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Virar a COVID-19 do avesso: por um novo «novo normal»!

É decisivo que a ciência não substitua a decisão política, mas que seja colocada ao seu serviço. A leitura da ciência que a política oferece é o que distingue uma tecnocracia de uma democracia.

CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

Sou profundamente desconfiado da máxima «nunca desperdices uma boa crise» – acho-a sempre um prenúncio de que, perante dificuldades, alguém estará prestes a ampliar a sua posição de hegemonia. Mas se há máxima a que sou mesmo avesso é à que diz «não há alternativa» – celebrizada por Thatcher, mas, em boa verdade, usada desde que nas sociedades humanas uma camada (normalmente minoritária) da população procura impor a outra (normalmente maioritária) medidas não explicáveis pela força da razão.

Nestes ásperos tempos que vivemos – onde o medo nos escancarou a porta de casa e se sentou no sofá da sala para viver connosco todos os dias – ambas estas máximas vão sendo repetidas ad nauseam. Não obstante, em particular nos últimos dias, perante o agravamento do quadro epidemiológico, a tese das inevitabilidades ganhou um peso significativamente maior.

Num ápice passámos do optimismo sorridente de quem tinha uma vacina que ia resolver «instantaneamente» todos os problemas, para um contexto em que governantes falam em tom de correctivo exasperado às populações, e em que quem ouse questionar o fecho de escolas, espaços verdes ou passadiços está condenado a ser acusado de negacionista e, pior ainda, de co-responsável pela situação trágica que hoje vivemos.

«permitam-me insistir neste ponto: cuidar da saúde dos portugueses e garantir uma sociedade equilibrada e justa não são desígnios incompatíveis.»

Não obstante, as nossas sociedades já viveram tempo que chegue para perceber que a dramatização é má conselheira e que, normalmente, a jusante trás a viragem do feitiço contra o feiticeiro. A isto soma-se o facto de, moralismos à parte, continuarmos a combater a Covid-19, às cegas, em grande medida, ou não soubéssemos como se dão apenas 13% (!) dos contágios.

Perante isto, parece claro que há – pelo menos no plano teórico – espaço para uma agenda alternativa à do medo, da culpabilização, do confinamento, da imposição e da morte. Aqui deixo algumas de linhas de reflexão para essa eventual alternativa:

1) E se, em vez de fecharmos as escolas, procurássemos contratar mais pessoal docente e não docente, desdobrássemos os horários criando turmas com menos alunos, e ocupássemos de forma mais eficaz os equipamentos que temos ao nosso dispor para – cumprindo o protocolo sanitário – não forçar crianças e jovens a estar em casa todo o dia ao cuidado dos seus pais?

2) E se, independentemente da passagem a teletrabalho, se apostasse no reforço dos transportes colectivos para impedir que se continuem a repetir cenas de veículos a abarrotar como as que continua a haver nas horas de ponta nas grandes cidades?

3) E se, em vez de fecharmos os espaços públicos ao ar livre, os dotássemos de equipas que pedagogicamente ajudassem a dissuadir eventuais comportamentos de risco nestes?

4) E se, em vez de fecharmos universidades seniores e centros de dia, encontrássemos os meios para que – sempre que o tempo o permita – estas estruturas pudessem realizar mais actividades ao ar livre? Talvez começando por reforçar o número de bancos de jardim, em vez de os fechar.

«E se, em vez de deixarmos os restaurantes nas mãos das plataformas digitais de entrega de comida ao domicílio, usássemos recursos na famosa «bazuca» para financiar protocolos que envolvessem, por exemplo, cooperativas de táxis na entrega de comida (sobretudo aos mais idosos)?»

5) E se, em vez de fecharmos o comércio (sobretudo o local), encontrássemos forma de o apoiar e garantir que se cumpriam as melhores práticas sanitárias e não havia exposição de clientes e trabalhadores a situações de risco?

6) E se, em vez de deixarmos os restaurantes nas mãos das plataformas digitais de entrega de comida ao domicílio, usássemos recursos na famosa «bazuca» para financiar protocolos que envolvessem, por exemplo, cooperativas de táxis na entrega de comida (sobretudo aos mais idosos)?

7) E se, em articulação com o poder local, se criassem (ou reforçassem nos casos em que já existam) redes de apoio aos grupos de maior risco nesta altura, permitindo que estes estejam simultaneamente mais protegidos e menos isolados?

8) E se ensinássemos as pessoas a usar correctamente a máscara (trocando-a regularmente) e incentivássemos o uso de máscaras melhores e com mais eficácia (como já se está a fazer noutros pontos da Europa), mesmo que para isso o Estado tivesse de intervir no sentido de programar a sua produção e distribuição em larga escala a preços acessíveis a todos?

9) E se, em vez de deixar o SNS chegar aos limites dos limites, o reforçássemos de forma decidida e, sem «paninhos quentes», utilizássemos todos os meios legais existentes para forçar que as operadoras privadas da saúde fossem integradas neste combate, sem que isso lhes permitisse acumular lucros?

Não é a primeira vez que por aqui o escrevo, mas permitam-me insistir neste ponto: cuidar da saúde dos portugueses e garantir uma sociedade equilibrada e justa não são desígnios incompatíveis. Não devemos ignorar que, depois do medo em doses industriais e da destruição social e económica em larga escala, virá a sua factura.

Por isso, é decisivo que a ciência não substitua a decisão política, mas que seja colocada ao seu serviço. A leitura da ciência que a política oferece é o que distingue uma tecnocracia de uma democracia!

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