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Sobre as outras faces do processo de desindustrialização estratégica em Portugal

Em 37 cursos sem quaisquer colocados, 26 são cursos de engenharia, cursos absolutamente vitais para o funcionamento e desenvolvimento das múltiplas e muito diversificadas atividades industriais.

Antigas oficinas da Sorefame 
Créditos / Estúdio Horácio Novais

Quase todos os jornais diários de 27 de Agosto de 2023, bem como alguns canais generalistas de televisão, traziam duas notícias, que, no nosso entendimento, respeitam a duas das outras faces menos conhecidas do processo de desindustrialização estratégica no nosso país. 

A primeira, é a de que, no quadro do acesso ao Ensino Superior para 2023, o curso exigindo a mais elevada nota de acesso, é a licenciatura em engenharia aeroespacial da Universidade do Minho, com a nota de 18,86 valores do último aluno colocado.

A segunda, é que as instalações industriais da antiga Fundição de Oeiras, de há muito encerrada, no quadro do processo de desindustrialização – particularmente de empresas de setores básicos estratégicos – vão ser desmanteladas para poderem acolher um grande projeto imobiliário, com a construção de cerca de 600 apartamentos, um hotel, diverso comércio e serviços, e, finalmente, como uma espécie de «bónus», uma residência para estudantes (não dizem é qual a mensalidade).

Ainda sem o aprofundamento que estes assuntos merecem, particularmente o primeiro, tendo em atenção a sua complexidade, e tendo sobretudo em atenção o seu enquadramento ideológico e económico, face aos interesses estratégicos do grande capital relativamente ao setor industrial – nas suas componentes mineira e transformadora – desde já umas breves apreciações sobre o que se esconde por detrás destas duas notícias.

Relativamente a uma leitura ainda muito superficial das notícias sobre as notas de ingresso, bem como sobre o esgotamento das vagas existentes, nas licenciaturas de engenharia aeroespacial (mas também, embora com muito menor intensidade, de engenharia geoespacial), que decorrem inevitavelmente da relação estabelecida entre a oferta e a procura, e nas três escolas que oferecem este curso (IST e Universidades de Aveiro e do Minho), tentaremos avançar nalgumas conclusões, mesmo que provisórias.

Do reino da ficção à dolorosa realidade

Portanto, sem mais informação, e para a generalidade das pessoas, tendo em atenção o seu nível médio de conhecimento destes temas, e tendo ainda em atenção a notoriedade que foi dada ao assunto, sobretudo por parte das televisões, poder-se-á ficar com a ideia de que Portugal é um país industrialmente muito avançado, dada esta procura, pois estamos a falar de cursos correspondentes a uma especialização industrial de ponta. 

De facto, estamos perante áreas de ponta, com uma muito elevada incorporação de I&D, e os produtos nelas projetados e fabricados pertencem inequivocamente ao grupo de bens oficialmente classificados como de alta tecnologia.

Mas, contudo, deveremos ter muito cuidado com tal conclusão, seja porque a base industrial destes setores é em Portugal ainda muito reduzida e fragmentada, e só com expressão na componente aeronáutica, seja porque, e sobretudo, a realidade produtiva nacional, pelo menos nas condições dos últimos dois decénios, é caracterizada por aspetos, tais como: por exemplo, os postes de aço, bem como outros componentes para instalação das catenárias para os caminhos de ferro, tem de ser atualmente importados, assim como o carril, quando no passado já tinham sido fabricados no país; por outro lado, Portugal, seguramente durante mais de seis décadas, foi completamente auto-suficiente na produção de adubos químicos, cujos agora importa totalmente; de referir ainda, que até finais da década de 80 do século passado, se projetavam e construíam navios de grande arqueação, incluindo petroleiros, que agora nem precisam de ser importados, pois que o país não tem atualmente frota de comércio. 

