|Um outro Mundial

Identidade, cultura e o jogo de Portugal

Se a falta de tempo para treinar leva a identidades menos definidas, os jogos de seleções são um campo perfeito para entender como se afirma a cultura de uma equipa em campo. Campo onde a história nunca acaba, mesmo quando se convive com o legado de um dos melhores do mundo.

CréditosAli Haider / EPA

No futebol, ter uma identidade é ser-se quem se é. Normalmente, essa identidade é construída. Através do planeamento do treinador e dos processos de treino, constrói-se uma ideia de um jogar que se procura replicar em campo. O exercício de transformar ideias em concretizações, no futebol e na vida, choca sempre com os obstáculos que se encontram. Dentro do campo, uma outra equipa nas exatas condições que transportamos, luta por um objetivo semelhante. Daí que, tantas vezes, aquilo que projetamos acabe por não acontecer. Pelo menos na exata medida das nossas ambições. O que o jogo nos ensina é que os caminhos se fazem nos terrenos que se encontram. A nossa capacidade de entender a melhor forma para chegar ao golo é aquilo que é realmente testado.

Fernando Santos sempre se queixou de, numa seleção, não ter tempo para treinar. Provavelmente uma ideia que já terá passado pela cabeça de Didier Deschamps ou Gareth Southgate. Daí que, ao contrário dos clubes, seja bastante mais difícil de encontrar essa identidade singular nos jogos de seleções. O que muitas vezes nos salta à vista é a cultura de jogo de um país, de um conjunto de jogadores, mais do que o génio de um treinador. Para melhor expressar uma cultura, no entanto, é necessário que ninguém se meta no caminho a limitar essa demonstração. É disso que os selecionadores acabam por ser acusados. De inverter, pelas suas escolhas, um caminho natural que aparece aos olhos dos adeptos na conjugação do melhor onze, daquele que reúne os melhores jogadores.

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O Portugal sem medo de existir

As seleções são espaços de identidade nacional que se constroem, perante o nosso olhar, numa imensa diversidade. Espaços onde a liberdade acaba por se recriar perante as amarras da história. Uma viagem às mudanças que cem anos provocaram no nosso país, no mesmo dia em que a seleção de Marrocos se confronta com Espanha num campo de futebol. 

CréditosJosé Sena Goulão / Lusa

Há cem anos, do Casal da Parafuja onde nasceu o meu avô paterno, Portugal era algo que não se conseguia distinguir no seu todo. Uma realidade que se mimetizava um pouco por quase todo o território continental. Ser português era uma coisa que se apalpava às escuras, por entre umas curtas visitas à escola primária e uma realidade de trabalho e alguma miséria que não largava o corpo de todos e todas as que aqui nasciam. Durante a juventude dos meus antepassados, Portugal era uma realidade que se escrevia como um feito mítico, transtornado de histórias impossíveis de viagens que iam muito mais longe do que os olhos podiam ver, vergado ao peso de heróis que dificilmente se cruzavam com os suaves portugueses pela rua. 

Foi também neste espaço de cem anos que muitos portugueses foram para lá dessa realidade de vistas curtas. O meu avô materno cresceu aventureiro e fez-se à vida, pela Alemanha, França e Canadá, seguramente à procura de um ser-se português que por cá não lhe chegava. Mas ao Portugal que se abria aos poucos acabou por regressar, para tentar entender aquilo que à sua frente se criava. Era um Portugal aberto a possibilidades, mas também sujeito a novas desilusões, na maneira como tudo se transformava para, de uma ou outra maneira, tudo ficar na mesma. O Portugal que os meus avôs e avós deixaram, era bem melhor do que aquele em que tinham nascido, mas talvez aquém daquele que haviam sonhado. 

Mas Portugal não é apenas aquilo que se vive quando se é português. Portugal é, sobretudo, aquilo que todos vamos aprendendo como possibilidade de se construir. Daí que apesar de ainda nos revermos nas descrições sociais de Eça de Queirós, na tristeza de Ruy Belo ou no atrevimento de Alexandre O’Neill, Portugal alargou-se para ser muito mais do que o peso da sua história. Tantos e tantas nos ajudaram, exatamente, a quebrar essas amarras. Se no passado se prenderam e tentaram limitar as novas expressões que os portugais do mundo nos sugeriam, hoje ser-se português não é uma questão de cores, de falar criolo ou com sotaque brasileiro, ser-se português é ter a liberdade para sermos as pessoas que quisermos ser.

