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TAP: a história do saque que a Comissão de Inquérito não irá apurar - parte II

Nesta segunda parte do dossier sobre a TAP procura-se, mais uma vez, dar contexto à actualidade. A TAP como a conhecemos não é uma mera consequência de má gestão. É sim o resultado de uma opção política de delapidação que muitos não querem abordar.

O negócio com a Swissair falhou, falhou a entrega de um sector estratégico, mas a TAP, apesar de resistir na esfera pública, ganhou uma estrutura que a fragilizou e passou a ser alvo da mais profunda instrumentalização. Desde o modelo de negócio aplicado até à compartimentação de sectores da empresa, a companhia aérea reunia todas as condições para salvaguardar os interesses dos grandes grupos económicos em detrimento dos interesses do Estado.

Prova que, apesar de durante algum tempo desaparecer do radar a privatização imediata da TAP, os objetivos centrais não desapareceram, e a privatização da TAP - Serviços Portugueses de Handling (SPdH) dá-se em 2003, tendo como tiro de partida o Decreto-Lei n.º 57/2003, de 28 de Março que alterava, pela segunda vez, o Decreto-Lei que aprovava as fases de reprivatização. 

Esse documento afirmava serem «conhecidas as vicissitudes que impediram que chegassem a bom termo as negociações havidas entre o Governo e o SairGroup» e que «tais motivos explicam que o processo de reprivatização da TAP, tal como se encontra delineado, tenha de ser sujeito a alguns ajustamentos». Como tal, havendo que «aproveitar a capacidade da TAP na área de negócio da assistência em escala», recomendava «que comece por esta a abertura do capital da empresa ao sector privado». O governo considerava que se tratava de uma «actividade crítica para o negócio do transporte aéreo, a alienação de uma participação dominante no capital da sociedade» e que o «encaixe financeiro» dessa alienação do capital social contribuiria para «o saneamento económico da TAP, criando condições para que a reprivatização do seu capital possa prosseguir em termos mais favoráveis». Ou seja, privatizando a TAP SPdH, ganhava-se uma almofada financeira para conter os prejuízos do falhanço da privatização à SairGroup (Swissair) e preparava-se a empresa para ficar outra vez atrativa para nova tentativa de reprivatização. 

Esta privatização da TAP SPdH ganha forma com o Decreto-Lei Nº 87/2003 de 26 de Abril que «constitui a sociedade gestora de participações sociais TAP», definindo o valor das acções representativas da totalidade do capital social e transformando a TAP numa Holding com administração comum às 3 empresas. Considerava que «a sociedade tem por objecto a gestão de participações sociais em outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas» e que «pode prestar serviços de administração e gestão a sociedades em que detenha participações, nos termos legalmente admitidos». 

Na senda dos estranhos negócios

Neste seguimento, surge então em 2003 a Resolução do Conselho de Ministros 166/2003, de 3 de Novembro que aprovava a privatização da TAP SPdH, mediante concurso público internacional. A venda seria de 50,1% do capital social e os interessados teriam de apresentar um caderno de encargos e o seu modelo de negócio. O comprador acabou por ser a Globalia, uma Holding espanhola que detinha a Air Europa e ofereceu 80 milhões de euros pela parte que estava a ser vendida. A Portugália Airlines passou também a controlar 6% das acções. Em 2005 TAP SPdH passa a denominar-se Groundforce.

Importa recordar que este processo de privatização da TAP SPdH começou com a desculpa de que o negócio com a Swissair tinha falhado. Uma desculpa até porque as normas comunitárias não permitiam duas operadores de handling, uma da gestora aeroportuária e outra da maior companhia aérea. Serviria alegadamente para conter os prejuízos causados pela preparação da privatização. A questão é que, passados três anos, já com o governo de José Sócrates, a TAP, a tal companhia aérea que estava a lutar pela sobrevivência e cuja privatização seria crucial para a manutenção da sua existência, comprou 99,81% da Portugália Airlines, a companhia aérea do Grupo BES, por 140 milhões de euros, e também os 6% das acções desta na Groundforce, por 4 milhões de euros. No fundo, o governo PS fez o favor ao Grupo BES (GES), cujo presidente, António Luís Roquette Ricciardi, dizia que o processo «vinha ao encontro do processo de reestruturação da área não financeira» do grupo. 

