De vez em quando chega-nos a notícia, tranquilizante, de que a Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou mais umas multas de uns bons milhões de euros contra algum grupo económico. E de facto, depois de ler que «multas da AdC triplicaram em 2022», qualquer pessoa passa por uma daquelas placas sobre o preço da gasolina na auto-estrada, onde o preço nas diferentes marcas é igual até à décima de cêntimo, e esboça um sorriso interior, pensando na multa pesada que aquelas empresas vão pagar, mais tarde ou mais cedo, pela evidente cartelização de preços.
É relaxante acreditar que o sistema funciona. Que onde o monopólio capitalista faz das suas, o regulador intervém e trava esses abusos aplicando multas gigantescas. E a comunicação social, eficaz, por uma vez nos sossega e relaxa, afastando-nos de quaisquer preocupações com a concentração capitalista e a acção dos monopólios.
A leitura do Relatório de Actividades, Gestão e Contas de 2022 da AdC faz, no entanto, desaparecer toda essa tranquilidade. E quem a tal leitura subversiva somar a leitura dos relatórios anteriores, dos últimos dez anos por exemplo, pode mesmo perder a fé no sistema. Só para dar uma ideia do tipo de informação que se pode encontrar: a AdC passou, nos últimos dez anos, um total de 1446,3 milhões de euros de multas e conseguiu receber o extraordinário volume de 30,72 milhões. Algo como 2% dessas multas. O resto aguarda a conclusão dos processos em Tribunal colocados pelas empresas multadas.
«Depois de ler que "multas da AdC triplicaram em 2022", qualquer pessoa passa por uma daquelas placas sobre o preço da gasolina na auto-estrada, onde o preço nas diferentes marcas é igual até à décima de cêntimo, e esboça um sorriso interior, pensando na multa pesada que aquelas empresas vão pagar, mais tarde ou mais cedo, pela evidente cartelização de preços.»
Os processos de que todos ouvimos falar, à grande distribuição – Auchan, Modelo Continente, Pingo Doce, Lidl – à EDP, a quase toda a banca, à Altice, aos hospitais privados, e a outros grandes grupos, encontram-se a aguardar o desfecho dos processos judiciais.
E se a justiça em Portugal nunca é rápida, quando de um dos lados estão os milhões de euros dos grandes grupos económicos ela arrasta-se quase interminavelmente, até tombar, a maioria das vezes, exangue, derrotada por um prazo não cumprido ou outro tipo de tecnicismo.
Mas essa leitura também nos informa sobre quem são os perigosos especuladores, os poderosos grupos monopolistas, os cartéis vergados pela AdC em 2022, pois o dito relatório traz-nos a lista dos pagantes de multas: o Casa Pia Atlético Clube; a Farmodiética; um Consultório de Tomografia; o Instituto de Telemedicina; uma sociedade unipessoal; o presidente da APEC; uma Fidelidade – Investimentos que não é a seguradora; a Associação Nacional de Topógrafos. Sendo que 90% do valor das multas foi pago pelo referido «Consultório de Tomografia», contribuindo para que o mesmo fosse entretanto comprado por uma multinacional do sector, daquelas que usa a bela da concorrência para concentrar toda a actividade num monopólio multinacional.
E de repente parece que o sistema já não funciona assim tão bem. Ou, visto de outra perspectiva, (e que importante é a perspectiva), talvez funcione que nem um relógio, com um mecanismo complexo e bem oleado, onde reguladores, advogados e tribunais participam na legitimação das várias formas de apropriação e distribuição da mais-valia pelos detentores do capital.
Anexo:
Adc | 2022 | 2021 | 2020 | 2019 | 2018 | 2017 | 2016 | 2015 | 2014 | 2013 | Total |
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Multas Aplicadas | 487,6 | 137,8 | 393,2 | 340,2 | 12,2 | 38,8 | 11,1 | 20,5 | 0,2 | 4,7 | 1446,3 |
Multas Recebidas | 7,2 | 0,25 | 0,16 | 1,14 | 18,15 | 1,7 | 1,51 | 0,33 | 0,06 | 0,23 | 30,72 |
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