A esperança é a última a morrer, dizem. Daí que o mundo e, por inerência, os portugueses continuem a aguardar que a União Europeia e o governo da República Portuguesa se pronunciem sobre a tentativa de invasão da Venezuela patrocinada pelo «presidente interino» que reconhecem, Juan Guaidó, e cujo «objectivo principal», confessado contratualmente, era o de capturar, enviar para os Estados Unidos ou assassinar o presidente legítimo, Nicolás Maduro.
Sabemos que a União Europeia, depois do período de compungido recolhimento a que se submeteu enquanto os estados-membros combatiam a peste para defender os seus cidadãos, não tem agora mãos a medir preparando o «novo normal pós-COVID-19»: oleados canais de transferência de dinheiro dos contribuintes para as contas das grandes empresas e os reforçados sacrifícios austeritários a que os cidadãos serão condenados para reerguer a economia carcomida pelo vírus.
Igualmente se compreende que o governo de Portugal, desdobrando-se entre «emergências» e «calamidades públicas», a marcação de lugares nas praias como quem organiza uma grande parada militar ou as listas de recomendações aos cidadãos, como a de pousarem as mãos no colo enquanto viajam em transportes públicos, pouco tempo tenha de sobra para se ocupar do que se passa lá longe – onde aliás vivem mais de um milhão de portugueses e luso-descendentes.
Mesmo assim, verificando-se que, a propósito da tentativa de invasão, estão em causa temas tão presentes nos discursos oficiais como o direito internacional, a soberania das nações, o terrorismo e os direitos humanos, os acontecimentos parecem dignos de uma curta-mensagem, um soundbite do ministro Santos Silva, que seja.
Até agora, porém, apenas o silêncio. Tal como sucedeu em relação ao golpe fascista na Bolívia, que derrubou um governo em La Paz tão legítimo como o de Caracas. Um silêncio sonso, que não levanta ondas, não suscita desdobramentos na comunicação social susceptíveis de alertar ouvidos porventura menos anestesiados. Um silêncio que pode ser cobarde, cúmplice e podre, mas é cómodo.
Ordem para matar
No passado 3 de Maio, tal como em Novembro, Abril, Fevereiro e Janeiro de 2019, Agosto de 2017 e outras datas que não vale a pena enfileirar, pois levavam-nos pelo menos até 2002, um bando de mercenários armados contratados por uma «empresa de segurança» norte-americana designada Silvercorp, propriedade de um ex-membro das forças especiais dos Estados Unidos da América, tentou desembarcar na Venezuela. Um contrato entretanto divulgado por alguns meios de comunicação social, entre eles o insuspeito Washington Post – e cuja autenticidade foi confirmada por um dos homens de mão de Guaidó – revelou o «objectivo principal» da missão: derrubar, prender, enviar para os Estados Unidos ou matar o presidente legítimo da Venezuela, Nicolás Maduro.
A comunicação social corporativa e os robots de vários tipos – digitais e humanos – nas redes sociais tentam desacreditar e até ridicularizar a operação alegando que dezenas de mercenários infiltrados não teriam capacidade para atingir os propósitos pretendidos. E que o contrato seria «fake».
Tais interpretações ignoram que o desembarque partia do pressuposto, tal como em ocasiões anteriores, de que haveria rebeliões nas forças armadas e de segurança venezuelanas encorajadas por uma correspondente e simultânea enxurrada de mensagens e dados sobre os supostos êxitos da invasão.
Basta recuar um ano para encontrar um exemplo destas práticas. Em 30 de Abril de 2019, o «interino Guaidó» e o seu parceiro fascista Leopoldo López, depois acoitado na Embaixada de Espanha em Caracas, puseram a correr pelo mundo, através de órgãos de comunicação corporativos e das redes sociais, que se encontravam no interior de uma base militar sediciosa, a qual, juntamente com outras na mesma situação, tinham iniciado um levantamento para «libertar a Venezuela». Afinal, Guaidó e López estavam no exterior da base; e, no interior, meia dúzia de efectivos insurrectos tinham sido facilmente dominados pela guarnição – por sinal alguns deles integraram agora o contingente que tentou o desembarque no início de Maio.
Tanto o contrato como as confissões dos mercenários capturados, entre eles dois cidadãos norte-americanos ex-membros de forças especiais, conduzem, sem qualquer dúvida, ao envolvimento da administração Trump nesta operação, embora num quadro que lhe permitisse negar responsabilidades em caso de fracasso – o que não tardou a registar-se. Há muito tempo, sobretudo a partir do início deste século, que os Estados Unidos e as instituições imperiais em geral «terceirizam» guerras e operações terroristas, incluindo práticas de tortura, para empresas de segurança, os famosos «contractors», e grupos que podem assumir muitas e variadas chancelas, incluindo as de «Al-Qaeda» ou «Estado Islâmico».
