No início dos anos 90, o sistema político italiano implodiu. A investigações dos juízes das «mãos limpas» deitaram abaixo a Democracia Cristã, de centro-direita, - dirigida por Giulio Andreotti, acusado de ligações à máfia - que tinha sido o pilar de todos os governos desde 1948, e o seu aliado Partido Socialista, igualmente corrupto, de Betinno Craxi.
Aquilo que começou como uma operação judicial acabou por mostrar uma crise muito mais profunda, tendo rompido com o modelo de governação do país que se baseava no domínio da Democracia Cristã (DC) e na expressão organizada do descontentamento feita pelo Partido Comunista Italiano (PCI).
Ao mesmo tempo, o PCI, o maior partido comunista europeu em termos de número de militantes e votos, abandonou a designação de comunista, após a queda do Muro de Berlim, em 1989.
O anticomunismo permeou toda a vida política, e o PCI só em parte beneficiou do clima de revolta. Nas eleições de 1976 para a Câmara de Deputados, o PCI obteve 12 614 650 votos, ou seja, 34,37% dos votos - o seu recorde; chegou a ter cerca de 1 850 000 militantes.
Este poder é claramente temido pelos apoiantes da ordem. Desde o início do confronto Leste-Oeste em 1947, salienta o historiador Eric Hobsbawm, «era evidente que os Estados Unidos da América não permitiriam em circunstância alguma que os comunistas chegassem ao poder em Itália. Segunda maior força eleitoral do país, a organização permaneceu às portas do governo num sistema dominado pela Democracia Cristã, que controlava todas as ramificações do Estado através da imposição de lógicas clientelistas, mesmo mafiosas.», citado num artigo de Antoine Schwartz, no Le Monde Diplomatique.
A adopção das teses do «compromisso histórico», de colaboração entre PCI e DC, e a sua manutenção, mesmo depois do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, com a justificação do combate ao terrorismo e à crise económica, arrastaram a primeira grande queda eleitoral do PCI, que levaram Enrico Berlinguer a tentar inflectir a linha política, para um partido mais movimentista e reivindicativo. Essa tentativa de mudar para uma linha mais à esquerda, teve a oposição crescente de muitos dirigentes do partido. A morte de Berlinguer durante a campanha das europeias de 1984, vai deixar esse movimento de rectificação a meio.
«O grupo de liderança, incluindo o nível local, era muito céptico. Não compreendeu esta mudança política, esta nova radicalidade, e tinha nostalgia não pela política de compromisso histórico que nunca tinha sido aplicada, mas pela política de solidariedade nacional que significava governar com a DC. Quando Berlinguer mudou, avançou muito mais para a esquerda numa abordagem movimentista (de volta às fábricas, movimento feminista, pacifista, etc.) alguns dos líderes já não compreendiam (ou eram contra). E assim, na década de 1980, a corrente reformista fez uma guerra aberta contra o Berlinguer. E Berlinguer defendeu-se nas reuniões da direcção dizendo: "Muito bem, se não concordarem comigo, demito-me e teremos um congresso com moções contraditórias". Os reformistas recusaram, porque conheciam o carisma de Berlinguer e o apoio popular que ele desfrutava no seio do partido. Mas até à sua morte, Berlinguer teve de enfrentar a oposição de uma parte da liderança. No momento da sua morte, o jornalista e líder do Manifesto, Valentino Parlato, falou da morte do "toque de corneteiro que antecipou a carga...". Este é obviamente um episódio fundamental na história do fim da esquerda italiana.», afirma o historiador Guido Liguori, autor de um dos principais livros sobre a liquidação do PCI.
No final da década de 1980, os funcionários do aparelho do partido sentiram que este estava em declínio, o colapso do bloco comunista e a desilusão que este gerou reforçaram esta situação. A queda registada nas eleições legislativas de 1987 foi um choque: o PCI obteve, no entanto, 26,5% dos votos. Um homem deveria liderar e encarnar esta vontade de renovação: Achille Occhetto, nomeado novo secretário em 1988. Homem do aparelho - anteriormente conotado com a ala esquerda do PCI, liderada por Pietro Ingrao - tornou-se o mestre de construção de uma estratégia de transformação liderada por reformadores ansiosos por parecerem modernos e chegarem às cadeiras do poder.