Esta foi uma decisão estranha à luz de uma suposta boa gestão que se queria vender e as seguintes não lhe ficaram atrás. Em 2007, a TAP compra duas empresas brasileiras: VEM (Varig Engenharia e Manutenção) e a Varig Log (Varig Logística), por 62 milhões de dólares. Aparentemente, as compras destas duas empresas entravam numa suposta estratégia, segundo Fernando Pinto, empresário-luso brasileiro que à data era director-executivo da TAP, mas o enquadramento dessa estratégia era difícil de entender, ainda para mais num processo que durou dois anos (entre 2005 e 2007). À data, Fernando Pinto dizia ser «uma oportunidade única» e que seria «um dos investimentos de que o grupo TAP se irá orgulhar no futuro». No entanto, em 2018, acabou por considerar que «não foi um bom negócio» e foi constituído arguido por gestão danosa. Em 2021, o prejuízo da TAP desse ano é imputado em quase mil milhões a limpar a negociata com a ex-VEM, isto depois de quase 500 milhões de euros de prejuízos imputados às contas da TAP ao longo dos anos.

A compra da VEM-Varig Log foi feita através da criação de uma nova empresa, a Aero-LB Investimentos, cuja participação passaria a ser integrada no grupo TAP. De forma a ter a liquidez necessária para avançar com o negócio, entra em cena Stanley Ho, empresário macaense ligado ao jogo, e através do fundo de investimento Geocapital, também de Macau, ficaria com uma parte da Aero-LB, juntamente com um empresário brasileiro. Este esquema serviria para contornar a legislação brasileira que determinava que o capital estrangeiro apenas podia deter 20% das empresas de aviação brasileiras. Eram assim compradas 95% das acções ordinárias da Varig Log e 90% das acções ordinárias da VEM. 

A VEM passa então a chamar-se TAP – Manutenção e Engenharia Brasil, SA e, como não podia deixar de ser, a suposta causa para o negócio tinha sido o facto da Viação Aérea Rio-Grandense (Varig), a quem pertenciam a VEM e a Varig Log, estar em falência com dívidas que chegavam aos 5,7 mil milhões de reais. Isto levou a que a compra das empresas se tornasse tóxica e a TAP, que poderia ter dado lucro, apresentou mais uma vez prejuízos pelo dinheiro que teve que injectar. 

Como se tal não fosse suficiente, em 2008, a TAP teve de recomprar as acções da SPdH à Globalia, que era o accionista maioritário, por 31,6 milhões de euros. A recompra foi inicialmente relatada como uma novela porque supostamente a TAP (que detinha 49,9% da empresa) e a Globalia (que detinha 50,1%) não chegavam a entendimentos na nomeação de administradores. Toda essa novela foi a desculpa perfeita para Globalia admitir que queria vender a sua participação da SPdH/Groundforce, mas num primeiro momento recusou vender à TAP. Foi necessário que tanto o governo português como o governo espanhol se chegassem à frente para mediar o conflito entre as duas partes. As justificações da Globalia até poderiam parecer válidas para a guerra entre accionistas, mas em 2007 a Groundforce anunciou aos trabalhadores perdas de 15 milhões de euros, contra lucros de 7,4 milhões em 2006. Neste sentido, e agarrada a uma empresa que dava prejuízos, a Globalia via-se obrigada a vender a sua participação num negócio que custou à TAP 31,6 milhões de euros. A gestão revelou-se desastrosa, criou um caos na operação que teve custos para a TAP e retirou rentabilidade à SPDH. A TAP comprou a empresa para a sanear das consequências da privatização.

