«As pessoas em situação de trabalho forçado estão sujeitas a múltiplas formas de coacção, sendo a retenção deliberada e sistemática do salário uma das mais comuns. O trabalho forçado perpetua ciclos de pobreza e exploração e atinge o cerne da dignidade humana», afirmou Gilbert F. Houngbo, director-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT). E esta realidade só tem vindo a piorar nos últimos anos.
A possível reviravolta em relação à criminalização do proxenetismo, por haver no Tribunal Constitucional novos elementos favoráveis a essa alteração, traz-nos de novo a este assunto. O Público noticiou que o Tribunal Constitucional abriu, no mês passado, caminho para a despenalização desta prática. Segundo a notícia, alguns dos juízes argumentam que «lucrar não é crime», e que a criminalização pode até ser condescendente e constituir um atentado à «dignidade e autonomia» de pessoas livres que podem decidir o que fazer com o seu corpo e com a sua sexualidade. Também se fala de «liberdade sexual» e sugere-se que «incriminar proxenetas que não violaram a liberdade sexual de ninguém constitui “um exercício de moralismo atávico», impensável numa sociedade secularizada e democrática.» Mais uma vez se vem colocar o ónus na questão moral e na evolução das mentalidades em relação à sexualidade. Mas a liberdade sexual tem relação com a prostituição? É de liberdade sexual que estamos a falar quando tabelamos preços para prestar serviços sexuais a um cliente? As mulheres prostituídas são livres de explorar dessa forma a sua sexualidade? É de liberdade sexual que se trata quando ouvimos os relatos de como se entra nesta actividade? E, acima de tudo, é de liberdade sexual que estamos a falar quando defendemos legalizar os patrões que exploram as mulheres que se vêem obrigadas a prostituir-se? Não é crime uma pessoa prostituir-se, mas sim a exploração dessa actividade por outros. Com a legalização do lenocínio, são os que gravitam em torno deste negócio, e não as mulheres, que ficam salvaguardados. Já são vários os elementos de uma nova investida no sentido de legalizar o proxenetismo em Portugal. A agenda não é nova mas tem tido maior visibilidade em torno da recente petição para legalizar o lenocínio e regulamentar a prostituição enquanto profissão. Ontem, o Público noticiou um acórdão do Tribunal Constitucional que pela primeira vez vem defender que facilitar a prostituição não deve ser crime. Assumindo que é um assunto que não reúne consenso, o artigo expõe alguns dos argumentos utilizados pelos magistrados para defender a descriminalização daqueles que lucram com a prostituição de terceiros. Chega a ser espectacular a contradição do que é defendido. Se por um lado os juízes não ignoram a violência que existe no mundo da prostituição, consideram que é o facto de a actividade – o proxenetismo – ser crime o que aumenta essa violência. «Os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em todo o caso, sempre existentes em algum grau) resultam mais da criminalização da actividade em causa (e assim da natureza "subterrânea", clandestina, para que é remetida) do que da mesma», pode ler-se no texto. Mas, sobretudo, este acórdão vem colocar o ónus na questão moral, afirmando que as mentalidades evoluíram desde a altura em que se considerou que a exploração de outros através da prostituição devia ser ilegal. A essa perspectiva presidia então «uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade». Os vários acórdãos que até agora consideravam o proxenetismo crime mais não faziam «do que tutelar "sentimentalismo" ou "uma ordem moral convencional particular"». Legalizar os patrões das prostitutas é, portanto, coisa do progresso, e considerar que aqueles que lucram com a exploração sexual são criminosos é conservadorismo. E, finalmente, importa referir a distância imensa a que estes juízes consideram estar a prostituição por coacção, que deverá continuar a ser crime, e aquela que é facilitada a alguém por livre e espontânea vontade. Mas não será a liberdade de escolha daquelas que se prostituem inseparável, com ou sem uma arma apontada à cabeça, das condicionantes económicas e sociais que determinam os seus percursos? O caso da Ana e das «suas meninas» «Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio» é o título da petição, que foi entregue para ser debatida na Assembleia da República e que, a par das entrevistas dadas pela promotora e proxeneta Ana Loureiro, constituem um caso paradigmático desta campanha amplamente difundida pelo Correio da Manhã e pela TVI. Todas as suas afirmações deixam claro que é o desespero que leva estas mulheres à prostituição. «Entraram nesta vida porque não tinham como sustentar os filhos», diz Ana Loureiro, e acrescenta que estas «não pedem o rendimento mínimo porque correm um risco, uma vez que os filhos são sinalizados pelo CPCJ». Mas podíamos ficar-nos pelo exemplo da própria, ao afirmar que, se não tivesse perdido o emprego no Infarmed, «talvez nunca tivesse entrado na prostituição». Outro dos casos apresentado tem contornos semelhantes: «Eu vim para a prostituição devido ao ordenado mínimo do País. É impossível, com 620 euros, pagar um quarto, a alimentação e o resto das despesas»; ou ainda: «Eu vim cá parar porque fui vítima de violência doméstica, sou mãe solteira, bati a todas as portas e ninguém me abriu.» Em Portugal, a prostituição não é crime. Porém, a alteração que decorreria da sua regulamentação como profissão conduziria à descriminalização do lenocínio e, consequentemente, à descriminalização da actividade dos proxenetas, que passariam a «empresários do sexo», objectivo que é avançado com a maior das clarezas pela promotora da petição. Com