PS e BE, CDS e UE, PAN e PSD, todos querem dar aos trabalhadores o direito a desligar. Eis o que os próprios e a comunicação social nos repetem sem cessar. Mas esta gente nada está a dar aos trabalhadores. O patrão não pode exigir-nos nada fora do horário de trabalho. O que estão a querer garantir é o dever de estar ligado mais tempo que o nosso tempo de trabalho e de o patrão medir o tempo de trabalho efectivo alargando o horário de trabalho real. E assim se fazem os grandes defensores modernos dos trabalhadores: dando direitos aos patrões!
«PS e BE, CDS e UE, PAN e PSD, todos querem dar aos trabalhadores o direito a desligar. Eis o que os próprios e a comunicação social nos repetem sem cessar. Mas esta gente nada está a dar aos trabalhadores. O patrão não pode exigir-nos nada fora do horário de trabalho»
Comecemos pela União Europeia (UE). Vejamos o que diz a proposta de directiva comunitária, no seu Artigo 3.º:
«Direito a desligar. 1. Os Estados-Membros asseguram que os empregadores tomam as medidas necessárias para fornecer aos trabalhadores os meios para exercerem o seu direito a desligar. 2. Os Estados-Membros devem assegurar que os empregadores criam um sistema objetivo, fiável e acessível que permita medir a duração do tempo de trabalho diário de cada trabalhador, em conformidade com o direito dos trabalhadores à privacidade e à proteção dos seus dados pessoais. Os trabalhadores devem ter a possibilidade de solicitar e obter o registo dos seus tempos de trabalho. 3. Os Estados-Membros asseguram que os empregadores apliquem o direito a desligar de forma justa, legal e transparente.»
Numa leitura muito distraída, está a dar-se direitos aos trabalhadores. Agora façamos uma leitura mais fina:
- Hoje, fora do horário de trabalho estabelecido, o trabalhador não tem que atender chamadas do patrão ou de colegas. Ponto. Só atende se quiser, e se não quiser não atende e ninguém tem nada com o assunto, nem lhe podem fazer qualquer tipo de processo disciplinar. Com o texto proposto, o trabalhador, para passar a ter o que já tinha, terá de dirigir-se à empresa a requerer o direito a desligar. E se não o fizer, passará a estar obrigatoriamente ligado, o que antes não acontecia. E ainda se deixa o espaço para legislar o tempo de desligar separado (logo maior) do tempo de trabalho. Está a dar-se ao patrão o que ele não tem.
«Com o texto proposto, o trabalhador, para passar a ter o que já tinha, terá de dirigir-se à empresa a requerer o direito a desligar. E se não o fizer, passará a estar obrigatoriamente ligado, o que antes não acontecia»
- Hoje, o horário de trabalho é definido entre limites horários concretos e o instrumento de medida é o relógio. Mesmo em teletrabalho. Com esta proposta, o patrão passa a poder medir o tempo de trabalho segundo outros critérios além do intervalo horário (por exemplo, não incluindo no tempo de trabalho o período em que um operador de call center aguarda que lhe chegue uma nova chamada), e a invadir a privacidade do trabalhador, por exemplo ao controlar o que se faz no computador de cada um. Na prática, está-se a intensificar o trabalho e a estender o horário de trabalho. Hoje não se podem instalar câmaras para controlar o trabalhador enquanto trabalha. Nem se pode contar o número de vezes que carrega no teclado. Como foi dito acima, tentam dar ao patrão um conjunto de direitos que ele hoje não tem.
«Hoje, o horário de trabalho é definido entre limites horários concretos e o instrumento de medida é o relógio. Mesmo em teletrabalho. Com esta proposta, o patrão passa a poder medir o tempo de trabalho segundo outros critérios além do intervalo horário (por exemplo, não incluindo no tempo de trabalho o período em que um operador de call center aguarda que lhe chegue uma nova chamada)»
Cá mais perto de nós, nas propostas em discussão sobre o teletrabalho, o PS coloca como uma das questões a regular no contrato de teletrabalho «o horário de trabalho, incluindo horário de desligamento», ou seja, admite explicitamente que um é diferente do outro, e que o trabalhador tem que estar ligado mais tempo que o seu horário de trabalho! E não satisfeito, ainda estende esse limite com base em critérios subjectivos, pois o patrão deve «abster-se de contactar o teletrabalhador no período de desligamento a que se refere o artigo 18.º, ressalvadas as situações de força maior». Ou seja, pode. E se pensarmos que o PS escreve que «entende-se por “período normal de funcionamento da empresa” o que se inicia às 08h00 e termina às 19h00» e abre a possibilidade de o «controlo da prestação do trabalho» não ser através de um horário determinado, na prática alarga o horário de trabalho para as 11 horas diárias, mas sem aumento de remuneração.
