Reagindo aos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito à TAP, David Neeleman publicou a semana passada uma carta no Observador. Antes de abordar o seu conteúdo, talvez seja de recordar uma outra entrevista, dada à Visão a 14 de Janeiro de 2016. Porquê? Porque passaram já sete anos, muita coisa se descobriu entretanto sobre o processo de privatização, e essa leitura resulta importante para perceber a seriedade da pessoa que assina aquela carta.
Comecemos pela questão dos 12 A350, ou seja, da opção de compra que a TAP detinha, e pela qual sabemos hoje, David Neeleman ofereceu 132 milhões de euros em Maio de 2015, na primeira proposta vinculativa apresentada. Que cada um compare o que se sabe hoje com aquilo que David Neeleman respondeu em Janeiro de 2016, quando o negócio dos Airbus estava ainda escondido do povo português.
«Visão: A TAP foi a quarta empresa no mundo a encomendar os A350 que deveriam ser entregues em 2017. As ordens de encomenda que estavam feitas têm um valor monetário?
David Neeleman: Não. Todos os contratos dizem que não se podem vender os slots. Isso é um princípio inabalável. Se eu comprar uma aeronave hoje não a posso vender enquanto não estiver em meu poder.
(...)
Visão: Seja quais forem as contas, no meio aeronáutico diz-se que a venda das ordens de encomenda dos A350 poderia render cerca de 150 milhões de euros?
David Neeleman: Dizer que se podia vender os slots por 150 milhões ou 200 milhões é completamente errado.»
Da mesma forma, hoje todos podemos saber que os fundos utilizados por Neeleman para comprar a TAP vieram da Airbus como comissão paga antecipadamente pela compra de 3,6 mil milhões de euros de 53 aviões que David Neeleman faria a TAP executar. Vejam-se as respostas de David Neeleman em 2016 a este propósito:
David Neeleman: «O mais fácil era dizer devolvam-me o dinheiro e eu vou-me embora». «Se o projecto falhar o Estado não perde nada. Nós os privados é que perdemos quase 400 milhões que colocámos na TAP.»
Visão: «Questionado quanto dinheiro é que colocou na TAP, Neeleman garante que o consórcio já colocou 180 milhões de euros em dinheiro, fora os 860 milhões de ganho com as negociações dos novos aviões da frota. "Iremos colocar mais 200 milhões na empresa". E de onde vem o dinheiro? "Da minha conta em Nova Iorque e da Barraqueiro directamente para o consórcio Gateway. E depois deste para a TAP".»
Ou seja, apesar de agora vociferar que toda a gente conhecia a origem do dinheiro, David Neeleman fez parte, com o Governo PSD/CDS primeiro, e depois com o próprio Governo PS (Pedro Marques informou a CPI que descobriu essa informação em 2016), de um conluio para esconder do povo português a verdade sobre esse processo. Para esconder que a TAP estava a ser comprada com dinheiro da própria TAP (o valor da opção de compra dos A350 mais o valor das comissões adiantadas a David Neeleman pelos aviões que a TAP iria comprar).
É com essa informação em mente que deve ser lida toda a carta de 2023 de David Neeleman.
Apesar de BE e PS terem impedido (cada vez se percebe menos porquê) de levar a Comissão de Inquérito à TAP até à privatização de 2015, os trabalhos têm contribuído decisivamente para se perceber os contornos desse negócio. Sem uma bola de cristal, não é possível provar intenções. Nunca saberemos se Pires de Lima e Sérgio Monteiro foram enganados por Neeleman ou cúmplices da sua fraude. Eles preferem fingir acreditar que enganaram o empresário americano que ganhou milhões com a operação TAP. Também não é possível provar o que teria acontecido se não se tivesse declarado uma pandemia. Nunca saberemos se o plano de Neeleman era simplesmente inchar a sua operação, retirar tudo o que pudesse e depois desaparecer, ou se a teria levado até uma operação bolsista. O que sabemos é que a estratégia – de alto risco para a TAP e zero risco para ele – adoptada pelo empresário americano tropeça na Covid e arrasta a TAP para o precipício. E que, no final, Neeleman e as suas empresas ganharam muitos milhões com a operação TAP e deixaram-na com um buraco de mais mil milhões de euros do que o que existia antes da sua chegada, para nós pagarmos. No mundo capitalista, um investidor nunca arrisca mais que os capitais que coloca numa determinada empresa. Ora, David Neeleman não colocou qualquer capital na TAP. Ele viu a oportunidade de tomar o controlo da empresa através de um mecanismo muito simples: Negociou com a Airbus a compra de 53 aviões (uma compra de cerca de 3,6 mil milhões de euros) e recebeu desta uma comissão antecipada de 230 milhões de euros; Com esses 230 milhões ele comprou a TAP (que foi vendida por 10 milhões) e usa o resto para fazer a capitalização com prestações acessórias (que mais