Os negócios iam sendo cada vez mais ruinosos e se tais acções correspondiam a uma alegada estratégia empresarial, essa estratégia não estava desligada (nem podia estar) das opções políticas que eram feitas e alheias ao interesse nacional. A verdade é que foi cada alteração legislativa que deu azo a cada processo. A TAP constituía uma empresa que era moldável aos grandes interesses económicos. Basta ver que, mais uma vez, com o negócio ruinoso da Gourdforce, a TAP acabava o ano de 2008 com perdas, na ordem dos 285 milhões de euros, a que acrescia um prejuízo de perto de 27 milhões de euros da Groundforce. A solução para todo esse prejuízo voltava a ser a redução de custos, sempre com os trabalhadores na mira e com o definhamento operacional da empresa. Os prejuízos de 2088 são devidos a dois factores: a factura dos combustíveis da TAP aumentou 67 por cento, passando de 421 para 703 milhões de euros; os prejuízos trazidos para a TAP pela SPDH, a Portugália e a Manutenção Brasil.

O Pacto de agressão que agredia a TAP

Em 2009 dá-se então uma das maiores crises económicas que há memória, a crise da dívida pública da Zona Euro, e Portugal, um país claramente enfraquecido pela integração europeia, pelo enfraquecimento do seu aparelho produtivo e pela adopção da moeda única, não lhe escapou. O Governo de José Sócrates toma a opção política de chamar a Troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), e o resultado foi a imposição do dogma neoliberal que tinha como mote o empobrecimento geral dos trabalhadores e a redução do peso do Estado. 

A 17 de Maio de 2011 foi assinado o Memorando de Entendimento Sobre as Condicionalidades de Política Económica, também conhecido como Pacto de Agressão, considerando que o seu conteúdo não era revitalizar o país, mas sim subjugá-lo ainda mais aos grandes grupos económicos e tornar Portugal um país ainda mais dependente e sem instrumentos de soberania. Esse documento, elaborado ao abrigo do Regulamento do Conselho (UE) n. ° 407/2010 de 11 de Maio de 2010, que estabelece o Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, era um autêntico tratado de ataque e o ponto relativo às privatizações demonstrava isso mesmo: «O Governo acelerará o programa de privatizações. O plano existente para o período que decorre até 2013 abrange transportes (Aeroportos de Portugal, TAP, e a CP Carga), energia (GALP, EDP e REN), comunicações (Correios de Portugal), e seguros (Caixa Seguros), bem como uma série de empresas de menor dimensão. O plano tem como objectivo uma antecipação de receitas de cerca de 5,5 mil milhões de euros até ao final do programa, apenas com alienação parcial prevista para todas as empresas de maior dimensão. O Governo compromete‐se a ir ainda mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da totalidade das acções na EDP e na REN, e tem a expectativa que as condições do mercado venham a permitir a venda destas duas empresas, bem como da TAP, até ao final de 2011». Era muito claro e relativamente à TAP ficava explícita a pressão feita e se PS não se fez rogado, PSD e CDS muito menos. 

O ano de 2011 marca o início do Governo PSD/CDS que tinha o objectivo dar a machadada final no processo de contra-revolução e a intensificação da política de terra queimada. A TAP entrava naturalmente nesse plano, algo que já estava identificado anteriormente. Para a Troika, alegadamente, o problema era a existência de uma empresa pública que absorvia milhões de euros aos contribuintes e não a acção política que provocava todo essa absorção.

Se a Troika dava uma indicação, então PSD e CDS cumpriam como bons alunos que eram e com base no Memorando de Entendimento chegou a hora de vender a TAP, iniciando-se em 2012 um novo processo de privatização. Importa dizer que o Programa do XIX Governo Constitucional, no capítulo de Tesouro e Finanças, apontava como objectivo «Alienar também a totalidade das participações na TAP» e no ponto sobre Transportes, Infra-estruturas e Comunicações, definia o modelo de privatização da TAP dentro dos parâmetros da «manutenção da imagem de “companhia-bandeira”», mantendo as «suas principais operações baseadas no aeroporto de Lisboa» e assegurando o «serviço de transporte aéreo para as ilhas». A par disto definia-se que o processo de privatização da TAP teria de ser articulado com a privatização da ANA - Aeroportos de Portugal.

