|Um outro Mundial

Um Mundial como ele deve ser vivido

A Argentina de Messi é campeã do Mundo, cumprindo com o seu destino, num jogo onde voltámos a ter um vislumbre do futuro. O momento para fazer o balanço daquilo que vivemos neste mês de futebol, de todos os prismas que ele deve ser visto.

CréditosTolga Bozoglu / EPA

Messi cumpriu o seu destino. Filho predileto de uma nação que tem Maradona como um deus e o futebol como o território onde se desenvolve cultural e sociologicamente, Messi liderou um conjunto de guerreiros rumo ao título. Um título que, pelo que se viu nas bancadas e nas ruas da Argentina, pertence ao povo de um país marcado pela crise e incerteza quanto ao futuro. Uma conquista emocional num jogo que superou todas as expetativas. A melhor final de sempre.

|

Messi ou a vã glória de mandar (dar uma volta)

Enquanto imitação da vida, o futebol é um constante campo de observação de tensões. A exigência de perfeição a que o jogo nos leva não deve, no entanto, incapacitar-nos para perceber o alcance dos acontecimentos. E não haverá argentino para quem seja fácil comparar-se com Maradona.

CréditosAbir Sultan / EPA

O jogo de futebol é uma imitação da vida, na medida em que se concentram num curto espaço de tempo todas as tensões que o trabalho, as relações sociais, as paixões, a cultura e a tradição nos impõem, para além da questão competitiva que acaba por dar um resultado à exposição e choque de intenções que o jogo nos provoca. Dessa imitação da vida procura-se, no entanto, uma perfeição que nos é, no quotidiano, inalcançável. Uma perfeição que é exigida ao coletivo, que não pode ter qualquer tipo de falha. Ao jogador, que mistura numa mesma dimensão aquilo que é enquanto trabalhador, no exercício da sua profissão, com aquilo que é enquanto representação da heroicidade admirada por milhões de adeptos. Ao próprio jogo, ao qual se pede espetáculo e resultado encapsulados numa só medida. 

Essa perfeição é depois transformada nas exigências que são colocadas aos atores do jogo, desprendendo-se de entendimentos emocionais que a própria disputa origina. Como se quase nunca se percebesse que aquilo que está em choque são duas equipas, com diferentes jogadores, mas com os mesmos objetivos. Ora, dessa incompreensão que é gerada num misto de ambição desmedida e incapacidade para ler a realidade que se observa, cresce uma falha que separa cada vez mais os intervenientes daqueles que assistem aos seus feitos. Acabamos, no final de contas, a afastarmo-nos cada vez mais daquilo que os jogadores e as equipas realmente fazem, das dinâmicas que o jogo nos oferece, mas nos concentrarmos em imagens recortadas que implicam, quase sempre, o entendimento de uma outra realidade. 

A Argentina não chorará por mim

A Argentina entrou neste Mundial com o peso de transportar o seu mais genial jogador do século XX num deus. Para se ser maior que Maradona é preciso ser-se maior do que o mundo. Messi veio para a Europa ainda uma criança, desenvolveu-se numa academia das melhores do mundo em Barcelona, num clube que se redesenhou à imagem do talento deste jogador. Maradona cresceu nas ruas, enfrentou o profissionalismo como um caminho para a sustentação da sua família, lutou contra um futebol que era cruel e agressivo como uma guerra sem regras, representou o seu país em pleno conflito militar com uma potência europeia. Não se deseja ser Maradona impunemente e o peso do último Mundial de Messi fez com a equipa argentina tremesse. Um tremer que se sentiu frente à Arábia Saudita, à Austrália e, uma vez mais, frente aos Países Baixos. 

