Por ar e terra, dezenas de agentes expulsaram quem tinha tendas e barracas instaladas na zona, sob a ameaça de prender qualquer um que não cumprisse a ordem, revela a jornalista Eloá Orazem, do Brasil de Fato, numa reportagem publicada esta sexta-feira no portal do Resumen Latinoamericano.
O advogado Gary Blasi, que é também professor de Direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e dedica a carreira a defender a população mais vulnerável, disse à reportagem que, «a menos que as pessoas tenham uma alternativa real de abrigo, morar nas ruas não infringe nenhuma lei».
Ainda segundo o professor, a manobra foi feita com o argumento de que havia oferta de albergues disponível, o que tornaria obrigatória a saída das pessoas do acampamento.
«O que aconteceu em Echo Park servirá de modelo à forma como a cidade de Los Angeles deve enfrentar situações parecidas noutras áreas. Basicamente, o estado vai recorrer à força policial e oferecer um abrigo temporário, em estruturas provisórias», afirmou Blasi. Acrescentou que «o problema é que estas pessoas ficam abrigadas por pouco tempo e em breve estão de volta nas ruas».
Blasi recorreu a dados para explicar o problema social. «Mesmo antes da pandemia, cerca de 600 mil famílias dedicavam mais de 90% do seu rendimento ao pagamento do aluguer. Isto significa que, confrontadas com um qualquer contratempo, como uma doença ou um despedimento, famílias inteiras se vêem obrigadas a ir viver para a rua», disse.
Programas insuficientes
A arquitecta e urbanista Dana Cuff, professora da UCLA, onde dirige o prestigiado CityLab, traz mais números para explicar a situação. «Cerca de 20 mil indivíduos deixam as ruas para se mudarem para uma casa todos os anos em Los Angeles, mas, no mesmo período, outras 25 mil pessoas vão parar às ruas.»
De acordo com Cuff, além da disparidade de rendimentos, o que contribui para a crise de habitação local é a disparidade entre o que se ganha e o que se gasta. «Uma unidade de habitação social, em Los Angeles, custa algo como 650 mil dólares – e isto está muito longe de ser acessível», comentou.
Segundo a LA Homeless Services Authority (LAHSA), mais de 66 mil pessoas viviam nas ruas da cidade em 2020, o que representa um aumento de 12,7% em relação ao ano anterior.
Existem programas federais, como o Section 8, que visam subsidiar habitações permanentes para pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, mas na realidade estes e outros projectos de apoio não satisfazem a procura.
Na cidade californiana, com um dos mercados imobiliários mais caros do país e com dezenas de milhares a viver nas ruas, foram poucos os sem-abrigo que conseguiram aceder a um tecto nos últimos 3 anos. Kimberly Decoursey, uma mulher de 37 anos que cresceu em lares de acolhimento e viveu vários anos nas ruas, passa agora as noites num centro de acolhimento temporário em Los Angeles, chamado Hollywood Studio Club. Os dias, passa-os ainda na rua, na rampa de saída de uma auto-estrada, junto do seu noivo (sem-abrigo) e na companhia daqueles que considera «família» – os que partilharam com ela as dificuldades das ruas de Los Angeles e que ela gostaria que tivessem o que tem agora: cama, comida na mesa e duche. «Muitos deles dariam um braço para estar ali», disse Decoursey à Reuters sobre os seus companheiros, que vivem em tendas sujas no bairro de Hollywood. No entanto, das cerca de 36 mil pessoas sem-abrigo que se estima haver em Los Angeles, poucas foram as que conseguiram um tecto nos últimos três anos, depois de a população ter aprovado uma proposta, em Novembro de 2016, para construir habitações para pessoas que vivem nas ruas e em situação de pobreza, no âmbito da qual foi reunida uma verba de 1200 milhões de dólares. Segundo a Reuters, um dos maiores obstáculos à construção de habitações permanentes com serviços sociais incluídos reside no facto de Los Angeles deter um dos mercados imobiliários mais caros dos Estados Unidos. Além disso, grupos de proprietários de habitações têm-se oposto à construção de centros de acolhimento nos seus bairros. Numa região metropolitana em que os preços dos bens imobiliários são muito elevados (o valor médio de uma casa na Grande Los Angeles ronda actualmente os 650 mil dólares), o plano de construção de centros para sem-abrigo gerou uma forte reacção negativa da parte de alguns residentes, preocupados com a possibilidade de diminuição do valor dos seus imóveis. No bairro rico de Venice, junto à praia, onde o preço médio de uma casa se aproxima dos 2 milhões de dólares, alguns residentes foram para tribunal para se opor à construção de um centro de acolhimento. As autoridades prevêem que o primeiro projecto financiado pela medida aprovada na consulta de há três anos, com vista à criação de centros permanentes com serviços sociais, abra no final deste ano. É que o problema está a crescer. Em Janeiro de 2019, o número de sem-abrigo aumentou 16% por comparação com o ano anterior, de acordo com os dados divulgados pela Los Angeles Homeless Services Authority (LAHSA). Grupos de pessoas sem-abrigo montaram tendas em passeios e em locais abandonados de quase todos os bairros da segunda maior cidade do país, desde o rico Bel-Air até ao operário San Pedro. Numa visita à Califórnia em Setembro, o presidente norte-americano, Donald Trump, afirmou que as pessoas que vivem nas ruas arruinaram o «prestígio» de Los Angeles e San Francisco, tendo sugerido a possibilidade de uma intervenção