10 e 15) estão nove países, entre eles Portugal (dos cerca de 180 avaliados). Registe-se que, quanto a transparência, sobre dados referentes a impostos ficamos esclarecidos.
Façamos então uma viagem pelas desigualdades mas pela mãe das ditas, a desigualdade económica, porque da causa (o capitalismo), concordemos ou não, estaremos conversados.
O desequilíbrio na distribuição de rendimentos entre os 10% que mais recebem e a população restante tem aumentado, principalmente desde 1980, com essa gente a sugar todos os outros estratos sociais, para usar a caracterização de José Gabriel Palma (JGP), economista chileno forte critico do neoliberalismo e especialista no estudo da desigualdade económica.
«O desequilíbrio na distribuição de rendimentos entre os 10% que mais recebem e a população restante tem aumentado, principalmente desde 1980, com essa gente a sugar todos os outros estratos sociais»
JGP merece uma referência ampliada. O relatório da Nações Unidas a que vimos aludindo cita dezenas (se não mais de 100) de especialistas na matéria (incluindo o nosso conhecido Vítor Gaspar) e a única referência feita a JGP está remetida para as notas de referência. Acontece que JGP contesta o uso do coeficiente de Gini como instrumento para caracterizar a desigualdade económica e, como autor que é do popular coeficiente de Palma (alguém assim o batizou para ligar o índice ao autor) defende, no artigo referenciado, que a desigualdade económica deve ser analisada em 7 patamares distintos, para que se possa revelar onde ela efetivamente ocorre. JGP defende que, na sua ganância, os 10% mais ricos esbulham os 40% mais pobres mas isso já não lhes chega e hoje invadem a fatia de riqueza que deveria caber aos 50% da população que se situa entre os 40% mais pobres e os 10% mais ricos, para concluir que o Mundo está confrontado com uma luta entre duas metades da sociedade: 40% que luta pela sobrevivência contra 10% que vive na opulência e 50% que pressentem esses mesmos 10% esforçados em os ver proletarizados.
Será por isso que as Nações Unidas não refletiram no seu relatório esta outra explicação para a presente situação da desigualdade económica e a colocaram debaixo do dorso da curva do elefante, acolhendo a tese de Milanović? Não havia necessidade e o português Pedro Conceição, que assina os agradecimentos a quem participou ou contribuiu para o relatório, ter-se-á deixado enganar… mas não fica bem na fotografia.
Ainda se pode dizer que JGP desvenda duas outras realidades – as complexas políticas fiscais que pretensamente visam beneficiar os que menos ganham acabam por ter o efeito oposto, e o sistema produziu uma elite cosmopolita que viaja pelo Mundo e cuida de que o sistema não naufrague, iludidos que poderão estar de que têm o remédio para o paciente cada vez mais comatoso.
Para quem tinha dúvidas, os dados evidenciam o ciclo de interações entre
Face à desigualdade, como é medida pelo coeficiente de Gini, observa-se uma distribuição do rendimento entre capital e trabalho que produz mais desigualdade (que o índice de Gini acaba por mascarar) e essa desigualdade reduz a capacidade de desenvolvimento. O cálculo mundial dessa redução, com todas as fragilidades assinaladas, ou seja, o real poderá ser bem maior, aponta para um desenvolvimento que fica 20% (dados de 2017) abaixo do que poderia alcançar, só por causa das desigualdades (económica, no acesso à saúde, esperança de vida e educação, previsão de anos de escolaridade e anos de escolaridade observados, todos integrantes do Índice de Desenvolvimento Humano).