Os encontros entre albicelestes e laranjas são um clássico dos Mundiais. E o que pudemos assistir na passada sexta-feira entre para a galeria de épicos. Com os neerlandeses a aproveitarem os dez minutos finais para restituir vida à contenda, o prolongamento e os penáltis permitiram um quadro de enorme tensão que tocou todos os intervenientes. As imagens de provocações entre as duas partes confirmam o ambiente que se sentia no jogo. Quando a derrota parece mais inevitável, todos os sentidos são acionados de forma a salvar a pele e o resultado. Quando os argentinos festejam na cara dos neerlandeses, quando Messi manda Weghorst ir à sua vida, aquilo que um europeu sentado no seu sofá de privilégio vê é a sempre eterna maleducação dos latinos. Neymar e Cristiano Ronaldo já foram vítimas dessas mesmas leituras. Mas do lado do sul-americano aquilo que se regista é essa capacidade de não se vergar perante uma autoridade que insiste em colocar as regras acima dos acontecimentos. E o que aconteceu é a possibilidade de se poder continuar a acreditar no alcance da divindade. O que não é coisa pouca para qualquer jogador. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Tipo de Artigo: 
Crónica
Imagem Principal: 
Mostrar / Esconder Lead: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Imagem: 
Mostrar
Mostrar / Esconder Vídeo: 
Esconder
Mostrar / Esconder Estado do Artigo: 
Mostrar
Mostrar/ Esconder Autor: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Publicação: 
Esconder
Mostrar / Esconder Data de Actualização: 
Esconder
Estilo de Artigo: 
Normal

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui

O jogo pertenceu à Argentina durante 75 minutos. Mas que não foi entregue sem que Kylian Mbappé desse mostras da sua capacidade para liderar uma revolução. A França só nesses minutos finais mostrou a sua melhor face. O prolongamento demonstrou que as duas equipas queriam ganhar. Aí ofereceram os momentos mais loucos que poderíamos viver. A incerteza até ao último lance, com os golos, as oportunidades e as grandes defesas a acontecerem dos dois lados do campo. A França não reconquistou o título. Mas mostrou que o futuro continuará a ser dos génios.

É também por isso que o futebol venceu neste ano de 2022. Num Mundial cheio de razões para ser uma marca negativa na história do jogo e daquilo que o rodeia, a competitividade dos jogos, o equilíbrio entre os concorrentes, os jogadores e os seus feitos ofereceram-nos um Mundial que nos faz acreditar na força deste desporto e na sua capacidade para nos inspirar. A força desta modalidade volta a ficar bem patente no jogo da despedida. O poder de construir memórias, servindo de exemplo para o presente, uma força da qual não se pode desistir. 

Ao mesmo tempo, a FIFA deu neste Mundial mais uma prova da sua falência. Na incapacidade de ver para lá do interesse financeiro na escolha do país organizador. Falhando totalmente no acompanhamento da construção das estruturas para o Mundial, nos direitos das pessoas envolvidas e de quem desejou acompanhar a prova. O Catar falhou no cumprimento de um caderno de encargos que vai bem para lá do bem parecer. As ditaduras, é certo, alcançam feitos que a razão não pode ignorar. E depois de em 2018 a história destes falhanços ter ficado por contar, 2022 foi o momento de ficarmos a saber do lado mais triste da história do Mundial.

Não me vou esquecer de Messi, de Mbappé, dos grandes jogos que este Mundial nos ofereceu. Não me vou esquecer do custos, em vidas humanas, em condições de abuso climático, em situações de direitos humanos, deste Mundial. Não me vou esquecer do esforço que fomos obrigados a fazer para perceber que o mundo vai bem para lá do nosso ponto de observação. E não me vou esquecer de voltar várias vezes a estes assuntos. Porque a FIFA tem que ser observada de perto. Porque o Catar e os seus interesses têm que ser investigados. Porque o legado deste Mundial também é aquilo que não devemos deixar de fazer.

Neste outro Mundial que fomos vivendo, diariamente, no AbrilAbril, estão muitas das coisas que senti e sinto importantes, essenciais, para cumprir com a minha função profissional, para me enquadrar naquilo que sou e quero ser como pessoa. O entender o fenómeno que me apaixona a partir das muitas linhas de pensamento que ele gera. O questionar-me, sempre, perante as coisas que surgem aos meus olhos. O aprofundar, a par e passo, dos temas que se fazem presente. Para todos os que viveram estes dias comigo o meu obrigado. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui