Apesar de progressivamente o desporto se tornar um espaço cada vez mais aberto, algumas reacções à notícia de que o jovem ciclista belga Justin Laevens se assumiu como gay mostra que ainda há um caminho significativo a percorrer.
Mais do que o ciclista em particular e a sua decisão de tornar pública a sua orientação sexual, o que me prendeu à notícia foram alguns dos comentários que foram sendo deixados. Talvez, por ter sido noticiado num site desportivo especializado, não me tenha deparado com casos mais gritantes de homofobia, mas uma grande quantidade de comentários, a dizer «o que é que isso importa?», «quem quer saber?», «só me interessa a corrida/se é bom atleta», «porque é que tenho que saber com quem é que ele vai para a cama?», traduzem ignorância sobre a importância que o assunto tem para os atletas e para o desporto; nalguns casos contêm malícia encapotada e de forma geral revelam uma falta de empatia que demonstra a própria necessidade do Justin se ter afirmado.
«Embora não seja novidade a existência de atletas homossexuais no desporto, exemplos passados mostram que os obstáculos se mantiveram muito depois desse reconhecimento. Boa parte dos primeiros atletas a assumirem-se fizeram-no já após terem terminado a carreira»
Bastaria ler a notícia para entender que a decisão pesava na mente do jovem de 19 anos há já dois anos, como o preocupava mais a reacção dos seus companheiros e das equipas do que a da sua própria família, como uma campanha de um outro atleta belga (o remador Simon Haerinck) o ajudou a tomar essa decisão e assim poder ajudar outros com o seu próprio exemplo.
Embora não seja novidade a existência de atletas homossexuais no desporto, exemplos passados mostram que os obstáculos se mantiveram muito depois desse reconhecimento. Boa parte dos primeiros atletas a assumirem-se fizeram-no já após terem terminado a carreira. É o caso de Greg Louganis, saltador estado-unidense e detentor de quatro medalhas de ouro olímpicas, embora circulassem rumores sobre a sua orientação ao longo da sua carreira, o que, de acordo com Karen Crouse, jornalista do The Seattle Times, significou menos oportunidades para fazer dinheiro através de patrocínios, com as empresas a terem medo de perder segmentos de mercado com a associação ao «gay», que pesaria mais do que a associação à excelência desportiva. O mesmo sucedeu com Billie Jean King, uma das melhores tenistas dos anos 60 e 70 e uma das primeiras atletas a assumir-se como lésbica, chantageada e forçada a jogar muito para lá do seu auge devido a problemas financeiros directamente relacionados com a sua orientação sexual.
«Fora dos holofotes, a homofobia ainda leva muitos a desistir da vida desportiva por não encontrarem nela um espaço onde se sintam seguros, seja dentro das linhas da competição, seja nas bancadas»
As dificuldades dos atletas homossexuais em continuarem a competir depois de se assumirem também são conhecidas. Um dos casos mais trágicos terá sido o do futebolista inglês Justin Fashanu que, após se assumir em 1990, teve dificuldade em se manter em clubes, foi humilhado pelos adeptos e mais tarde viria a suicidar-se, após alegações de assédio de um menor terem surgido no Estado de Maryland, onde a homossexualidade era proibida. Fora dos holofotes, a homofobia ainda leva muitos a desistir da vida desportiva por não encontrarem nela um espaço onde se sintam seguros, seja dentro das linhas da competição, seja nas bancadas.
Uma das primeiras respostas encontrada pelos próprios foi a criação de equipas e competições exclusivas ou dirigidas sobretudo à comunidade LGBT. Merecem destaque os Gay Games, iniciados em 1982 em São Francisco (Califórnia, EUA), no 25.º aniversário dos motins de Stonewall, que para o ano terão a sua 11.ª edição, sendo já um evento global. Sendo estas iniciativas importantes na afirmação da igualdade, a plena igualdade na diferença só é atingida quando estes atletas são plenamente aceites pela comunidade desportiva. Podemos encontrar sinais positivos nos percursos da capitã da selecção estado-unidense de futebol Megan Rapinoe, bicampeã do mundo, de Douglas Souza, campeão olímpico em voleibol pelo Brasil (o país com mais violência homofóbica e transfóbica), e de – como poderá ser o caso – do jovem Justin.
A raiz dos problemas de inclusão no desporto, como não podia deixar de ser, provém da sociedade em geral. Mas, para além disso, a cultura desportiva, mais presente em certos desportos na sua vertente masculina, pode reforçar visões mais retrógradas da sociedade, se não for feito um esforço para as combater. Ivan Ergić, ex-futebolista jugoslavo, contava como a figura do «macho» é cultivada desde cedo nas formações, com a caracterização da fraqueza assente sempre num tom sexista e homofóbico, e como tem de existir um esforço consciente para quebrar essas barreiras.
«A raiz dos problemas de inclusão no desporto, como não podia deixar de ser, provém da sociedade em geral. Mas, para além disso, a cultura desportiva, mais presente em certos desportos na sua vertente masculina, pode reforçar visões mais retrógradas da sociedade, se não for feito um esforço para as combater»
O mesmo se aplica aos adeptos. Voltando à notícia de Justin, o desconforto com a orientação e vida sexual de um desconhecido atleta belga é contrastante com os milhões de páginas vendidas por todo o mundo com os mais novos romances e atribulações matrimoniais das grandes estrelas. Na maioria dos estádios e pavilhões, a homofobia é ainda prevalecente quando outras expressões de discriminação são já tidas como inaceitáveis. São conhecidas as tentativas de «assassinato de carácter», por associação à homossexualidade, que caem em cima de atletas tornados em motivo de chacota por causa disso. Cabe aqui, também, um papel importante à massa associativa dos clubes e de adeptos, o de ter zero tolerância com a homofobia.
Quanto a Justin Laevens, só tenho que aplaudir a sua atitude, e que esta contribua para discutir uma questão que, mais do que ser noticiada, deve ser aprofundada. Porque, sem o sabermos, muitos continuam a sofrer com uma cultura que não tem lugar no desporto e em lado algum.
Uma nota final: apesar de falar em LGBT, deixei fora deste artigo questões mais específicas aos transexuais e intersexo, precisamente pela sua especificidade, que merece destaque em si, e por a discussão sobre a forma da sua inclusão estar longe de encerrada ao nível dos organismos desportivos e outras plataformas. Eu mesmo não tenho conhecimentos aprofundados para dar um contributo maior à discussão que não seja o de reforçar a necessidade de garantir a igualdade de acesso à prática desportiva, em todos os níveis, para todos.
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