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O difícil empreendimento do voto de esquerda lúcido

A questão da soberania nacional, de que o Presidente da República numa república laica deve ser o garante, é tema ausente que só emerge nas entrelinhas das respostas dos candidatos a outros temas.

«Discurso Eleitoral», desenho a tinta da china, Agosto 1969, publicado no Diário de Lisboa/Mesa Redonda 19 de Setembro 1969
CréditosJoão Abel Manta

Percorrer as redes sociais e os comentários às notícias sobre as eleições presidenciais e dos três candidatos do arco do centro-esquerda à esquerda é um exercício com algumas curiosidades, não inesperadas para os mais atentos, reveladoras da generalizada degradação da capacidade crítica que a comunicação social e as redes sociais promovem, homogeneizando opiniões que raramente ultrapassam as aparências que se geram para ocultar as duras realidades que acoitam. Tudo funciona preso à teia das percepções que se plantam para criar imagens trabalhadas pelos photoshops mentais controlados pelos algoritmos ao serviço do pensamento dominante. Analisar os argumentos a favor de alguns dos candidatos e a ausência de temas que deveriam ser de primeira linha é altamente revelador.

A primeira nota vai para as candidatas femininas serem altamente beneficiadas pela sua condição de mulheres, como se isso de ser mulher fosse alguma qualificação especial ou selo de garantia do que quer que seja, a começar por uma maior sensibilidade para os problemas sociais e a acabar na discriminação das minorias. Não pode todo o mundo e ninguém estar esquecido das variegadas margaretes thatcheres na longa galeria de mulheres de grande rudeza, que isto de ser mulher em nada se diferencia de ser homem no que toca à defesa dos interesses do capital.

Saltando sobre esse pormenor, que é um por-maior com reflexos ao riscar a cruz no boletim de voto, o mais chocante nas discussões e comentários, tanto dos encartados como os de café, dá-se o caso de a questão que deveria ser a principal a colocar a um candidato a Presidente da República estar completamente ausente ou ser um resíduo tão residual, passe o pleonasmo, que nem por ela se dá nos argumentários aduzidos em milhares de contribuições favoráveis a qualquer um dos três candidatos: a questão da soberania nacional, de que o Presidente da República numa república laica deve ser o primeiro garante.

«Olhando para o panorama eleitoral várias e sérias são as preocupações que se colocam aos democratas de esquerda quando a extrema-direita se está a consolidar e a direita ensaia a sua reformatação para recuperar iniciativa económica e política»

É tema ausente, que só emerge nas entrelinhas ou se percepciona nas tomadas de posição e respostas dos candidatos a outros temas. Sintomaticamente, na primeira entrevista feita a um desses candidatos por um canal de televisão supostamente de serviço público à soberania nacional, foi dito nada. É questão que para o entrevistador não existe, provavelmente nem sabe o que é, normalidade no estado actual do jornalismo em que a esmagadora maioria dos jornalistas são uma entidade abstracta que não existe, leia-se de Pierre Bourdieu Sobre a Televisão para se ficar a perceber esse estado da arte. Não se proferiu uma palavra sobre soberania nacional como nada se disse de outros itens de relevo para o exercício do cargo, ficando-se por um entretém de lanas caprinas, banalidades dos lugares comuns das questões verdadeiramente falsas ou falsamente verdadeiras pré-digeridas para dar uma imagem da candidata que é a que ela tem vindo a construir com a sua presença avençada num canal de televisão onde tanto mostra como oculta o que na realidade é e o que defende. Uma verdadeira artista, talento não é coisa escassa por aquelas paragens.

Em relação à soberania nacional, tema que devia ser central nos programas e nos debates e não ficar no esquecimento das balbúrdias que podem garantir audiências mas são informativamente invisuais, veja-se o que cada um dos candidatos tem defendido ao longo dos anos em que foram ou ainda são eurodeputados, e continuam hoje a defender.