O ano de 2012 passava assim a ser um ano bastante perigoso para a aviação civil e danoso para o interesse nacional. É nesse ano que se volta a privatizar a Groundforce a Alfredo Casemiro, dono do Grupo Urbanos e que, com a PASOGAL, adquire 50,1% da empresa. Sabe-se hoje que o dinheiro usado por Alfredo Casemiro para realizar a operação na realidade não foi logo para os cofres do Estado. Ou seja, Alfredo Casemiro só pagou 3,7 milhões de euros pela empresa em 2018, seis anos depois da entrada no capital, decidida no governo de Passos Coelho. Até completar o pagamento recebeu 7,6 milhões de euros em comissões de gestão, o que significa que a Groundforce foi oferecida.

Foi também em 2012 que o governo PSD/CDS avançou para a privatização ANA - Aeroportos de Portugal. Com o Decreto-lei 232/2012, de 29 de Outubro foi aprovado o processo de privatização da empresa responsável pela gestão de aeroportos em Portugal. Nesse decreto constava que os objectivos do governo eram «a maximização do encaixe financeiro», o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, S. A., em benefício do sector da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias» e «a minimização da exposição do Estado Português aos riscos de execução relacionados com o processo de privatização». Um bolo que definia uma suposta alienação de 100% da empresa. Já a Resolução do Conselho de Ministros 94-A/2012, de 14 de Novembro definiu os moldes, mas em jeito de curiosidade, sendo o governo um fiel seguidor do dogma neoliberal, e fervoroso adepto da competição no mercado, só venderia a ANA a alguém que fosse «operador ou o maior acionista e controlador de operador de um aeroporto com tráfego superior a 10 milhões de passageiros por ano», ou seja, a um grande grupo económico.

O governo, como estava escrito na Resolução do Conselho de Ministros, procedeu a um levantamento de empresas na área da aviação civil e aeroportos e acabou por ser a Vinci a ganhar a corrida. Em 2013 a Comissão Europeia aprovou o negócio e como consta no comunicado da ANA, a Vinci conseguia assim a «aquisição de títulos da ANA, a empresa concessionária, pelo prazo de 50 anos, dos dez aeroportos de Portugal». Segundo Maria Luís Albuquerque, a então Ministra das Finanças, 1.200 milhões de euros serviriam para «cobrir o 'fee' de concessão», 700 milhões de euros era «o valor da dívida da ANA» e 1.200 milhões correspondia «ao 'equity value' da ANA», sendo que esse valor seria imputado à amortização de dívida pública. Ou seja, o que poderia ser um activo rentável ao Estado durante 50 anos, passou a ser rentável para um privado e o Estado apenas garantia o pagamento de juros da dívida. Veja-se que PSD/CDS venderam a ANA por 3,08 mil milhões e em 2022 a Vinci registou um aumento de 64% dos lucros para os 4,26 mil milhões de euros. Hoje a Vinci (que teria que cumprir os interesses nacionais) recusa as opções mais viáveis para um novo aeroporto e essa operação.

Voltando à TAP, também em 2012 é aprovado o Decreto-lei 210/2012, de 21 de Setembro que aprovava a 3.ª e a 4.ª fases do processo de reprivatização indireta do capital social da TAP. Este decreto ia ao encontro do exposto no Programa do Governo e, de uma forma algo estranha, dava a 1º e 2ª fase da reprivatização da altura do governo Guterres como concluída. Tal processo avançou com alguma rapidez até porque o único interessado era Germán Efromovich, empresário com nacionalidade colombiana, brasileira e boliviana, presidente da holding Synergy Group, fundador e dono da OceanAir Linhas Aéreas em 2002, que viria a chamar-se Avianca Brasil em 2007, depois da compra da colombiana Avianca em 2004. 