à frente ainda lhe garantiriam o controlo total e efectivo da empresa, sem ter que simular uma sociedade com Humberto Pedrosa); Ele transfere para a TAP a obrigação de compra dos 53 aviões, aceitando esta pagar uma multa de 230 milhões se não comprasse os aviões (no fundo, assegurando a devolução da comissão recebida por Neeleman se a TAP não comprasse todos ou parte dos aviões). Foi este o negócio que o governo PSD/CDS fez, foi este o negócio que esconderam do povo português. Em bom português, é com dinheiros da TAP, que a empresa está hoje a pagar, com dinheiros que tiveram que ser financiados pelo Estado português, que David Neeleman compra a TAP. O risco patrimonial do «empresário» foi zero. Tomado o controlo da companhia, David Neeleman aproveita para concretizar um conjunto de outras operações que lhe irão trazer uma grande vantagem patrimonial. Três delas decorrem ainda durante a própria operação de compra com a Airbus, onde é fácil identificar os custos para a TAP. A primeira é a desistência da opção de compra dos 10 A350, que a TAP tinha assegurado a um bom preço por ter participado no processo de desenvolvimento do mesmo. Essa desistência da opção de compra está avaliada em 140 milhões, e implicou o abandono de uma linha de crescimento da operação – para a Ásia, nomeadamente para a China – que estava por detrás da compra desse tipo de aviões. Esta abrupta mudança de planos fica ainda mais estranha se pensarmos que o administrador da TAP que planeou a compra dos A350 (Fernando Pinto) foi o mesmo que foi contratado pela administração privada como consultor, com uma remuneração de 130 mil euros mensais. A segundo será o preço dos aviões que Neeleman negociou, que vários avalistas consideram estar inflacionado, com potenciais perdas para a TAP de 200 milhões. O que pode significar que a TAP, comprando ou não os aviões, devolveria sempre a comissão que a Airbus entregou a David Neeleman. Há ainda uma terceira vertente deste processo, ainda mais difícil de provar sem uma investigação criminal internacional: na mesma altura, Neeleman terá negociado outras aquisições de aviões com a Airbus para empresas de que é ainda hoje proprietário. Durante os quatro anos de gestão privada, a TAP vai ter com a Azul (de David Neeleman) uma relação subserviente e onde é prejudicada. Vai pagar à Azul para utilizar os seus ATR na ponte aérea, o que rentabilizou uma parte da frota da Azul que não era rentável, mas fez a TAP «optar» por uma má solução, cara e pouco fiável. Vai libertar o aeroporto de Campinas (São Paulo) para que a Azul faça o seu hub de ligação a Portugal, e ainda vai fazer uma operação de code-share para facilitar a difusão destes passageiros pela Europa, colocando em risco a mais rentável das operações TAP, a ligação ao Brasil, em favor do crescimento da Azul nesse mesmo mercado. Vai receber dois aviões muito degradados da Azul, recuperá-los como se fossem seus, e devolvê-los à Azul, uma operação com um custo de largos milhões de euros. A forma como os administradores privados vão ser remunerados no período de gestão privada é outro elemento que nos mostra os privados a irem ao pote. Além dos 130 mil por mês a Fernando Pinto, temos os milhões pagos a Max Urbanh e a Antonoaldo Neves, e os prémios pagos mesmo com prejuízos anuais superiores a 100 milhões. Com a entrada de Neeleman na companhia, a TAP é colocada a inchar. Desde logo porque tal é fundamental para absorver e justificar a compra dos 53 novos aviões. É certamente discutível qual a intenção com que esse crescimento foi feito, mas é indiscutível, agora que se conhece o mecanismo de compra da empresa, que esse crescimento era necessário, antes de mais nada, para que Neeleman pudesse ter comprado a TAP. Reconheça-se que os novos aviões trazem vantagens competitivas importantes à TAP. Gastam menos combustível e são mais ecológicos. Aumentaram a dívida e os compromissos da companhia, mas desde que o crescimento da operação continuasse, não era impossível que a operação se equilibrasse e começasse a dar lucros. E há elementos, apurados pela CPI, que fazem crer que pelo menos alguns dos envolvidos acreditavam nesse cenário (por exemplo, Fernando Pinto recebia um conjunto de opções de compra de acções da TAP numa futura capitalização em bolsa que nessa altura valeriam 7 milhões de euros). Não faz sentido receber, num contrato secreto, opções de compra, se não se acredita que a empresa vai ser colocada em bolsa. É verdade que os esquemas de Ponzi também funcionam assim (só sobrevivem enquanto se cresce). É verdade que os dois últimos anos de gestão privada pré-pandemia, foram o período de maiores prejuízos da história da TAP (mais de 300 milhões de Euros). É pois lícito