Ana Gomes está num dos extremos, «não só aprova a integração de Portugal na zona euro como defende um aprofundamento federalizante do projecto europeu». Ou seja, para esta candidata a Presidente da República Portuguesa, Portugal é uma colónia que deve ser dirigida e controlada por uma entidade supra-nacional sediada em Bruxelas. Isto é aceitar uma rendição absoluta à União Europeia (UE), tornando as suas exigências de hoje, que fazem sentir os seus efeitos nefastos em muitas áreas – a lista é extensíssima da agricultura e pescas às finanças, lembre-se os efeitos das PAC na perca de soberania alimentar e mesmo no ambiente, ou os casos do BES e do Banif – em lei a que não teríamos poder algum para opor. O que está a propor e defender Ana Gomes é um regresso a um neofeudalismo, aceitando a definitiva transformação de Portugal num condado vassalo da UE. A sua candidatura a Presidente da República de Portugal é de facto uma candidatura a governadora das Berlengas, leal e fiel súbdita da(o) Presidente da Comissão Europeia. Isto é obra, para alguém tão dada aos pavoneamentos dos espalhafatos televisivos de muita parra e muito pouca uva.

Marisa Matias já nos habituou, à semelhança do BE, a proclamações altissonantes com a insustentável solidez das ventanias. Declara que «luta pelos valores de uma esquerda que não se verga às ordens do mercado, de Berlim ou de Washington, de Pequim ou de Bruxelas.» É uma louvável declaração de independência. Por estar disposta a espetar essa bandeira em capitais tão poderosas deixa-nos aturdidos com a audácia de tamanha façanha. Só que Portugal sem moeda própria, sem política orçamental autónoma, obrigado a regras neoliberais que se vergam aos ditames da finança sem qualquer respeito pelo trabalho, confinado ao Estado social mínimo dos mínimos ou mesmo desmantelando-o, submete-se ao jugo do capitalismo representado por Bruxelas e não tem condições para se desenvolver com qualquer independência, e essa é a questão nuclear que Marisa Matias não resolve por mais que vá sem medo soprar as trombetas em Berlim, Washington, Pequim e Bruxelas, numa colorida, sonora e divertida digressão turística que pouco incomoda os ouvidos de quem aí decide e só serve para dentro de portas disfarçar a conhecida ambiguidade do BE em relação à UE.

João Ferreira é, como sempre foi, um crítico da construção da UE e de como Portugal enquanto nação soberana não tem futuro dentro da zona euro, dentro de uma UE regida por tratados que, no essencial, só podem ser alterados por unanimidade. É um soberanista com ideias consolidadas sobre uma estratégia de desenvolvimento para Portugal, o que só pode suceder quando se romperem as amarras que hoje o estrangulam.

Essa questão central é iludida por muitas outras num fogo de artifício que ilude muita gente de bem e de esquerda. Ana Gomes é a mais hábil nos fogachos, até porque nessa área há quem de algum modo pense que as candidaturas do BE e do PCP são só para marcar terreno. Também são, mas também são esclarecedoras não só das posições pessoais como das dos seus partidos e devem abranger e captar eleitores que de facto se interessem e estejam atentos às ideias defendidas e não à espuma da imagem reflectida e transmitida por vários espelhos que iludem a realidade.

Há quem se engane, se deixe ou queira enganar até pelo espantalho real da direita e da extrema-direita que se perfilha perigosamente no país. Uma das ideias difundidas é que o chefe de fila da extrema-direita, ele também candidato, vai mesmo cumprir o que disse quando afirmou que se tiver menos votos que Ana Gomes, abandona o seu lugar de führer, pelo que há que votar Ana Gomes para o tramar. Com ele ou sem ele a extrema-direita vai continuar e, com ele ou sem ele, tem de ser combatida, e gravidade de pensar assim é ter da política uma concepção futebolística. Perde uma equipa, muda o treinador, só que a equipa continua e o treinador que saiu pode voltar empurrado por uma qualquer vaga de fundo. É reduzir a política ao acto de votar e a política é uma luta de todos os dias que não se esgota no acto de meter um voto nas urnas. Na base dos equívocos dessa representação política, construída ao longo dos últimos três séculos, continuam a estar os fundamentos doutrinários derivados do sistema político inglês e da Revolução Francesa que Montesquieu, em O Espírito das Leis (Edições 70, 2011) e Jean-Jacques Rousseau no Contrato Social (Temas e Debates, 2012) racionalizaram e que, em linhas gerais, continuam a ser o que nos governos modernos é assumido como democrático.