Apesar do governo estar empenhado para vender a TAP, surgia um conjunto de problemas. No quadro da legislação europeia, era necessário ter a nacionalidade de um Estado-Membro para poder ter a maioria do capital de uma empresa de aviação civil. Como tal, em 2012, Germán Efromovich adquire a nacionalidade polaca para desbloquear o impasse, mas surge o problema da liquidez. O empresário não conseguia garantir liquidez para ficar com a TAP uma vez que eram 25 milhões de euros em garantias bancárias ele não os dava, mesmo avançando com uma proposta de 1,5 mil milhões de euros. O negócio acabava por ser adiado, mas Maria Luís Albuquerque, à data secretária de Estado do Tesouro, dizia que a proposta tinha sido rejeitada devido ao incumprimento dos «requisitos previstos no caderno de encargos", mas ressalvando que a proposta de Gérman Efromovich era «positiva, coerente e alinhada com a estratégia do Governo».

O processo de privatização é então parado e retomado somente em 2014, ano em que é aberto o processo para se receber novas candidaturas. Em 2015, ano de eleições legislativas, o governo apressadamente procura encerrar o processo de privatização. Nesse momento, o governo, que apesar de coligado detinha a maioria absoluta, sabia que a contestação era enorme. Tinham sido anos muito duros de ataques e medidas de empobrecimento e, como tal, a ida às urnas poderia ser castigadora. Nesse ano há três interessados na compra da TAP e o ideal seria despachá-la o quanto antes. Para além do já conhecido Germán Efromovich, surgiram outros interessados: David Neeleman, CEO da Azul Linhas Aéreas e da JetBlue Airways, juntamente com o empresário português Humberto Pedrosa, dono do Grupo Barraqueiro; a Globalia e ainda Miguel Pais do Amaral.

Cada um dos interessados foi caindo por terra, desistindo do negócio e indo à sua vida. Quatro meses antes das eleições legislativas que ocorreram em Outubro, o governo aprovou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 38-A/2015, de 12 de Junho e fechou negócio com David Neeleman e Humberto Pedrosa que formavam o consórcio Atlantic Gateway. Pela mesma razão que Germán Efromovich adquiriu a nacionalidade polaca, Humberto Pedrosa foi o passaporte (literalmente) que permitiu ao americano David Neeleman controlar a maioria dos capitais da empresa.  

Apesar de ter sido decidido em Junho, a venda efectuou-se, à pressa, em Novembro, uma vez que nas eleições de Outubro PSD/CDS perderam a maioria na Assembleia da República e ficaram sem condições para governar.  O consórcio Atlantic Gateway iria futuramente adquirir assim 61%, 5% ficaram para os trabalhadores da TAP SGPS e os restantes 34% ficariam na posse do Estado durante dois anos. A venda seria feita por 354 milhões de euros na TAP. Deste montante, o Estado recebeu directamente 10 milhões de euros e o restante seria para injectar na empresa. Era precisamente a partir daqui que o PCP queria ver apurados, pela actual Comissão de Inquérito à TAP, todos os factos da gestão privada da companhia aérea e os seus impactos, mas PS, BE e Chega recusaram. 

A opção pela gestão privada

Com a constituição do governo minoritário do PS, em 2015, foi possível reverter alguns aspectos da privatização. Repare-se que foram somente alguns aspectos, como expresso na Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2016, de 23 de Maio a Atlantic Gateway aceitava vender ao Estado as ações representativas do capital social necessárias para que este, por via da sua empresa, a PARPÚBLICA, passasse a ser titular de um número de ações correspondente a 50 % do capital social da TAP custando 1,9 milhões. Ou seja, o governo, ao invés de resgatar a empresa, procurou apenas ficar com 16% da parte que tinha vendido ao Consórcio para além de celebrar um acordo parassocial que dá ao consórcio o controlo da gestão e a maioria dos direitos económicos.

Tanto o PS e a Comissão Europeia optaram por fechar os olhos ao facto de a compra da TAP ter sido ilegal à luz das tão sagradas directivas mas que se tornam plásticas quando interessa. Optaram por fechar os olhos à negociata que fez com que a TAP fosse comprada com o seu próprio dinheiro, e aceitaram uma alteração no capital apenas formal, pois os direitos económicos e a gestão continuavam maioritariamente na mão de privados. 