Também a quase totalidade dos componentes mecânicos, eletromecânicos e elétricos, necessários para empreendimentos hidroelétricos, deixaram há muito de ser fabricados no país, pelo que, sempre que necessários, precisam de ser importados. De forma semelhante, também quase todo o espetro de ácidos e bases com aplicação industrial muito vasta, que durante quase um século foram fabricados no país, agora quase que nem necessitam de ser importados, face ao desaparecimento de muitas das atividades-destino a jusante;  também todo o material circulante ferroviário (pesado, médio e ligeiro), em que até ao início deste século, parte muito significativa era fabricado em Portugal, atualmente é todo completamente importado; nesta linha, também toda gama de hidrocarbonetos aromáticos e seus derivados é atualmente importada, quando até recentemente era produzida no país; também a produção de explosivos para uso industrial – obras de engenharia, minas e pedreiras –, em que o país foi completamente autossuficiente durante mais de 70 anos, são atualmente importados; de idêntica forma, no respeitante à indústria militar, desapareceram completamente todas as suas vertentes de produção de armamento ligeiro e médio e de munições ligeiras e médias em todos os escalões das respetivas fileiras: química, paraquímica, metalúrgica, metalomecânica e de montagem.

«Se fosse esse o crivo da importância estratégica de um metal, o ferro ou o alumínio, porque não estão na moda, não interessam, mas o lítio, mesmo com manifestações contra, é importante.»

E tudo isto, já para não falarmos de todo o cobre usado no país, nos diversos níveis das suas longas fileiras de produtos, que são atualmente todos importados, quando Portugal ainda detém as maiores reservas de cobre da Europa, mas não produz no seu território, um grama sequer do cobre que consome.

São somente alguns exemplos, e não toda a realidade sobre a situação de degradação da malha industrial, e, em consequência, do empobrecimento do perfil de especialização industrial, cujos desmentem o que é estratégico e o que não é, independentemente de estar na moda ou não.

Se fosse esse o crivo da importância estratégica de um metal, o ferro ou o alumínio, porque não estão na moda, não interessam, mas o lítio, mesmo com manifestações contra, é importante.

A ideologia ao serviço dos interesses estratégicos da grande capital

Pela mesma ordem de razões, atualmente, o valor social, já desvalorizado à partida, de profissões e qualificações associadas à indústria e a outras atividades da esfera produtiva, designadamente no domínio da formação superior em engenharia, conduz a que um curso de engenharia mecânica, química ou eletrotécnica, tenha muito menos valor, sobretudo na perspetiva social, do que um curso de engenharia informática ou ainda menos que um curso de engenharia aeroespacial. 

De referir, por exemplo, que dos dez cursos de Ensino Superior, onde foram colocados mais alunos em 2023, nenhum é de engenharia, independentemente do ramo ou da especialidade.

Em resumo, embora a indústria transformadora ainda apresente um peso significativo no VAB, no emprego, na FBCF, mas sobretudo nas exportações, mas, contudo, ainda muito aquém do que seria desejável, sob os pontos de vista da densidade da malha, particularmente no que respeita à quase total ausência de setores básicos e estratégicos produtores de bens intermédios e de investimento, trata-se de uma situação muito vulnerável, sobretudo em termos da autonomia estratégica do país na esfera produtiva, e da contribuição desta para o exercício da soberania.

«Já para não falarmos de todo o cobre usado no país, nos diversos níveis das suas longas fileiras de produtos, que são atualmente todos importados, quando Portugal ainda detém as maiores reservas de cobre da Europa, mas não produz no seu território, um grama sequer do cobre que consome.»

Regressando à questão da procura de cursos do Ensino Superior (universitário e politécnico), ela tem naturalmente de ser enquadrada na perspetiva dos poderosos efeitos da ideologia dominante sob a população, e, neste caso concreto, sobre as famílias e os putativos candidatos à admissão nesse nível de ensino, que, de há quase três décadas a esta parte, e servindo os interesses de classe daqueles que a produzem e defendem, está, obviamente, cada vez mais afastada da esfera da produção material – indústria extrativa, fileiras das indústrias associadas à floresta, indústrias transformadoras, agricultura e pescas – no atual quadro sociológico de valores.

