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Derivas contemporâneas

O debate político é tragado pelo debate multicultural em variadas e autónomas vertentes que acabam por arranhar as elites que detêm o poder sem contestarem as estruturas económicas e políticas que as sustentam.

A Persistência da Memória, Salvador Dalí, 1931
CréditosSalvador Dalí

Activistas com ligações ao MeToo exigem a rectificação de mais um escândalo que, depois de muitas horas de exibição em pantalhas por todo o mundo, tem passado sem punição: o beijo com que o príncipe acordou Branca de Neve não foi um beijo consentido!

É um, mais um, evidente caso de violência sobre o sexo feminino, de evidente assédio sexual. Celebre-se João César Monteiro, sempre muitíssimo atento à moral e aos bons costumes, que tapou a objectiva com um pano negro para que a impudicidade da cena não fosse vista. Dizia o realizador aos interpelantes que não tinham percebido a demanda: «Queriam o quê? Telenovela? Fadinho?». Queriam e querem. O que se está a assistir e a acontecer sob a capa do multiculturalismo, com os estudos feministas, queer, racistas, etc., e a sua repercussão social, nos meios universitários, laborais, artísticos, é inquietante. Tão patético quanto o beijo do príncipe foram os apelos para que Gaugin fosse excluído dos museus, acusado de ser um pedófilo de mentalidade colonialista, encabeçando um índex que incha sem tino e em que são poucos os que escapam a essa fúria persecutória. Até Dante lá foi parar por ter escrito a Divina Comédia, considerada obra homofóbica, racista, anti-islamista e anti-judaica. Estes e outros sucessos são tão excessivos e folclóricos, tonteiras tão tontas (passe o pleonasmo), tão passíveis de serem imediatamente comparadas às fogueiras inquisitoriais de torquemadas pós-modernos por um muito amplo arco de forças políticas e sociais, que, de algum modo, menorizam as lutas identitárias, que até lhes são úteis, mas sobretudo rasuram as lutas de classe em que as lutas identitárias deveriam e estão integradas, com o objectivo de nivelar tudo para que a realidade, nos seus termos actuais, seja não só aceitável como mesmo desejável. Não devem ser consideradas um acaso estas manifestações extremas de um radicalismo pequeno burguês que mais não é que um mimetismo proletário das camadas burguesas decadentes. Acabam por se tornar topos de divertimento, de chacota, que distraem para desfocar as análises a fundo do que está na sua origem, que deve ser séria e severamente analisado pelo seu poder de inquinar as lutas de esquerda e das forças progressistas que não fazem concessões às elites que detém o poder.

«Acabam por se tornar topos de divertimento, de chacota, que distraem para desfocar as análises a fundo do que está na sua origem, que deve ser séria e severamente analisado pelo seu poder de inquinar as lutas de esquerda e das forças progressistas que não fazem concessões às elites que detém o poder»

Nesse universo convulsionado e fragmentado, uma das acções que mais frutos colheu e colhe é a da chamada escrita inclusiva. No mundo em que o conhecimento da língua se desgasta nas vulgaridades lexicais das redes sociais e dos tweets, cresce a obsessão pelas regras gramaticais em que se procura impor a igualdade entre homens e mulheres, esbater as diversidades étnicas. As neo-feministas defendem a imposição de regras para que, no dizer delas, a gramática deixe de invisibilizar as mulheres. Títulos, funções, graus e ofícios devem passar a obrigatoriamente a usar o feminino e o masculino por dupla inflexão ou outro qualquer método. Essa seria agora uma das grandes frentes de luta do combate feminista, mais preocupado com os símbolos do que com a realidade das desigualdades e outras violências exercidas sobre as mulheres. Uma luta que ultrapassa fronteiras. Por cá Francisco Assis, que dá cobertura aos burocratas do patronato no CES a que preside para serem força de bloqueio aos acordos parlamentares sobre as leis do trabalho e contratação colectiva, torna-se um campeão da escrita inclusiva, o que lhe valeu inúmeros elogios nos media. Pouco interessa que ele pouco se preocupe que em Portugal as mulheres ganhem em média cerca de 15% menos do que os homens, diferença que aumenta para 26% nos quadros de topo, não discutindo essa questão no CES como quer a CGTP. Algumas universidades inglesas e norte-americanas surfam as ondas da escrita inclusiva admitindo os erros ortográficos como um esforço positivo para reduzir diferenças de aproveitamento entre estudantes brancos e de outras etnias pregando que isso seria forma de reduzir taxas de desistência porque «construir uma voz académica significa adoptar um modo de expressão particular de uma elite do norte europeu, branca, masculina, dependente de um alto nível de proficiência técnica em inglês escrito e falado» e que tal «modo de expressão» obscurece as particularidades de cada aluno, nomeadamente os estrangeiros, de minorias étnicas e os mais pobres. Em vez de considerar a individualidade e a diversidade cultural dos alunos estendem o tapete da escrita inclusiva para aí esfregaram as solas dos seus sapatos impregnados de um insuportável paternalismo colonialista.