Sabe-se hoje que o PS optou por manter na estrutura accionista alguém que usou o dinheiro do Estado para comprar as acções e com o aval do anterior governo PSD/CDS. A operação está a ser investigada pelo Ministério Público, tratando-se de saber se David Neeleman, antes de se tornar accionista da TAP, negociou com esta a troca da frota com a Airbus e utilizou os ganhos para ficar com a maioria da companhia aérea portuguesa.

Não se pode dizer que a administração privada da TAP tenha tido sucesso. Em 2018 impôs uma nova reestruturação, teve um prejuízo de 118 milhões de euros e, em 2019, apesar do aumento do turismo em Portugal e do record de passageiros transportados, a TAP volta a ter 105,6 milhões de euros de prejuízo. Eis que em 2020 começa a pandemia Covid-19 e a TAP apresenta, à semelhança de todo o sector aéreo mundial, um prejuízo histórico de 1418 milhões de euros. Para isso contribuiu a imensidão de todos os custos fixos normais referentes a uma companhia do sector aéreo (trabalhadores, leasings, alugueres, estacionamento dos aviões, etc), mas além disso a ANA cobrou diversas taxas e rendas pelos aviões que estavam em terra. É aqui que se vê, outra vez, o que valem os accionistas privados e a gestão privada. Quando para eles aperta e é necessário chegarem-se à frente, recusam-se. 

Nesse momento, o Estado teve de recuperar, outra vez, o controlo público da TAP. A situação assim o exigia, era necessário garantir que a empresa não desaparecia e mantinha a sua actividade, que continuava essencial. Isto não era caso único. O Governo alemão, por exemplo, concedeu à Lufthansa um pacote de ajuda de nove mil milhões, ficando com 20% das acções. Ou seja, o que o Governo português iria fazer não era inédito. E assim foi. O Governo PS desenhou um plano de reestruturação para auxiliar a TAP numa altura difícil e garantir a manutenção da sua actividade.

Em Outubro de 2020 David Neelman sai então da TAP, em nome da «estabilidade acionista». O empresário vendeu assim a sua participação de 22,5% por 55 milhões de euros. É importante relembrar que, aquando da venda ao consórcio Atlantic Gateway, o Estado só tinha recebido 10 milhões de euros. O saldo para o empresário era bastante positivo. Acabou por ter que injectar dinheiro em prestações acessórias e ainda ganhava mais algum graças negócio com os aviões. Neelman sai porque se não saisse perderia todo o capital sem direito a indemnização, que foi o que aconteceu aos 5% detidos pelos trabalhadores.

A 10 de Dezembro de 2020, o Governo enviou o seu plano de reestruturação para Bruxelas, para efeitos de aprovação, porque, novamente, de acordo com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia os auxílios têm que ser aprovados, uma vez que podem «salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções». 

No dia seguinte ao envio do plano, o então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, faz uma conferência de imprensa onde, para além de esclarecer as intenções do governo, tem um conjunto de declarações que são, no mínimo, reveladoras das vontades. Começou por dizer «quando nós decidimos pedir o auxílio de Estado à Comissão Europeia e se faz a primeira intervenção com uma injecção de liquidez até 1,2 mil milhões de euros, era importante que todos compreendessem que não estava em causa se a empresa ficaria privada ou pública. (...) Quando a crise pandémica precipitou a degradação muito acentuada das contas da TAP, colocou a TAP em risco de sobrevivência, nesse momento o sócio privado do Estado não tinha disponibilidade para meter dinheiro na companhia. Nós não poupamos o privado de injectar dinheiro na TAP. O privado não tinha dinheiro nem vontade de injectar na TAP. Portanto, se o Estado não fizesse o que fez, a TAP falia. Não houve nenhuma bravata contra o privado». Pedro Nuno Santos admite mesmo que não era intenção do Estado ficar com a TAP. 