Assim sendo, e obviamente abrangendo todos os níveis de qualificação e de responsabilidades da força de trabalho, a procura dos níveis superiores, nomeadamente os respeitantes à formação académica de profissionais de engenharia, particularmente os associados às tecnologias verticais – nomeadamente geológicas, florestais, agrícolas, mecânicas, eletromecânicas, elétricas e eletrónicas, químicas ou mesmo de gestão industrial – tem-se reduzido ou mesmo reduzido muito, face à procura de cursos de outras áreas, particularmente das humanidades ou da arquitetura.

Este fenómeno é particularmente acentuado nas universidades e institutos politécnicos das zonas do interior.

Não correspondendo a situações estritas, portanto somente focadas nas necessidades da indústria transformadora, mas da esfera produtiva latu sensu, observem-se os exemplos fortíssimos, nomeadamente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, uma região de muito forte marca rural, em que o curso, muito raro, de engenharia e biotecnologia florestal, teve somente dois candidatos, enquanto que, por exemplo, um curso de engenharia têxtil, também raro, da Universidade do Minho, numa região com uma forte presença da indústria têxtil, teve uma taxa de ocupação de 25 %, ou ainda, o caso da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, com um curso de engenharia de minas, também raro (num país de elevados recursos mineiros), que ficou somente ocupado por metade.

Somente escapam a esta falta de interesse pela esfera produtiva, escolas de grande notoriedade a nível nacional, como o IST.

«O valor social, já desvalorizado à partida, de profissões e qualificações associadas à indústria e a outras atividades da esfera produtiva, designadamente no domínio da formação superior em engenharia, conduz a que um curso de engenharia mecânica, química ou eletrotécnica, tenha muito menos valor, sobretudo na perspetiva social, do que um curso de engenharia informática ou ainda menos que um curso de engenharia aeroespacial.»

Relativamente à enorme procura dos três cursos de engenharia aeroespacial, ela tem, na nossa perspetiva, uma explicação, a saber, o peso do epifenómeno moda, ou seja, o «moderno» e o «ultramoderno», versus as atividades do «passado», as atividades «fora de moda», mas, contudo, material e objetivamente associadas às necessidades mais básicas e estratégicas das sociedades e das respetivas economias.

E é assim agora, como nalguns casos já o era há milhares de anos (pelo menos 5 a 6 milhares), e é bom não esquecer que três Idades da Antiguidade, as Idades do Cobre, do Bronze e do Ferro, estão indissoluvelmente ligadas às metalurgias dos respetivos metais básicos.

Neste quadro, como já atrás observámos, a engenharia aeroespacial não tem atualmente qualquer aderência à realidade objetiva da esfera produtiva nacional que possa explicar tal dinâmica comportamental em termos de seleção de valores sociais.

Em síntese, recordar que em 37 cursos sem quaisquer colocados, 26 são cursos de engenharia, cursos absolutamente vitais para o funcionamento e desenvolvimento das múltiplas e muito diversificadas atividades industriais, ou seja, a base mais estruturante, consistente e sustentável para o desenvolvimento soberano do país.

Recorde-se ainda que dos dez cursos mais cotados em termos de notas de acesso, e excetuando os três já referidos de engenharia aeroespacial, não há mais nenhum outro de engenharia.

«A engenharia aeroespacial não tem atualmente qualquer aderência à realidade objetiva da esfera produtiva nacional que possa explicar tal dinâmica comportamental em termos de seleção de valores sociais.»

Acresce o facto que já começa a ser recorrente, de que os diplomados por estes novos cursos de engenharia aeroespacial, irão seguramente engrossar, a curto prazo, o exército de emigrantes altamente qualificados, com os custos de formação suportados pelo seu país de origem, o nosso país, e, portanto, a custo zero para os países que os irão receber e integrar nas suas indústrias aeroespaciais, pois que Portugal não tem estruturas para os receber.