Portugal deixou de ser cinzento, mas não virou cara à luta. Uma equipa de futebol a disputar um Campeonato do Mundo é uma representação disso mesmo. Na maneira como apesar reconhecermos limitações ao desenvolvimento de um coletivo por parte de um treinador que já nos deu quase tudo a ganhar, encontrarmos na liberdade que este oferece aos seus jogadores um palco para transformarmos o nosso jogar. Na esperança que a maioria ainda continua a colocar nos jogadores que nos levaram aos mais épicos momentos da nossa história futebolística, ombro a ombro com a capacidade de entendermos como novas figuras se elevam como referências desta equipa. Na sempre e inquestionável de querermos melhor para todos aqueles que se envolvem na perseguição de um objetivo comum. 


E, no final de tudo, futebol

A história das relações entre Espanha e Marrocos é feita de conflito. Um conflito que se mantém quase diário, nas fronteiras que as cidades autónomas espanholas em território marroquino oferecem como proximidade, num mar navegável a unir as costas dos dois países. Um conflito que se alarga na enorme comunidade de migrantes marroquinos que encontraram em Espanha uma esperança de uma vida melhor, condicionada pelas condições em que muitos deles acabam por viver. E, como em todos os grandes conflitos, no final de tudo, haverá a possibilidade de o dirimir num campo de futebol. A seleção de Marrocos é um fruto da sua diáspora. Catorze dos vinte e seis jogadores nasceram na Europa, mas encontraram no país dos seus ascendentes o conforto para voltar a casa. Defrontar a Espanha é, de certa maneira, quase um estado de espírito. Muito mais do que um jogo.  

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Mas dentro de um grupo de atletas, os melhores juízos são sempre aqueles que são feitos com os dados de quem nele vive. Longa e dolorosa injustiça para quem tem de falar ou escrever sobre isso (mea culpa, mea culpa!). Até porque aquilo que uma cultura desvenda nunca é uma ligação direta entre os elementos. Bem pelo contrário. O mundo em que hoje vivemos mescla tradições e origens, conjuga conhecimentos e informações, reparte por diferentes caixas a maneira como crescemos e nos entendemos uns aos outros. Essa diversidade é um desafio para quem está na linha da frente para organizar uma equipa que representa um país. Mas é também por aí que os selecionadores percebem como podem passar, de um dia para o outro, de culpados a salvadores. Não é tanto uma questão de sorte ou azar. É só mesmo preciso que, no momento certo, tudo esteja alinhado para que a bola entre.

O campo é uma história sem fim

Não foi no Catar que Portugal deixou de ser a equipa do melhor do mundo. Esse período de transição iniciou-se no outono de 2018, quando, depois da desilusão do Mundial da Rússia, Cristiano Ronaldo se focou na sua integração na Juventus e deixou a equipa entregue a uma nova geração para a fase de grupos da Liga das Nações. Nesse momento, Portugal mostrou que poderia bem ser a equipa de Bernardo Silva, fortalecida num conjunto de jogadores que ofereciam uma capacidade competitiva que permitia que a Seleção se mantivesse entre as melhores. Os últimos quatro anos viveram-se com duas realidades paralelas. O Portugal de uma dinâmica de jogo nova conjugado com um ponta-de-lança que continuava a transformar em golo cada bola que tocava.

Aquilo que acabou por se confirmar no Catar foi um processo histórico de transformação de uma equipa. Se todas as polémicas que rodeiam Cristiano Ronaldo nestes últimos meses parecem transformar o acontecimento numa telenovela, a verdade é que é o rendimento desportivo a ditar as transformações. Da tal identidade não trabalhada, emerge uma cultura que tem tudo que ver com a maioria dos jogadores da Seleção.

«Aquilo que acabou por se confirmar no Catar foi um processo histórico de transformação de uma equipa.»

Dinâmicas de liberdade e de criação de espaço, enorme solidariedade na maneira como se rodam posições, talento e criatividade para engendrar respostas aos esquemas defensivos rivais. O enorme legado de Cristiano Ronaldo encontra-se, aqui, com o enorme potencial de uma equipa que tem outros horizontes para alcançar o mesmo objetivo. Porque no campo a história nunca acaba.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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