federal. Nesse mesmo mês, o governo da cidade e do Condado de Los Angeles (democrata) solicitaram ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos que lhes atribuíssem de volta as competências para poderem «varrer» os acampamentos de sem-abrigo. Um relatório publicado este mês pelo Laboratório de Políticas da Califórnia em Los Angeles, que recolheu dados sobre 64 mil pessoas sem-abrigo adultas solteiras em todo o país, revelou que metade delas informou que sofria, conjuntamente, de algum tipo de doença física, mental e de abuso de substâncias. Ainda de acordo com a Reuters, que se baseia nos dados do Departamento de Saúde Pública do Condado de Los Angeles, nesta área geográfica a taxa de mortalidade aumentou nos últimos cinco anos entre os sem-abrigo, tendo sido registados mais de mil falecidos em 2018 por causas como doenças cardíacas e sobredoses de drogas. Se é um facto que os centros de acolhimento tradicionalmente proibiram o consumo de drogas e álcool, o requisito da sobriedade começou a ser eliminado no acesso aos centros de acolhimento, no âmbito de um modelo designado como «Casa primeiro», que já havia sido utilizado no Canadá e noutras partes dos EUA. Mesmo antes da aprovação da medida a favor da construção dos centros, há três anos, Los Angeles já tinha construído alguns centros de acolhimento permanentes, com serviços de apoio. De acordo com as autoridades, enchem-se depressa e geram longas listas de espera. Os serviços para ajudar pessoas sem casa (clínicas médicas e gabinetes para assistentes sociais e outros funcionários) devem custar sete mil dólares por unidade em cada ano, ficando os custos a cargo do Condado de Los Angeles. A resistência à integração num centro de acolhimento é partilhada por uma parte da população de sem-abrigo, afirmou Benjamin Henwood, professor associado de Trabalho Social na Universidade do Sul da Califórnia. «Se a escolha é ir para um abrigo, podem muito bem dizer-nos "Não, obrigado", porque um abrigo pode ser um local onde são roubados, assaltados ou acordados a determinadas horas ou obrigados a deitar-se a certas horas», disse à Reuters. «Se lhes for oferecido um espaço realmente privado, a maioria das pessoas aceita a oferta», acrescentou. Outra questão prende-se com os animais de estimação, já que um em cada sete sem-abrigo em Los Angeles tem um animal e pode mostrar relutância em separar-se dele, revelou Henwood. Trata-se de um apoio emocional importante e a organização People Assisting the Homeless tem estado a trabalhar no sentido de tornar os centros em que trabalha mais acolhedores, permitindo a presença de animais de estimação. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Los Angeles continua a ser a capital dos sem-abrigo nos EUA
Problema a aumentar
População com muitos problemas e necessidades
Tornar os centros mais acolhedores
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«O programa Section 8 está congelado há anos. A última vez que o governo abriu uma espécie de lista de espera, a fila durava cerca de dez anos. Aqui, em Los Angeles, quando este projecto foi retomado em algumas zonas, o sistema telefónico caiu devido ao volume inesperado de chamadas», recordou Blasi, que compara o programa com «ganhar a lotaria». «E, com os valores de hoje, esta ajuda governamental só permitiria o aluguer de algo precário em regiões muito periféricas», acrescentou.
Também contribui para o problema o facto de os moradores se unirem para protestar contra o desenvolvimento de projectos sociais nos seus bairros. «Eu diria que todos os bairros de Los Angeles são contra a construção de habitação social nos seus limites. E é curioso que as mesmas pessoas que protestam contra o tratamento duro da Polícia e das autoridades em relação aos indivíduos sem-abrigo são as mesmas que se opõem a esses projectos. Ninguém os quer por perto», lamentou Dana Cuff.
Não é por acaso, portanto, que uma em cada cinco pessoas em situação de rua se encontre na cidade de Los Angeles. O estado da Califórnia, o mais rico dos Estados Unidos, representa metade de toda a população sem-abrigo do país.
«Os números são ainda menos favoráveis para a população negra. Para os afro-americanos, as possibilidades de acabar na rua são de seis a dez vezes maiores», referiu Blasi.
Soluções
Para o doutor em Sociologia Samuel Lutzker, que estuda os acampamentos de pessoas sem-abrigo na cidade, as alternativas apresentadas pelas autoridades não são, até agora, uma resposta definitiva à crise. «Os centros de acolhimento têm recolher obrigatório e regras muito duras, que muitas vezes geram traumas nas pessoas. Além disso, para viver num desses albergues ou em programas de habitação temporária, estes indivíduos têm de renunciar à sua comunidade e afectos, como companheiros, amigos e até animais de estimação. Quando se chega a este ponto de desamparo, o cuidado da comunidade, na maioria das vezes, é tudo o que essa pessoa tem», disse à reportagem.
No entanto, isso não significa que as pessoas «prefiram viver na rua». «Toda a gente quer uma casa, mas num contexto que seja melhor do aquele que as pessoas têm nas ruas», afirmou Lutzker.
O investigador defendeu a implementação de programas de larga escala que combatam a desigualdade e a pobreza nos Estados Unidos. «Precisamos de mudar para um sistema socialista, ou então não seremos capazes de combater as formas de desigualdade que o nosso capitalismo criou», frisou.
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