Após um longo processo negocial, em 2021 chegam as notícias finais sobre o plano de reestruturação. Até esse momento, o governo, de acordo com o plano de reestruturação, dilapidou a empresa com uma onda de despedimentos. Só para se ter uma ideia, entre Janeiro e Setembro de 2021, a TAP afastou 1820 trabalhadores. A 21 de Dezembro de 2021 a Comissão Europeia aprovou o auxílio português de 2,55 mil milhões de euros para reestruturar o grupo TAP. Naturalmente, para uma instituição que não dá ponto sem nó, tal aprovação, negociada com o governo português, tinha contrapartidas: “racionalizar” as operações da TAP SGPS e reduzir os custos, reestruturando as companhias aéreas TAP Air Portugal e Portugália; alienar as filiais em atividades adjacentes de manutenção (no Brasil); inibir a TAP SGPS e a TAP Air Portugal de efetuarem quaisquer aquisições e reduzir a sua frota até ao final do plano de reestruturação, afectando a sua rede; «preservar uma concorrência efetiva» no Aeroporto de Lisboa, cedendo até 18 faixas horárias por dia a uma transportadora concorrente. Isto significava, enfraquecer a empresa do ponto de vista operacional e concorrencial e privatizar o que havia por privatizar.

Vendo o controlo público do Estado confirmado, é também nesse mesmo dia que Humberto Pedrosa e o filho anunciam que deixariam de ser administradores da TAP, uma vez que o seu outro grupo, o Barraqueiro, tem contratos com o Estado, por exemplo, a concessão ferroviária da Fertagus e isso poderia vir a constituir um impedimento, pelo menos no que diz respeito às funções executivas. Esta justificação e o facto de terem que se chegar à frente com capital, motivou a saída.

Como se isto não fosse suficiente a SPdH/Groundforce nesse mesmo ano entra em insolvência porque, mais uma vez, um accionista privado, desta vez Alfredo Casemiro, volta a não cumprir o seu papel. O governo mais uma vez tem de se chegar à frente e ficar novamente com a empresa, mas desta feita, já com a mira calibrada pela Comissão Europeia, para a privatização imediata da empresa. Em 2022, a Groundforce é novamente encaminhada para ser vendida).

No final de 2021, Christine Ourmières-Widener assume o cargo de CEO da TAP, tendo sido já administradora da Flybe Group e da CityJet e trabalhado no Grupo Air France-KLM. Os interesses do grande capital estão em jogo e os abutres olham para uma presa fácil. A sua missão é simples, como a mesma admitiu numa audição na Assembleia da República, concluir o plano de reestruturação de modo a criar condições para a privatização da TAP. A importância de Christine Ourmières-Widener neste processo é tal que cortando custos e despedindo trabalhadores de forma a cumprir com os objetivos que lhe foram propostos, irá receber um bónus que poderá chegar aos três milhões de euros. 

A 28 de Fevereiro de 2022, é aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 138/2022 que renova a declaração da TAP, S. A., da Portugália, S. A., e da Cateringpor, S. A., em situação económica difícil. Este é o passo qualitativo que assume os objectivos para a privatização de forma a permitir rasgar os Acordos de Empresa, chantagear os sindicatos e conseguir que estes assinassem acordos que lesassem os seus interesses. O modelo de gestão imposto pela Comissão Europeia e fielmente acatado pelo Governo PS fazendo todos os ajustes necessários, enfraquecendo a empresa e criando o caldo para uma «situação económica difícil», cria as condições todas, materiais e mediáticas, para vender a empresa. De tal forma, que o Ministro da Economia, no passado mês de Janeiro, chega mesmo a dizer, sobre a privatização da TAP, que «nesta fase todos são bem vindos», incluindo a Ibéria que supostamente era o comprador menos desejável uma vez que tem o seu Hub em Madrid e não lhe seria desejável manter um outro em Lisboa.

Recentemente, numa reacção ao caso de Alexandra Reis, o actual ministro das Finanças pediu um parecer à Inspecção-Geral de Finanças, com base no qual tomou a decisão de despedir Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja, o chairman da companhia aérea.

A verdade e que a privatização da TAP não é uma inevitabilidade, como muitos querem dar a entender. A sua concretização constituirá um crime económico que o País pagará caro.

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