Juan Guaidó, obviamente, também negou a participação no fracasso terrorista. No entanto, o seu nome e assinatura brilham no contrato com a Silvercorp, mais os de alguns dos seus habituais agentes – um dos quais, JJ Rendón, confirmou a autenticidade do documento. Na definição da estrutura operacional que pode ser consultada no contrato o nome de Juan Gerardo Guaidó surge no cargo de «comandante em chefe».
As recentíssimas «demissões» apresentadas a Guaidó por outros signatários, Rendón e Sergio Vergara, seu «comissário presidencial», correspondem ao fracasso da operação e a uma tentativa desesperada e desajeitada de «limpar» a imagem do «interino», tentando ilibá-lo da conspiração.
Os depoimentos dos mercenários capturados pelas forças de defesa venezuelanas revelaram, entretanto, que a escolha da Silvercorp para realizar o serviço não foi feita por atribuição directa. O terrorismo funcionou em termos de mercado; deverá dizer-se que houve um «concurso» em que, pelo menos, participou também a Academi, outrora designada Blackwater, tão famosa pelos seus crimes e chacinas no Iraque que teve de mudar de nome para continuar a merecer a confiança do Pentágono. Se dúvidas houvesse ainda, aqui está, preto no branco, uma marca registada do envolvimento político-militar norte-americano na operação.
A Silvercorp fez a proposta mais vantajosa: um preço mais baixo, 212 milhões de dólares, para uma actividade de 495 dias, durante os quais deveria contribuir para o derrube de Maduro, a instauração de um regime fascista capitaneado por Juan Guaidó e a eliminação das «forças hostis». E assim chegaria ao poder em Caracas, transitando de «presidente interino» para ditador, o homem que, segundo o ministro Santos Silva, nos tempos em que ainda falava sobre os acontecimentos na Venezuela, garante o caminho para a realização de eleições democráticas e a normalização da democracia no país.
Cumplicidade à vista
O que temos então, chegados até aqui?
Mais uma tentativa de golpe na Venezuela conduzida por Juan Guaidó, o presidente «interino» reconhecido pela maioria dos países da União Europeia, entre os quais Portugal, com apoio da administração Trump através de uma empresa que vende operações terroristas.
Uma confissão de tentativa premeditada de assassínio do presidente Nicolás Maduro e de outros dirigentes do Estado venezuelano feita por Juan Guaidó através de um contrato arrematado em Outubro de 2019 para concretizar a «mudança de regime» em Caracas, a instauração do fascismo no país e a eliminação dos adversários políticos.
Uma operação armada contra um Estado soberano, neste caso a Venezuela, tentando mesmo tirar proveito das condições excepcionais criadas pela necessidade de mobilizar todo o aparelho civil e militar para proteger as populações da pandemia do novo coronavírus.
Perante esta cadeia de acontecimentos, inequivocamente terroristas e fascistas, contra a democracia, o direito internacional, os direitos humanos, a União Europeia e o Governo de Portugal permanecem em silêncio passadas três semanas. Uma atitude que desrespeita grosseiramente a Constituição da República Portuguesa.
Através do silêncio, Bruxelas e Lisboa seguem atreladas aos comportamentos criminosos, mafiosos e irresponsáveis de um indivíduo cada vez mais desacreditado e que apenas sobrevive no activo como «interino» por ser uma marioneta privada de figuras como Trump, Pompeo e o senador fascista Marco Rubio. Grande parte dos acólitos e de grupos políticos que lhe eram afins já desertaram – alguns dialogam com o governo dentro da ordem constitucional. A sua «popularidade» medida em sondagens anda pelos dez por cento.
Podemos ir um pouco mais além e suspeitar objectivamente da inocência deste silêncio. Quando os cães de guerra se abeiraram das costas venezuelanos é sabido que não estavam sós nas imensidões atlânticas, alguém lhes protegia as intenções sabendo-se que navios de guerra norte-americanos, franceses e britânicos têm estado activos na região – «contra o narcotráfico» e «contra o COVID-19», naturalmente – e que as Antilhas Holandesas vão servindo de base para múltiplas actividades contra Caracas; e até um navio de bandeira portuguesa chegou a entrar em cena abalroando recentemente uma pequena embarcação da Guarda Costeira da Venezuela não se sabe bem com que propósito – suspeitando o governo venezuelano de actividades relacionadas com transporte de mercenários. Será?
De que não existem dúvidas é do silêncio da União Europeia e do governo português em relação às actividades terroristas de desestabilização da Venezuela comandadas em chefe por Juan Guaidó, que ainda é, até dito em contrário, o «presidente interino» reconhecido por Bruxelas e Lisboa. E continua a sê-lo mesmo depois de assinar um contrato em que uma das cláusulas é a captura ou o assassínio de um chefe de Estado constitucional de um Estado soberano.
O ministro Santos Silva costuma tornar públicas as suas aversões de estimação. Devemos então concluir do silêncio nestas circunstâncias que nem o criminoso Guaidó nem o terrorismo como arma política estão na sua lista.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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