Isto não significa que alguns não possam ir parar, e regozijamo-nos com isso, às OGMA, ou à Embraer.

Esta questão, que já abordámos levemente noutros textos, tem a sua raiz não só na vertente ideológico-comunicacional dominante, mas também da muito insuficiente preparação dos gestores nacionais, particularmente das pequenas empresas.

Da indústria ao imobiliário ou o caminho do empobrecimento nacional

Relativamente à segunda outra face do processo de desindustrialização estrutural, e recordando a enorme área antes ocupada pela Fundição de Oeiras, agora em perspetiva de ser substituída por um grande projeto imobiliário, é muito importante recordar que não estamos perante um processo virgem, um processo isolado, mas sim perante uma dinâmica de destruição de valores estratégicos, dinâmica completamente recorrente.

E dinâmica de destruição, como já antes enfatizámos, decorrente da alteração profunda do foco das políticas de investimento do grande capital (qualquer que seja o formato jurídico sob o qual atuam), que de há pelo menos três décadas, o foi mudando da indústria transformadora para atividades não produtivas, designadamente para o imobiliário – habitação, escritórios, centros comerciais, etc. Alteração que empobrece claramente o perfil de especialização económico nacional, e ainda vulnerabiliza mais a nossa soberania.

«É muito importante recordar que não estamos perante um processo virgem, um processo isolado, mas sim perante uma dinâmica de destruição de valores estratégicos, dinâmica completamente recorrente.»

E sobre este tema, a saber, a destruição de ativos industriais básicos e estratégicos, substituindo-os, nas mesma áreas e espaços, dado o seu elevado valor imobiliário intrínseco – sobretudo devido à localização – por grandes e valiosos projetos imobiliários, particularmente de habitação de padrões elevados, passamos em revista, alguns casos, sejam vários deles bem antigos, sejam alguns recentes ou ainda potenciais.

De facto, somente na Região da Grande Lisboa, e quase sempre com a prestimosa ajuda do Estado ou de autarquias, é de recordar o desmantelamento da MAGUE em Alverca, da FNMAL em Moscavide e da Fábrica Militar de Braço de Prata em Lisboa (Poço do Bispo).

Acresce ainda, na Região de Lisboa, a ocupação da vastíssima área ocupada no passado em Santa Marta de Corroios pela Sociedade Portuguesa de Explosivos, por um enorme empreendimento habitacional, que, para além do mais, veio destruir, por arrastamento, uma grande mancha de pinheiro bravo.

Também na Região de Lisboa, e expectante há já longos anos para a construção de um monumental empreendimento imobiliário, encontra-se o vasto terreno e ainda as docas secas do antigo estaleiro de reparação naval de navios de grande dimensão – à época da sua construção o maior do mundo – da empresa Lisnave.

Muito mais recentemente, os vastos terrenos da refinaria e complexo petroquímico de aromáticos interligado da Petrogal, em Matosinhos, que depois do criminoso encerramento, são candidatos à edificação de um grande empreendimento imobiliário, com valências diversas.

Estes alguns exemplos, seguramente não os únicos, de metamorfoses «virtuosas», em que atividades básicas e estratégicas, muitas suportadas em elevadíssimos investimentos e tecnologias verticais de ponta, capazes de criar valor a alto nível, mas sobretudo dar racionalidade à economia e segurança estratégica à soberania, são «magicamente» substituídos por empreendimentos imobiliários que, após edificados, nem resolvem o problema da habitação, nem criam qualquer riqueza.

Portanto, a regra de ouro, foi e continua a ser, como já atrás observámos, no quadro da descentragem estratégica dos grandes grupos económico-financeiros, a passagem das indústrias estratégicas, para, entre outros serviços, o imobiliário.

E esta orientação não é para responder à necessidade básica de habitação, mas somente para promover atividades económicas, que nestas circunstâncias históricas são de alta rendibilidade.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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