As lutas identitárias ditas fracturantes espalharam-se praticamente por todo o universo, o que foi facilitado pela aculturação promovida por uma cultura dominada pelas leis do mercado e subordinada ao normativo anglo-saxónico. Começaram a invadir o ensino universitário onde se preparam as elites. Na Universidade de Oxford, a mais antiga e prestigiada universidade de língua inglesa, estão em cima da mesa do seu conselho científico propostas para a reforma do ensino da música pressionado pelo movimento Black Lives Matter. As primeiras notícias fizeram soar sirenes de alarme, anunciando mesmo o descartar o reportório clássico, Bach, Beethoven, Mozart para que o estudo da música «perdesse as suas conexões coloniais», se tornasse mais inclusivo, afastando-se dos currículos musicais a «conivência e cumplicidade com a supremacia branca». Bem estranha essa preocupação quando Beethoven, como escreve Romain Rolland, «ama a liberdade com orgulhosa consciência de quem se liberta da mordaça do velho mundo podrido dos seus senhores e dos seus deuses, mostra-se digno da sua nova liberdade», ou quando Mozart, que tem uma primeira referência anti-racista nos diálogos da Flauta Mágica, quando Papageno diz que «se há aves pretas, porque não hão-de existir homens pretos» (Acto I/ Cena 14). Evidentemente que a notícia era um excesso especulativo porque nunca seria possível um ensino musical que pusesse em causa intransigentemente a notação e a leitura de partituras clássicas, mas foi provocada por estar em marcha um movimento para o «estudo de uma maior variedade musical»  que não se sabe até onde irá até porque os ventos que andam a varrer o ensino universitário, impulsionados pelas lutas identitárias tem aberto várias janelas. Na universidade de Yale está em marcha a revisão do curso de Arte do Renascimento à Actualidade, porque alguns mestres repararam agora no mais que manifesto facto de os pintores renascentistas serem brancos e masculinos. Um azar que Iago, em vez de intrigar e manipular Otelo, não se tenha dedicado à pintura tendo por modelo Desdémona para concorrer com Ticiano porque, apesar de continuar a ser um representante masculino, pelo menos não era branco. Decidem que é preciso tirar a arte ocidental do seu pedestal, colocá-la no contexto mais amplo «das questões do género, da classe, da raça e também das alterações climáticas»!!! Não menos grave é a English Touring Opera, conhecida companhia de ópera itinerante, ter decidido licenciar metade dos seus efectivos para promover a diversidade étnica dos seus membros sobrepondo esse critério aos critérios de mérito musical.

«[o multiculturalismo,] mais do que criticar as estruturas responsáveis pela exclusão e marginalização de vastas franjas sociais e integrar as lutas contra essa exclusão e marginalização no contexto mais vasto das lutas de classe, as desintegrou nas lutas identitárias ditas fracturantes que se são importantes nos contextos de mudança de atitudes sociais acabam por ser irrelevantes na alteração radical da sociedade»

Já nos anos 50, muito antes de Fukuyama decretar o fim da história, o sociólogo Daniell Bell, analisando a ausência de comprometimento político nos meios artísticos e intelectuais dos EUA, decretou que o período do pós-guerra tinha marcado o «fim das ideologias»,1 prenunciando o estado actual do multiculturalismo que se tornou um fim em si, em que mais do que criticar as estruturas responsáveis pela exclusão e marginalização de vastas franjas sociais e integrar as lutas contra essa exclusão e marginalização no contexto mais vasto das lutas de classe, as desintegrou nas lutas identitárias ditas fracturantes que se são importantes nos contextos de mudança de atitudes sociais acabam por ser irrelevantes na alteração radical da sociedade, pelo que rapidamente são absorvidas, até aceites com complacência pelo poder e pelo pensamento dominantes, que soube e sabe ler e explorar com agudeza que se estava a abandonar a análise das raízes profundas dos problemas sociais e económicos, identificando as mudanças estruturais necessárias para os superar, para as substituir pelo expandir de direitos e procurar oportunidades dentro do sistema. Ignora-se desse modo que o capitalismo é uma ordem social institucionalizada pelo que essas práticas políticas, sociais e económicas se tornam incapacitantes, desviadas das lutas contra as estruturas fundamentais que assim se desgastam, mesmo perdem, a possibilidade de uma crítica radical do capitalismo atirada para um labirinto de identidades desarticuladas em que se desbarata o conceito de classe e de alienação em que tudo se torna relativizável.