As desigualdades podem ser estudadas para construir uma sociedade mais inclusiva, aceitando a diversidade consagrada no Direito (como acontece na nossa Constituição), governando com políticas que avancem na reposição de direitos que a TROICA e os seus Governos nos suspenderam para mais tarde roubar, avançando em domínios fundamentais para fazer face à desestruturação da vida familiar e ao exigente dia a dia que a todos faz correr sem tempo para pensar e filhos acarinhar, adotando políticas que visem uma partilha do rendimento entre trabalho e capital menos assimétrica e participando numa luta contínua para que a mão invisível não leve o Governo a desestabilizar a vida na sociedade portuguesa do século XXI. Mas também podemos lutar para acabar com esta situação de equilibrista e apoiar e votar naqueles que se propõem fechar a porta por onde a mão invisível entra na busca do cartão de acesso à portagem da autoestrada que leva à surpreendente concentração de riqueza em muito poucos e a um mundo deslumbrante de pobreza e autodestruição da humanidade. Como mestrando de sociologia tive que investigar esta matéria e a perceção com que fiquei é de que os países envolvidos em sociedades intensivas de mercado livre são aqueles em que a desigualdade cresce e cresce mais rapidamente: por exemplo, a Rússia: «(…) um dos países mais iguais em 1990 tornou-se um dos mais desiguais em apenas cinco anos»; a África do Sul (o modelo de desenvolvimento pós-Apartheid não superou a herança e é um dos mais desiguais); a China (a transição ruralismo-desenvolvimento intensivo do mercado faz crescer as desigualdades mas assinale-se o sucesso na eliminação da pobreza programada para o ano em curso, tenhamos presente a dimensão populacional em questão); e o Brasil (até início do mandato de Bolsonaro, talvez o único caso em que o crescimento da riqueza produzida apresenta há décadas uma redução sustentada das desigualdades medida pelo coeficiente de Gini).
Será que o preço da mudança da sociedade rural extensiva para a sociedade cosmopolita intensiva e orientada para o mercado conduz a uma «estação» de chegada em que a desigualdade estará contida num Gini «aceitável» ou, como mostram a Dinamarca e os EUA e, no último caso, apesar de seu enorme PIB per capita e ritmo de crescimento, a desigualdade aumentará e isso é intrínseco à mão invisível? O facto é que a proporção de rendimento entre os 10% de população com maior rendimento e os restantes, aumentou desde 1980 na maioria das regiões e esses 10% mais ricos não estão a aplicar a riqueza de que se apropriam na economia real, atitude que do anterior constituiu o principal argumento dos defensores do capitalismo. Hoje esses 10% vivem no deslumbramento e na luxúria com um grau de exibicionismo tal que muitos capitalistas começam a temer pela revolta que isso possa vir a despoletar.
«O futuro exige mais desenvolvimento como condição para alcançar maior liberdade, ou seja, que sentido faria viver num país com um PIB per capita enorme, mas com uma parcela da população desse país privada das coisas necessárias para ter maior longevidade com dignidade, ter educação e conhecimento»
Como Amartya Sen (o autor do Índice de Desenvolvimento Humano já atrás referenciado, adoptado pelas Nações Unidas em 1990 e que esta organização hoje promove) esclarece, o crescimento do PIB precisa de ser avaliado muito mais do ponto de vista de sua contribuição para o desenvolvimento humano do que crescimento da riqueza.
O futuro exige mais desenvolvimento como condição para alcançar maior liberdade, ou seja, que sentido faria viver num país com um PIB per capita enorme, mas com uma parcela da população desse país privada das coisas necessárias para ter maior longevidade com dignidade, ter educação e conhecimento para ir aonde deseja ir e a parcela de rendimento necessária para fazer isso? Ou seja, é contra a natureza humana ter um país com uma enorme riqueza e parte da sua população privada de água, de condições sanitárias, de aquecimento para fazer face às temperaturas invernosas, de alimentos, saúde e educação entre muitos outros bens imprescindíveis à potenciação da capacidade de realização de obra humana.
Retornando ao HDR, «desde 1980 observa-se o aumento extremo da desigualdade em algumas partes do mundo realidade que podia ser evitada, não o foi em consequência das escolhas políticas». A nível mundial, a desigualdade impulsionada pela economia do lucro interminável está em ascensão. Esse pode ser o preço deste desenvolvimento, como definido nas últimas décadas e a ser assim a intensificação do capitalismo/neoliberalismo determina o aumento da desigualdade, a menos que contramedidas sejam tomadas e um outro Governo tome as rédeas do poder.
Como a visão geral do HDR refere, a Humanidade «aproxima-se de um precipício além do qual será difícil recuperar».
É possível evitar isso, depende apenas de cada um de nós tomar medidas para impedir que isso aconteça.
O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)
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