«As ideias de Occhetto abraçaram inegavelmente o novo zeitgeist [espírito da época] liberal. "Somos os filhos de 89", dizia o líder no bicentenário da Revolução Francesa - afastando-se da descendência feia dos revolucionários [jacobinos] de 1793. Em vez de uma visão centrada no conflito social, Occhetto favorece uma retórica que exalta o progresso democrático - aquilo que é alcançado em pequenos passos e não perturba os círculos de poder. Uma vez que é necessário abandonar os ancoradouros, aqui está ele a atirar borda fora este marxismo antigo e obsoleto. O reformismo político está em foco e Occhetto quer que a sua organização se junte à Internacional Socialista. O futuro tem o cheiro azul dos "Estados Unidos da Europa", do "caminho europeu para o socialismo" traçado pelo Jacques Delors. Ser "moderno" significa também repensar o papel do Estado: "O país precisa de um Estado que gere menos", diz o líder, "e que, por outro lado, é mais capaz de fornecer projectos e definir regras para uma pluralidade de assuntos, tanto públicos como privados"», assinala Antoine Schwartz.
O abandono dessa identidade acelerou um processo de adopção gradual da «Terceira Via», teorizada pelo sociólogo Anthony Giddens , que foi traduzida politicamente por Tony Blair, no Reino Unido, e Bill Clinton, nos Estados Unidos.
A deriva do PCI, em PDS, DS, e finalmente em Partido Democrático colocou o partido bastante mais à direita, mesmo da social-democracia, adoptando as teses sociais-liberais.
No Partido Democrata, a linha apoiante da «Terceira Via» é largamente maioritária: as reivindicações dos trabalhadores são vistas como um obstáculo no caminho para a modernização da economia. A convergência com a fracção neoliberal da direita teve lugar com a chegada ao poder de Matteio Renzi, que saiu posteriormente do PD, para fazer um partido ainda mais à direita, o Partido Itália Viva.
Pouco se sabe sobre o passado político de Matteo Renzi para além de que ele era batedor e «nunca leu Gramsci». Muito simplesmente, Renzi é o filho de elementos da elite democrata-cristã. O Partido Democrático tem antigos membros do PCI e da DC a viverem juntos no seu seio. No entanto, em termos de conteúdo, está longe do «compromisso histórico», advogado por Berlinguer, A linha política do PD, ao estilo de Renzi, consistia em copiar as suas medidas sobre as especificações definidas pelas instituições europeias.
A queda de um gigante
Na obra prima do neorrealismo, O Ladrão de Bicicletas (1948) de Vittorio de Sica, o herói do filme vai à polícia numa tentativa de recuperar a sua ferramenta de trabalho, a sua bicicleta roubada, e mandam-no embora sem piedade e sem esperança. O que faz então Allio Ricci, o desesperado proletário? Vai à sede local do Partido Comunista Italiano (PCI) no subúrbio da classe trabalhadora de Roma, Val Maleina, para tentar encontrar ajuda e conforto.
O PCI era um partido de massas, com mais de 1,85 milhões de militantes no final dos anos 70, com uma forte influência em movimentos de massas, como a principal confederação sindical do país, a CGIL, e na confederação de associações ARCI, com mais de três milhões de inscritos. Um partido com enorme presença na sociedade, na história, nos trabalhadores e intelectuais que se eclipsou em pouco tempo.
Logo depois do abandono da designação de comunista, mais de um terço dos militantes saiu quase imediatamente: paulatinamente, o partido de massas que tinha uma forte hegemonia, em grande parte da sociedade, esvai-se e é substituído pelo partido institucional e da comunicação como única forma de chegar às populações. As formações que dele derivaram, e que foram, cada vez mais, para a direita e deixaram de representar os sectores sociais populares e não têm a forte influência que este teve nos meios intelectuais.
De facto, para além de um partido ou de um símbolo, esta renúncia enfraqueceu todo um movimento político, sindical e intelectual, todo um ecossistema militante que em tempos foi capaz de desenvolver as suas próprias concepções do mundo, difundindo o seu gosto pela cultura na sociedade, e defendendo a sua aspiração a um mundo melhor.
Nas eleições que se seguiram ao abandono da identidade comunista, o PDS (Partido Democrático de Esquerda) obtém apenas 20% dos votos e a Refundação Comunista, constituída por parte daqueles que não aceitaram a dissolução, 6%. Mas rapidamente, por via administrativa, esse problema também é resolvido.
«Há outro elemento importante envolvido na crise da esquerda em Itália. Sob a predominância da hegemonia liberal-democrática, o sistema eleitoral foi alterado. Nos anos 90, o sistema proporcional foi abandonado em favor do sistema maioritário, o que forçou as coligações. Assim, a Refundação Comunista teve de fazer parte de coligações de centro-esquerda onde o centro ou a esquerda moderada era predominante. O primeiro governo Prodi morreu porque Prodi não respeitou os acordos com a Refundação que apoiavam o governo a partir do exterior. Dez anos mais tarde, houve outra tentativa com o segundo governo Prodi e esta também durou apenas dois anos, pelas mesmas razões. Não foi implementado um único ponto do programa de esquerda. Isto causou uma forte crise no eleitorado e a Refundação deixou o governo. Em 2008, o sistema eleitoral também foi decisivo. Todos os partidos da esquerda da PD tinham elaborado uma lista chamada "Arcobaleno" (Arco-íris), que supostamente iria obter muito mais votos do que o limiar eleitoral para ser eleito. Mas Veltroni e o PD jogaram a útil carta de voto. "Só o voto útil pode impedir Berlusconi de regressar ao poder". Foi assim que falhou a tentativa de construir um pólo político à esquerda da DP: por causa do espectro de Berlusconi e do voto útil. Enquanto alguns meses antes, Refundação ainda tinha um grupo parlamentar substancial e Fausto Bertinotti, o seu líder, se tinha tornado presidente da Câmara, a esquerda foi completamente destruída nestas eleições. Mas penso que na raiz de tudo está a nova hegemonia liberal, mesmo dentro da própria esquerda.», explica o historiador Guido Liguori.
Alguns dos quadros vindos do PCI, agora nessas formações que lhe renegaram o nome, chegaram a cargos como primeiro-ministro e Presidente da República, mas a política que executaram foi a dos partidos de direita que substituíram no poder.
Em vez de mudarem a vida das pessoas, mudaram de vida
Com o fim do PCI, a capacidade de resistência da esquerda italiana desmoronou-se literalmente, deixando-a desamparada face ao surgimento de uma nova direita ofensiva liderada pelo Berlusconi, que fundou a Força Italia em 1994. É notável", observou o filósofo político Ralph Miliband, «que os especialistas que procuram explicar a adesão de grandes sectores da classe trabalhadora à ideologia conservadora não tenham procurado enfatizar a contribuição dos líderes social-democratas para a desmobilização política produzida tanto pelas suas palavras como pelos seus acto.».
A «terceira via» dá prioridade à igualdade de oportunidades sobre a igualdade de condições de vida e baseia-se numa crença cega nos benefícios do mercado livre; o desejo de renovar a esquerda nesta linha tem o principal efeito de afastar o bloco das classes trabalhadoras.
Este processo de abandono do terreno popular por parte da esquerda não se dá só em Itália, mas dado a força que chegou a ter o PCI, torna-se bastante mais notória aí.
No seu livro A Tirania do Mérito, o filósofo estado-unidense Michael Sandel, fala desse fenómeno, a tomada da representação por parte de elites económicas e com formação superior. «No Reino Unido, em 1979, 37% dos parlamentares trabalhistas eram originários da classe operária; em 2015, já só sete por cento tinham essas raízes», actualmente são menos de 4%. «Em França, mais de 70% da população não tem diploma universitário, mas muitos poucos desses cidadãos conseguem aceder a um lugar parlamentar», nota o filósofo.
«Converter o Congresso e os parlamentos num quase exclusivo das classes «credenciadas» não serviu para que os governos desses países fossem mais eficazes, só tornou os parlamentos menos representativos. Também afastou a população trabalhadora dos partidos tradicionais de esquerda», observa Sandel.
Para o filósofo, o acesso à educação não é independente da classe social, e mesmo se fosse, ela por si não resolveria o problema da desigualdade, mais do que a educação, o que está em causa é o acesso ao poder.
Nesse sentido, o historiador norte-americano Thomas Frank defendeu que os democratas ficaram distraídos de tanto falar em educação e mérito, que renunciaram a fazer uma reflexão clara sobre as políticas que agravaram as desigualdades. Como o facto de a produtividade dos trabalho ter crescido a partir dos anos 80 e os salários terem ficado estagnados. Para o historiador, a desigualdade não se explicava sobretudo pela falta de educação, mas pela perda de poder negocial na sociedade: «O verdadeiro problema não está na inadequada inteligência dos trabalhadores, mas na inadequação do seu poder.», conclui.
Para o economista Thomas PPiketty, em artigo publicado no Le Monde, a grande novidade no presente é que a visibilidade da questão social «perdeu intensidade, em parte, porque quando a esquerda esteve no poder perdeu a sua ambição transformadora e aliou-se muitas vezes ao liberalismo triunfante depois da queda do comunismo.»
A perda de estruturas políticas com ambição e que organizem os sectores sociais da classe operária e populares somam-se as profundas alterações sociais que resultam dos processos de globalização conjugados com a integração europeia.