O debate político é tragado pelo debate multicultural, nas variadas e autónomas vertentes entrincheiradas na excelência dos debates semiológicos pós-estruturalistas que acabam por arranhar as elites que detêm o poder, sem contestarem as estruturas económicas e políticas que as sustentam. Muitas das suas manifestações são happenings que a comunicação social dominante transmite enlevada. É a integração das lutas identitárias e fracturantes na política espectáculo o que é perfeitamente entendido pelas forças que suportam o poder e que se traduz no espaço mediático que ocupam nos media corporativos, no apoio económico que fundações, como as de Soros, Rockfeller, Ford, etc., concedem ao MeToo, Black Lives Matter, outras organizações similares e ONG’s. Nancy Fraser, filósofa ligada aos movimentos feministas, descreve como o neoliberalismo progressista já dominava a política estadunidense ainda antes de Trump: «isso pode soar como um oxímoro, mas era uma aliança real e poderosa de dois companheiros de cama improváveis: por um lado, as correntes liberais mainstream dos novos movimentos sociais (feminismo, anti-racismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores “simbólicos” e financeiros mais dinâmicos da economia dos EUA (Wall Street, Silicon Valley e Hollywood)». Aliança que tem por objectivo último liberalizar e globalizar a economia capitalista, consolidando a sua hegemonia, o que é desde sempre o objectivo do liberalismo na sua pluralidade, de que essas esquerdas desbussoladas acabam por ser objetivamente aliadas.

Russell Jacoby faz uma análise contundente: «despojados do seu vocabulário socialista, esbulhados das suas esperanças utópicas, os progressistas e os esquerdistas bateram em retirada, em nome do progresso, para celebrar a diversidade. Não tendo ideias para enfrentar o futuro, aderiram a todas as ideias. Sob as vestes do multiculturalismo, o pluralismo tornou-se num albergue espanhol, o alfa e o ómega do pensamento político, o ópio dos intelectuais desiludidos, a ideologia de uma época sem ideologia».2

«um idealismo estéril em que a luta por uma mudança radical da sociedade, das suas estruturas sociais, políticas e económicas, das suas diversas opressões, é travada no território das imagens e da linguagem, em que aquela nunca é atacada na sua base social, política e económica»

Ficam prisioneiros de um idealismo estéril em que a luta por uma mudança radical da sociedade, das suas estruturas sociais, políticas e económicas, das suas diversas opressões, é travada no território das imagens e da linguagem, em que aquela nunca é atacada na sua base social, política e económica. Para amortecer as energias das lutas contra o clima neoliberal dominante, um dos processos mais vulgarizados é o do silenciamento das forças de esquerda mais consequentes, o que é facilmente detectável em todos os media corporativos estipendiados. Outro, mais subtil, é uma variante do replay que vemos quase diariamente nos serviços noticiosos quando recorrem a correspondentes geograficamente distantes. Quanto maior for a distância maior é o tempo que o receptor leva a perceber a questão e a ela responder. Essa inevitabilidade física é usada por algumas forças de esquerda que aproveitam os acalantos que a comunicação social lhes disponibiliza. Tornaram-se vulgares propostas feitas nos mais diversos palcos, institucionais e não institucionais, para corrigir e atacar os desmandos deste estado de sítio, serem noticiadas e assumidas não pelos proponentes mas por outros com dois objectivos: o primeiro é tornar os proponentes invisíveis, o segundo é esvaziar o conteúdo do seu valor activo. Isto faz com que essas esquerdas surjam a falar para os grupos oprimidos, para as minorias como se elas fossem a sua preocupação maior. Essa é a falácia porque o efeito pretendido é desviar as lutas das organizações de massas e dando visibilidade às lutas, esterilizá-las em discursos fortemente centrados em grupos autonomizados de trabalhadores, feministas, minorias étnicas, LGTBI+, etc., que nunca atacam a raiz dos problemas embora se dediquem à poda, uma actividade que se bem orquestrada apresenta a esquerda como um projecto afectivo e moral o que, por vezes, até se torna aliciante nas esquerdas mais empenhadas nas transformações sociais, mas que é um sucedâneo que substitui o projecto de libertação humana com o fim da sociedade de classes que deve ser sempre o objectivo da esquerda e das forças progressistas.

Há que perceber e afirmar que o multiculturalismo é sempre gerador de múltiplas identidades privadas, individualizadas, definidas em termos antagónicos e interseccionais com o objectivo de desarticular a luta de classes e as hipóteses de uma crítica estrutural e radical do capitalismo, inquinando a consciência colectiva e o militantismo político.

Como escreveu Pepe Escobar, sintetizando brilhantemente o momento actual em que vivemos «somos empurrados pelas ondas de uma baleia já arpoada, sem qualquer ideia de como, onde ou quando isto vai terminar. Como o Ismael de Melville, temos que sobreviver enquanto, sem descanso, combatemos contra os ventos da falácia, da ficção, da fraude e da farsa que o sistema moribundo manipula sem parar».3

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