Rousseau rapidamente se apercebeu das limitações desse modelo e no Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (Edições 70, 2020) aponta-os com grande clareza: «o povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la». Ainda mais claro é Marx quando diz que às massas populares é concedido o direito de escolher o seu carrasco, o que de modo algum menorizava a importância das lutas eleitorais inscritas no mais vasto contexto da luta de classes.

«É um sintoma da época que vivemos em que a visão superficial, deformada, com traços subjectivistas e até místicos, substitui a compreensão das verdadeiras forças motrizes da sociedade. Uma visão propulsionada pela comunicação social corporativa dominada pelos plutocratas e pelas redes sociais esse novo ópio do povo»

Para alavancar Ana Gomes chegam-se a fazer comparações entre o confronto esquerda/direita na segunda volta das eleições entre Mário Soares e Freitas do Amaral. A história só se repete como farsa, dizia Marx, mas pode rimar, como anotava Mark Twain. O paralelo que se pode traçar entre as candidaturas de Mário Soares e Ana Gomes é um arreigado e partilhado atlantismo e do, muito que hoje se sabe, sem se saber tudo, sobre os bastidores da candidatura de Mário Soares, e os apoios de think-thanks norte-americanos, naturalmente em consonância com os serviços secretos dos EUA. Todo o percurso de Ana Gomes e o que tem defendido em fóruns nacionais e internacionais são de um alinhamento canino (e ela que muito aprecia ser apelidada de rottweiler) com os interesses imperialistas dos EUA e as políticas agressivas da NATO, seja na Jugoslávia, na Ucrânia, nas Américas, na África mediterrânica e no Médio Oriente, em todas as revoluções coloridas. Tem a habilidade de cinicamente o disfarçar com denúncias aos voos clandestinos da CIA ou à corrupção nas compras dos submarinos. É uma técnica por de mais conhecida e de resultados comprovados na intoxicação da opinião pública. A sua luta contra a corrupção é um teatro bem montado. Maratonista do Estado de Direito – o que parece louvável, embora se saiba que entre direito e justiça o abismo é enorme e o direito nas nossas sociedades seja o direito do mais forte à liberdade – corre numa pista viciada bradando contra o BES mas alinhando com as opções mais que ruinosas da sua privatização em 1985 e agora da sua não nacionalização, denunciando isto e aquilo sempre pela superfície e no que está a vender para colocar a máscara de uma intransigência de pacotilha, logo desmentida por nunca atacar as causas mas só os efeitos.

Olhando para o panorama eleitoral várias e sérias são as preocupações que se colocam aos democratas de esquerda quando a extrema-direita se está a consolidar e a direita ensaia a sua reformatação para recuperar iniciativa económica e política, como foi claramente expresso nas declarações dos lideres e dirigentes do PSD e do CDS sobre o Chega, sem esquecer os afectos de Marcelo Rebelo de Sousa plantados em terra adubada pela direita, que a esquerda deve ouvir e olhar com apreensão. A unidade à esquerda, sempre complexa e difícil e que no enquadramento que se está a desenhar deveria ser relevante, não é possível rasteirada pelos tacticismos do PS de António Costa, que abriram espaço para aparecer uma candidata com o perfil de Ana Gomes, a ocupar o espaço da social-democracia de direita com capacidade de convocar muita gente da esquerda que a olha sem a ver. Paradoxalmente isto decorre num quadro aparentemente favorável à esquerda, por esta recolher o voto da maioria do eleitorado.

É um sintoma da época que vivemos em que a visão superficial, deformada, com traços subjectivistas e até místicos, substitui a compreensão das verdadeiras forças motrizes da sociedade. Uma visão propulsionada pela comunicação social corporativa dominada pelos plutocratas e pelas redes sociais esse novo ópio do povo.

A luta da esquerda continua, claro que continua, nunca irá parar mas torna-se particularmente complexa num terreno cheio de barreiras e alçapões.

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