a legalização do lenocínio, mais do que os direitos das mulheres, são os dos que gravitam em torno deste negócio que ficam salvaguardados. A prostituição é mais uma forma de exploração e de violência exercida essencialmente sobre as mulheres e é expressão de desigualdades sociais, que são indissociáveis das injustiças sociais que o actual quadro socioeconómico encerra, indissociável da pobreza, da exclusão social, do desemprego, da precariedade laboral, da falta de protecção social, da negação de direitos. A prostituição é então exemplo acabado de duas das mais tenebrosas características do capitalismo: a desigualdade e a mercantilização – neste caso, do corpo da mulher – que pode ser comprado e usado. E o que dizer em relação ao alegado «empoderamento» das ditas «trabalhadoras do sexo» que resultará da legalização? Será uma trabalhadora com direitos e uma mulher emancipada o que o cliente está à procura? Não será isso incompatível com a linguagem utilizada nas ofertas nos sites e jornais «reserve uma rapariga agora» ou «menina para sua satisfação à distância de um clique»? A discussão política em torno da dita legalização da prostituição em Portugal assume vários problemas. O primeiro é precisamente ser levada a cabo por muitos que não colocam como central a necessidade de construir uma alternativa a este sistema económico e às políticas que levam muitas mulheres a esta situação. Outro dos problemas é ser uma discussão que, tentando apelar ao sentimento de justiça das pessoas para com uma necessidade de resolver a situação degradante em que vivem estas mulheres, pretender na verdade legalizar a actividade dos proxenetas. O que precisamos não é de empresários que «facultem» um apartamento limpo numa zona segura para «proteger» estas mulheres. Nem que estas sejam obrigadas a exames médicos regulares para manter a sua «actividade». Nem que descontem para a Segurança Social para ter acesso a uma baixa médica. O que precisamos é de direitos para quem trabalha, de igualdade de oportunidades e de uma justa distribuição da riqueza, para que mais nenhuma mulher seja forçada a prostituir-se para sobreviver. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Pois bem. Lucrar não é crime, é certo. E vivemos numa sociedade em que é legal fazer parte da minoria que lucra valores extraordinários explorando a força de trabalho da maioria. Mas neste quadro jurídico que temos, não é muito difícil de concordar que não se trata de caminhar no sentido do progresso pretender-se legalizar a actividade daqueles que lucram com a exploração sexual de pessoas em situações de extrema vulnerabilidade económica, sujeitas a grandes violências quotidianas, e sem alternativas credíveis de integração social. Argumentam, ainda, que a legalização seria sempre da actividade desenvolvida sem coacção. Mas onde está a linha que define o que é coacção? O sequestro dos documentos, as ameaças, a violência física e psicológica, o risco de fome e de pobreza? Importa não esquecer que não é crime uma pessoa prostituir-se. E não há dúvida que a liberdade sexual e a emancipação das mulheres em relação a uma visão misógina da sexualidade deve ser um objectivo de uma sociedade progressista e democrática. Mas quem se prostitui, regra geral, não o faz por uma questão de «empoderamento». E muitas são, pelo contrário, empurradas para situações degradantes, que não se resolvem com a legalização daqueles que lucram com a manutenção dessa realidade. Essa legalização só poderá contribuir para normalizar mais uma forma de exploração, mercantilizar ainda mais o corpo das mulheres e – paralelamente– a sua capacidade reprodutiva, como acontece com o mercado das barrigas de aluguer. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Lucrar não é crime, dizem os juízes
Editorial|
Legalizar os patrões das prostitutas
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O montante total dos lucros ilegais provenientes do trabalho forçado aumentou 64 mil milhões de dólares (37%) desde 2014: uma década depois, em 2024, está nos 236 mil milhões de dólares. A OIT considera que este «forte» aumento foi alimentado «pelo crescimento do número de pessoas forçadas a trabalhar e pelos lucros mais elevados gerados pela exploração das vítimas».
O total anual dos lucros ilegais do trabalho forçado é mais elevado na Europa e na Ásia Central (num total de 84 mil milhões de dólares), seguido da Ásia e Pacífico (62 mil milhões), das Américas (52 mil milhões), de África (20 mil milhões) e dos estados Árabes (18 mil milhões). «A exploração sexual comercial forçada» é responsável por grande parte destes lucros: mais de dois terços (73%) do total destes lucros ilegais, «apesar de representar apenas 27% do número total de vítimas do trabalho forçado no sector privado».
Para além da exploração sexual, o sector com maiores lucros ilegais anuais provenientes do trabalho forçado é a indústria, com 35 mil milhões de dólares, seguido pelos serviços (20,8 mil milhões), agricultura (5 mil milhões) e pelo trabalho doméstico (2,6 mil milhões). Estes lucros ilegais correspondem «aos salários que, por direito, pertencem às trabalhadoras e aos trabalhadores, mas que, em vez disso, ficam nas mãos dos seus exploradores, em resultado das suas práticas coercivas».
Para além do reforço dos mecanismos legais para travar o fluxo dos lucros ilegais e a penalização de quem os movimenta, a OIT defende que o trabalho forçado «não pode ser eliminado apenas através de medidas de aplicação da lei, as acções de aplicação devem fazer parte de uma abordagem global que dê prioridade à resolução das causas profundas e à protecção das vítimas».
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