Há dias, numa pequena viagem de carro, o motorista do TVDE que apanhei contava-me que na primeira semana de confinamento tinha feito 20 euros. Depois disso, começou a fazer biscates para conseguir pagar contas. Para além do seu próprio caso, contou histórias que vão circulando entre trabalhadores destas plataformas: gente que investiu em carros no início de 2020, gente que faz 14 ou 15 horas e que trabalha pelo valor mais baixo só para poder ganhar qualquer coisa. O trabalho não paga sequer o combustível, mas as plataformas continuam a faturar. Para quem começou neste negócio pela perspetiva do empreendedorismo, a pandemia foi um choque com a realidade do trabalho precário.
«Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros»
Se não fossem estas breves conversas, teria mais dificuldade em conhecer relatos de pessoas que se estão a confrontar com a falta de expectativas no seu trabalho. Alguns amigos ligados à restauração vão desabafando sobre um pessimismo cada vez mais confirmado na impossibilidade de pagar salários (quanto mais receber) apesar de algum apoio do Estado. De resto, talvez por vergonha do julgamento alheio, os testemunhos são tímidos, como se estivessem a viver esta problema sozinhos.
Na verdade, este período isolou muitos de nós e limitou-nos na partilha e na solidariedade, apesar de o impacte da pandemia na economia se ter feito sentir quase de imediato nos setores mais fragilizados e mais precários. Dentro desses setores de atividade, foi necessário combater esse isolamento e procurar uma resposta conjunta para enfrentar aproveitamentos patronais e hesitações políticas.
Pouco depois de se decretar o confinamento obrigatório, em 2020, não tardaram as notícias sobre limitações de direitos laborais, despedimentos e desaparecimento de certos postos de trabalho. As micros, pequenas e médias empresas começaram a acusar a falta de apoio público e os relatos desesperados de pequenos empresários e trabalhadores não podiam mais ser escondidos por detrás de mensagens de otimismo santimonial. O país que não se limitou a confinar e despertava para a necessidade de se manifestar e lutar pelos seus direitos, enquanto os media serviam de caixa de ressonância de «achismo» político, reduzindo a pandemia a uma mera crise de gestão governamental e comunicacional.
«Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas»
Em Bruxelas, já a maioria dos Estados-membros sentia os efeitos de uma crise económica e social inegável, desenhava-se a «bazuca» em folha de cálculo, para dar resposta a realidades que todos os dias se agravavam mais. Mas nem a Comissão Europeia nem o governo português conseguiram esconder o conflito que um instrumento de emergência orçamental tinha com uma política económica desigual entre os seus diversos membros. Enquanto países como a Alemanha chegaram com eficácia às necessidades dos pequenos negócios e dos trabalhadores, os países periféricos, anteriormente intervencionados, como Portugal, sentiram os efeitos de uma política de contenção orçamental e de imposição do «equilíbrio» das contas públicas.
Esta análise encontrou eco nalguma imprensa portuguesa: de Agostinho Lopes, num artigo deste mês no Jornal Económico, a Eugénia Pires, numa outra reflexão, na edição portuguesa do Le Monde diplomatique de Março («Endividamento público na crise pandémica, uma hipoxia feliz»). Torna-se fundamental compreender esta leitura mais ampla, macroeconómica, para compreender as movimentações sociais de resposta à crise pandémica e económica que se fizeram sentir em Portugal, no último ano.
A par da hesitação da política orçamental, com um Orçamento do Estado a ser negociado em condições difíceis, muitas foram as empresas que aproveitaram a pandemia para despedir trabalhadores, para não pagar salários e para suspender direitos. A pandemia, que só por si trouxe problemas de extrema gravidade, serviu também de cortina de fumo para se prosseguir com o agravamento da precariedade, com a destruição de postos de trabalho e com a desvalorização daqueles que verdadeiramente produzem riqueza, fosse através do não pagamento de horas extraordinárias ou da recusa de pedidos de férias. Os dividendos – esses – continuaram a ser distribuídos.
«apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores»
Porém, apesar de uma enorme pressão mediática para limitar direitos de manifestação e de ação política – perfeitamente sintetizada na reprovação e na falta de solidariedade com as ações de luta do 1.º de Maio – e das restrições decretadas pelos vários estados de emergência, 2020 foi um ano de grandes demonstrações de resistência e coragem dos trabalhadores de muitos setores, que cedo perceberam o aproveitamento da pandemia e não tiveram outra alternativa senão sair à rua para defender o seu direito ao trabalho e os direitos do trabalho. Estas ações de luta não foram inconsequentes e os seus resultados demonstram a importância do sindicalismo, da unidade e da solidariedade entre trabalhadores.
Num tempo em que crescem os discursos antissindicais, disfarçados de preocupação com a falta de rejuvenescimento dos sindicatos, em que o capitalismo alimenta o individualismo, o derrotismo, o medo e a inércia; num tempo em que a agenda mediática tenta colocar os trabalhadores uns contra os outros e em que a ausência de referências à luta dos trabalhadores se faz sentir em cada peça noticiosa sobre «a crise» – neste tempo, o nosso –, os trabalhadores resistem e organizam-se, lutam e vencem, contra todas estas investidas, que têm na classe média o seu soldado preferido.
«Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta»
Desde 2020 até hoje, saíram à rua operários da indústria, que não só resiste ao tempo como resiste à lei; trabalhadores de multinacionais chantageados para lhes suprimirem direitos como o direito a férias; trabalhadores com salários em atraso e a quem foram retirados os subsídios de natal ou de férias; trabalhadores a quem foi pedido para alargarem o horário legal de trabalho sem direito ao pagamento das horas extraordinárias ou a quem foi imposto um modelo de banco de horas que irá prejudicar o bem-estar familiar; trabalhadores que viram as suas despesas de consumo doméstico aumentarem com o teletrabalho; trabalhadores que viram o risco a aumentar sem qualquer compensação; trabalhadores que fizeram de sujeitos passivos no encerramento das empresas onde são a força produtiva de trabalho; enfermeiros, professores e demais trabalhadores do Estado que exigem a valorização das carreiras. Todos os dias, se abrirmos as informações dos sindicatos, nas suas plataformas oficiais, lá estão todas essas lutas, todos os momentos cruciais dessas lutas, todo o apoio que os sindicatos disponibilizam aos trabalhadores, o papel dos partidos políticos na conclusão dos processos (senão na origem destes) e cada conquista que os trabalhadores conseguem com todo este sacrifício e todos estes bloqueios.
É aí que veremos que, depois de duas semanas de luta intensa, os trabalhadores da Groundforce conseguiram o pagamento dos salários em atraso; que, depois de 2 anos, Cristina Tavares viu a empresa que a violentou sentenciada em tribunal; que os trabalhadores e pequenos empresários viram as regras do lay-off serem paulatinamente alteradas a seu favor; que as trabalhadoras da Castimoda conseguiram impedir que o patrão retirasse as máquinas da fábrica; ou que os trabalhadores da refinaria de Matosinhos resistem ao seu encerramento. É aí que veremos, por exemplo, que trabalhadores como aquele motorista de TVDE que apanhei há dias já se conseguiram organizar e levar ao Governo as suas reivindicações sobre a regulamentação do setor.
Só este esforço e esta ação coletiva conseguem demonstrar que não há inevitabilidades e que as consequências de uma economia periférica, sujeita a regras orçamentais exteriores e interesses que não correspondem às necessidades reais dos povos, têm uma resposta. Todas as ações de luta dos trabalhadores, reunidas, são um movimento político consequente, que fará eco nos centros de decisão e obrigará a cedências. Só a luta organizada dos trabalhadores poderá reivindicar uma verdadeira alternativa política soberana, que não esteja dependente de Bruxelas e que desencadeie um conjunto de opções orçamentais que responda à situação real do país, com uma fiscalização profunda às dinâmicas fraudulentas, com um investimento sério no setor produtivo do Estado, com uma Segurança Social robusta, com serviços públicos com recursos suficientes para garantir o acesso de todos e com a consolidação da contratação coletiva. Tudo isto começa na luta dos trabalhadores.
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