«A Classe operária italiana beneficiou da fraqueza da burguesia. Depois, com a globalização, foi dissolvida. O crescimento parou definitivamente em 1992. E desde então, as gerações perdidas têm sido condenadas, inclusive na universidade, a lutar por empregos precários a 1.200 euros por mês. Isto provoca atitudes puramente defensivas que nada têm a ver com os “amanhãs que cantam”. Estamos a experimentar um declínio real. 40% dos jovens estão desempregados; no ano de 2018 , pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, a esperança de vida caiu no nosso país.», faz notar o sociólogo Marco D'Eramo.
Uma maioria social heterogénea
A desaparição da esquerda, desmobilizou as classes populares e abriu portas para o crescimento do populismo em sectores das pequena e média burguesia e até do operariado em crise que tinham votado comunista.
A política tem o horror ao vazio, e o conflito social reconfigurou-se com aparências enganadoras. Onde havia luta de classes e esquerda e direita, passou a haver outro tipo de conflitos. A consciência de classe foi substituída pela raiva individual e a luta contra o poder dos mais ricos foi transformada em medo do outro e em xenofobia.
«As eleições legislativas italianas de Marços de 2018 - foram vencidas pelo Movimento Cinco Estrelas e pela Liga - marcaram tanto o fracasso eleitoral do bloco burguês como a consolidação da sua hegemonia, que se reflecte na capacidade de dirigir a estratégia dos seus opositores. Tendo em conta o prazo eleitoral, a Liga tinha dado a si própria a imagem (falsa) de um partido anti-euro e nacionalista, enquanto o Movimento Cinco Estrelas dizia opor-se à "casta" de eleitos e "elites" privilegiadas: ambos os movimentos afirmavam estar situados no espaço político para além da direita e da esquerda, tal como definido pelo bloco burguês.», explica Stefano Palombarini no Le Monde Diplomatique.
«Num dos pólos que estruturam este espaço é uma aliança relativamente homogénea que se considera aberta, europeísta, progressista, e que tende a ocultar o papel central da reforma neoliberal no projecto que carrega. Mas esta aliança, o bloco burguês, é uma minoria social.
O bloco burguês não é apenas uma estratégia para a formação de uma aliança social específica, na qual as classes média e alta, anteriormente divididas pela divisão direita-esquerda, se unem para apoiar as reformas neoliberais: é também um projecto cultural e ideológico que visa a completa reestruturação do espaço político. Um projecto que pode ser visto em acção em muitos estados, e que tem sido completamente bem sucedido em Itália.
Neste país, o posicionamento dos actores políticos e as expectativas do eleitorado já não estão organizados em torno da polarização esquerda-direita, mas num espaço definido pelas oposições entre europeístas e nacionalistas, cosmopolitas e identitários, federalistas e soberanistas.
Uma campanha mediática tem assumido constantemente a tarefa de separar os programas políticos "responsáveis" (isto é, de acordo com a transição neoliberal) das posições "populistas" (um rótulo reservado a todos aqueles que se lhes opõem).
No pólo oposto, existe uma maioria social heterogénea que se agrega de forma variável em torno da rejeição da casta, da hostilidade ao euro ou de um impulso nacionalista tingido de xenofobia. O primeiro governo de Giuseppe Conte, baseado na aliança entre os dois vencedores de 2018, mostrou a dificuldade de identificar uma estratégia de mediação capaz de transformar esta maioria social num bloco compacto.
Mas o destino pouco mais glorioso do segundo governo Conte (Movimento Cinco Estrelas - Partido Democrático) mostra que, na presença de relações de poder hegemónicas que levam à negação da relevância da divisão direita-esquerda, as hipóteses de reconstruir a esquerda, mesmo numa versão rosa muito pálida, são próximas de zero.
No espaço estruturado pela ideologia do bloco burguês, a única estratégia política coerente é, portanto, a do bloco burguês. Isto explica a surpreendente conclusão do drama italiano com a unidade nacional em torno de um projecto liberal e europeísta que é socialmente minoritário. Esta conclusão é, no entanto, provisória. Outros actos se seguirão, e as classes sacrificadas por reformas estruturais passadas e futuras serão os protagonistas. Em que papel e de que forma? É demasiado cedo para dizer, tal como é demasiado cedo para saber se estas classes irão procurar um novo caminho democrático após a desilusão gerada por um resultado eleitoral que experimentaram, em 2018, como uma grande vitória, e que acabou por produzir o Draghi.
O que vai acontecer a seguir dependerá em grande parte da capacidade dos actores que se opõem às reformas neoliberais para trazer de volta ao cerne do conflito político as suas consequências concretas em termos das lutas sociais contra a diminuição dos salários, da explosão das desigualdades, da redução da protecção social e da degradação dos serviços públicos. Esta é a forma de desafiar a hegemonia do bloco burguês, e de o derrotar».
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