Mesmo num ano (2020) em que se regista uma diminuição do trabalho nocturno e aos fins-de-semana, fruto da crise associada à pandemia, os patrões voltam a não pagar a maior parte do trabalho suplementar. Nos dados do Inquérito ao Emprego do Instituto Nacional de Estatística (INE) analisados pelo Dinheiro Vivo/JN, revela-se que apenas 49,4% das horas trabalhadas para além do horário normal foram pagas pelos empregadores. Pese embora no ano de 2020 ter havido uma diminuição significativa dos trabalhadores a fazer horas extraordinárias, num total de 477 mil (12% de trabalhadores por conta de outrem, no que corresponde ao número mais baixo desde 2013), manteve-se a política empresarial de não pagar mais de metade dessas horas. Veja-se que, no ano passado, foram menos 86 mil as pessoas que trabalharam à noite, quando se compara com 2019, numa quebra de 16,3%. É o maior decréscimo verificado pela série do INE, que se iniciou em 2011, ainda que se tenha de ter em conta o factor do aumento do desemprego. Foram também, em comparação com 2019, menos 14% os profissionais que trabalharam ao sábado, e menos 13% ao domingo. Esta diminuição de trabalho ao fim-de-semana decorre de medidas restritivas de combate à pandemia, como o encerramento de actividades relacionadas com a hotelaria, a restauração e o turismo, mas também com o encerramento de espaços de diversão nocturna, fechados há quase um ano. Não obstante, a média de horas extraordinárias manteve-se nas oito horas, não tendo sofrido alterações face a 2019. E verificou-se que são menos 124 mil as pessoas que ultrapassam o limite máximo do horário legal de trabalho, isto é, as 41 horas semanais. No período da Troika e do governo de PSD/CDS-PP, 60% do trabalho suplementar ficou por pagar, sendo que só em 2012 isso correspondeu a 114,2 milhões de horas de trabalho suplementar sem remuneração. E, nos últimos anos, a média cifra-se à volta dos 50% de horas a mais trabalhadas sem qualquer pagamento. Em 2018, quando não foram pagas cerca de metade das horas extra, os patrões pouparam cerca de 820 milhões de euros. Recorde-se que, de acordo com um estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas, publicado em 2019, os mecanismos legais que se definiram para desincentivar o recurso ao trabalho extra, não são suficientes. No documento da autoria de Diogo Martins, Fausto Leite, Filipe Lamelas e João Ramos de Almeida, lia-se que «é possível concluir que o número de horas de trabalho suplementar tem apresentado uma tendência consistente de crescimento ao longo do período analisado (desde 2011)». Sendo que, a tendência de crescimento do número de horas extraordinárias realizadas tem início no período, em que com a intervenção da Troika, e pelas mãos do governo PSD/CDS-PP, foi aprovado em 2012 um «pacote de medidas que alteraram significativamente a contabilização e a remuneração das horas de trabalho suplementar», que embarateceram o trabalho, com o corte «para metade das majorações de remuneração por trabalho suplementar e a eliminação do mesmo o período de descanso compensatório por trabalho suplementar (25% do tempo realizado)», explicavam então os autores. Esta prática tem levado à concentração nos bolsos dos empregadores de uma grande parte da riqueza produzida, sendo que o referido estudo revelava que só entre 2011 e 2018, «ficaram por pagar – segundo os trabalhadores – mais de 6,6 mil milhões de euros» em horas extra. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
Mais de metade do trabalho extra fica por pagar
Realidade que se repete nos últimos anos
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Aliás, à boleia do direito a desligar, o próprio CDS tem uma proposta: «Direito ao desligamento: Os trabalhadores que utilizam ferramentas digitais, incluindo as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), para fins profissionais, têm direito a desligar durante o seu período de descanso diário; O direito previsto no número anterior não obsta que, em caso de força maior e de urgência, devidamente justificável, o empregador possa contactar o trabalhador». Mais uma vez, o que se está a dar é o direito aos patrões (todos) ligarem ao trabalhador sempre que lhes apetecer, e aos das TIC de o fazerem «em caso de urgência», ou seja, sempre que quiserem.
«nas propostas em discussão sobre o teletrabalho, o PS coloca como uma das questões a regular no contrato de teletrabalho «o horário de trabalho, incluindo horário de desligamento», ou seja, admite explicitamente que um é diferente do outro, e que o trabalhador tem que estar ligado mais tempo que o seu horário de trabalho!»
O que o BE propõe é nada. Mas na sua demagogia e necessidade de andar na crista das ondas criadas por quem tem o poder para criar ondas mediáticas, acaba a facilitar o trabalho da direita! Vejamos a proposta do Bloco: «O empregador abstém-se de estabelecer comunicações com o trabalhador fora do tempo de trabalho através de ferramentas digitais, como telefonemas, mensagens de correio eletrónico e outras.» É uma mera clarificação de algo que está implícito na definição de horário de trabalho. Mas ao alinhar na campanha de que se está a legislar sobre «o direito a desligar» acaba por ajudar a distrair do essencial: a direita e o patronato estão a preparar-se para legislarem o nosso dever de estar ligado fora do horário de trabalho.
As propostas da área do PAN têm um efeito similar. Tal como as do BE, ainda afirmam que a tentativa de contacto por parte do patrão fora do horário de trabalho «pode» ser considerada assédio, mas na prática propõe o que existe hoje – esse contacto já «pode» ser considerado assédio – com a agravante de assumirem que se a lei não for alterada os patrões hoje têm o direito de contactar e ser atendidos. E não têm!
Concluindo: O direito a desligar é uma fraude! E na prática representa a tentativa de dar o direito dos patrões de nos terem mais tempo ligados e controlados.
O que é justo reivindicar é o direito ao respeito pelo horário de trabalho. Ponto. Nesta questão, não é preciso mudar o código, é preciso fazê-lo cumprir.
E aos milhares de trabalhadores – em teletrabalho e não só – que são vítimas de assédio patronal é preciso dizer-lhes três coisas:
1. Tens um horário de trabalho, organiza-te para o defender e impedir o abuso patronal.
2. Se o patrão, o chefe, o supervisor, liga fora do horário de trabalho, não atendas.
Não permitas que PS, PSD e CDS, com o apoio da UGT e dos patrões, e a cumplicidade de BE e PAN, criem a obrigação, que hoje não existe, de estares ligado além do teu horário de trabalho.
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