especular que o plano de alguns sempre foi tirar o máximo possível e depois afastar-se com os ganhos. Mas, admitamos que não era esse. Nesse caso, o crescimento acelerado (o maior do mundo naquele período) era só um risco calculado, um risco para a TAP, claro, dado que David Neeleman nada arriscava. Se corresse bem, traria lucros de centenas de milhões a David Neeleman (cerca de 400 milhões), se corresse mal, adeus TAP. Mas o que é que podia correr mal? E depois veio o Covid. Importa pouco ter a certeza se a pandemia interrompeu um esquema de Ponzi ou uma arriscada jogada do empresário norte-americano. O que é seguro é que a TAP é mais severamente atingida pela pandemia devido às opções impostas por David Neeleman, desde o processo de compra até aos 4 anos de gestão privada da companhia. Tendo arriscado zero em todo este processo, David Neeleman está inicialmente disponível para receber (não ele, para não ficar com quaisquer responsabilidades individuais, mas a TAP) todo o tipo de apoios do Estado. Mas recusa-se a capitalizar a TAP. Estamos perante o investidor moderno, que só aceita investir o dinheiro dos outros. Quando o Governo PS exige que parte do apoio público implique capitalização, David Neeleman começa a preparar a saída. Vai negociar a sua saída por uma indemnização de 55 milhões de euros. Um maná, para quem nada de seu colocou na TAP, conseguido quando o valor financeiro da empresa era de zero. E que se foi juntar a tudo o que já tinha sido retirado. Perante este cenário, o deputado Bernardo Blanco, da Iniciativa Liberal, já defendeu por diversas vezes na Comissão Parlamentar de Inquérito que a solução seria emprestar o capital necessário à TAP (os 3,2 mil milhões de euros), continuando David Neeleman com o controlo efectivo da empresa. Que fácil é ser capitalista no mundo destes alucinados. Um mundo onde salvar uma grande e estratégica empresa pública é um crime, mas onde existe sempre disponibilidade para enviar dinheiro às pazadas para o bolso de capitalistas e especuladores. Ora, a conclusão que salta à vista é outra: a TAP não pode continuar a ser sangrada por este tipo de gente, não pode continuar a pagar os lucros que outros fazem com a TAP. É tempo de deixar de ter como única prioridade de gestão da TAP a sua privatização, a quarta tentativa neste caso. É tempo de uma gestão pública capaz e orientada para a defesa do interesse nacional. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Nacional|
TAP. O negócio Neeleman de 2015
Risco Zero: os capitais usados são da própria TAP
Ao assalto da TAP
A TAP a inchar
A pandemia
Concluindo
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Desta carta vamos apenas tratar aqui de uma frase. A mais difundida pelo conjunto da comunicação social: «Muito conveniente para quem quer diabolizar o investidor estrangeiro e passar a mensagem de que o "mau" do empresário americano privado (que levou a companhia de um valor negativo de 512 milhões até ao valor positivo de 1000 milhões sem um euro de investimento público) é o culpado da ruinosa gestão pública da TAP.»
Comecemos pela verdadeira evolução dos capitais próprios (a diferença entre o activo e o passivo) da TAP entre 31 de Dezembro de 2015 e de 2019. Ela evoluiu de menos 530 milhões para menos 692 milhões, e não, como afirma David Neeleman, de menos 512 para 1000 milhões positivos. Piorou, em vez da melhoria radical que finge ter acontecido.
E como constrói David Neeleman esse número de mil milhões? Dizendo que tinha uma avaliação de uma consultora privada muito séria. Uma avaliação que ele garante ter enviado para a Parpública. Mas isso altera a realidade contabilística da empresa? Altera o Relatório e Contas de 2019? Em nada. É um truque, é ilusionismo, é aquilo em que David Neeleman se mostrou especialista.
E tudo isto para tentar esconder o outro facto objectivo que salta à vista. Ou devia saltar. No final de 2015, um grupo capitalista pagou 10 milhões de euros por 61% da TAP. Geriu a TAP durante quase cinco anos, até Setembro de 2020. Nessa altura, a empresa foi reestruturada, e tinha, além do buraco atribuído pela Comissão Europeia à Covid (640,5 milhões de euros) outras necessidades de capitalização superiores a 1,5 mil milhões de euros (e já estamos a descontar dos 3,2 mil milhões de apoios públicos, os cerca de mil milhões que lá ficam para o próximo accionista privado).
Para terminar, queremos sublinhar que nada temos contra o investimento estrangeiro nem contra os investidores estrangeiros. Mas não só não incluímos na categoria de investimento a compra de empresas estratégicas nacionais, como ainda não encontrámos um euro de David Neeleman investido na TAP.
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