Andar por Lisboa é descobrir um recanto novo a cada esquina. Cada lugar tem uma história, já viu de tudo e ainda espera ver mais. A cidade fez-se por quem a toma para si. Para além dos edifícios, da agitação e da luz, Lisboa carrega consigo a identidade construída pelas gerações que nela deambulam e criam memórias e tradições. Não é estática porque as gentes não o são. Confluem nela todos elementos da sociedade e, por isso mesmo, todas as tensões e transformações.
Tratar a cidade por tu passa por não dizer o «i» no seu nome - é dizer «Lesboa». Mas não só. É dizer «Alcântra», «Caisodré» ou «Campgrande». Todos estes elementos linguísticos são parte da construção colectiva de uma identidade cultural que se edificou nos espaços de convívio pelas massas laboriosas. Não pelos arautos dos palacetes que cunham determinadas zonas como «nobres».
Há uma dialética constante: são essas massas que fazem a cidade, mas também a cidade que faz as gentes. É dentro desta correlação, e é a partir dela também, que todos olhamos para o que nos rodeia e começamos a ver que a evolução, que é sempre uma constante, está a acontecer com a expulsão de quem é a cidade. Os pequenos elementos que caracterizavam Lisboa vão desaparecendo porque quem nela vive é arredado da mesma.
Este fenómeno não se sente somente na alteração da composição social da cidade, mas também na reconfiguração do espaço. Os cafés onde se bebiam as bicas com o pastel de nata são agora sítios onde se pode comer um bagel com abacate como brunch. O restaurante onde se comia um prato do dia a menos de 10 euros é agora um sítio com fila que aparece na Time Out. O que era deixou de ser, as pessoas que iam parece que deixaram de existir.
Todas estas linhas parecem escritas por alguém amargurado, um velho do Restelo que encara a mudança com reticências, mas não é o caso. É escrito por alguém que vê sítios que gosta a desaparecer e progressivamente sente-se a mais no meio de uma qualquer avenida.
A história da Academia Recreio Artístico é um desses exemplos de sítios que estão a desaparecer. Ninguém se refere a esta associação pelo seu nome por extenso. Para quem a frequenta é a ARA. Localizada na rua dos Fanqueiros, no prédio número 286, em plena baixa pombalina, a ARA é, talvez, um dos exemplos mais ilustrativos do que é Lisboa e do que se tornará.
A primeira vez que ouvi falar da ARA foi por intermédio de um amigo. Falou-me de uma associação «porreira» que tinha descoberto, que estava com a ameaça despejo e que eu um dia teria que lá ir. «É a associação mais antiga de Lisboa», disse-me. Foi na busca por um sítio para ir ao final do dia, há cerca de dois anos, que procurei a ARA. Não dei de caras imediatamente com a Associação. Fiz a rua dos Fanqueiros duas vezes a pé até que me lembrei que me tinham dito que a entrada era diferente, que era um segundo andar e teria que entrar por uma pizzaria.
Lembro-me bem da primeira vez que entrei e passei pela primeira porta de vidro que tem o símbolo da ARA. Ao ver as paredes numa tonalidade de amarelo que deixam no ar a dúvida se é da cor da tinta ou do fumo de tabaco acumulado durante anos que se foi incrustando; ao ver uma mesa de bilhar tapada por um pano verde escuro; ao ver os tectos trabalhados; ao ver a decoração antiga; ou ao ver pedaços do espaço com madeira envernizada, senti-me a entrar num sítio que não era deste mundo contemporâneo, sem adornos, padronizado e saído do IKEA.
Ao entrar na ARA senti que estava a entrar num sítio onde a carbonária conspirara para derrubar a monarquia. A sala de convívio não tem janelas para a rua e, talvez por todos estes elementos, senti que tinha voltado atrás no tempo e que o mesmo tinha parado nele. Senti-me, em parte, transposto para 1885, ano de fundação da ARA.
Ao dirigir-me ao balcão para pedir algo para tomar foi a primeira vez que falei com a dona Maria. Naturalmente que a ARA tem corpos sociais, uma direcção, um presidente, vogais e tudo o que tem que ter, mas a dona Maria acaba por ser a cara da associação. Trabalha no bar e é ela a primeira pessoa com quem toda a gente fala em primeiro lugar. Nesse dia a ARA estava praticamente sem ninguém e eu, timidamente, perguntei se a associação ainda estava aberta. Lembro-me da imediata simpatia acolhedora da dona Maria que fez questão de me meter, a mim e à pessoa que me acompanhava, logo à vontade.
«E então o que vai ser?», perguntou ela. Esta é daquelas perguntas tipicamente portuguesas que não se ouve em mais lado algum, para além de ser de difícil tradução e difícil explicação na medida em que o «ser» não corresponde ao significado de existência ou pertença, mas sim ao que se deseja consumir. Ao pedir, a dona Maria fez logo questão de dizer para me sentar. Lembro-me de começar a falar com ela e de alguma forma introduzir o tema do despejo que de pouco sabia para além do rumor.
A dona Maria disse-me logo que era verdade, que havia essa ameaça. Só pouco tempo depois é que descobri que o prédio onde a ARA reside tinha sido comprado e que o novo proprietário não queria renovar o contrato de arrendamento. Na óptica mercantilista, o presumível especulador está a ter olho para o negócio. Afinal de contas o prédio encontra-se na baixa e deve valer uns bons milhões. Para os abutres do imobiliário a história é uma nota de rodapé e a importância cultural, desportiva e recreativa dos espaços como as associações apenas um verbo de encher.
Lembro-me, até hoje, do que disse a dona Maria: «não sei por que razão querem fechar isto. Os turistas se vêm para cá querem é ver as coisas típicas. Eles acham é piada a isto». Esta reflexão ficou-me na memória porque acaba por caracterizar bem a actual contradição que existe. Foi a Lisboa comum que conquistou o turismo, mas é esse turismo que agora está a conquistar Lisboa.
Continuei a ir à ARA. Em parte sentia que lá ir era dar o meu contributo a uma associação que luta para continuar a existir. Tal como eu, muitos outros passaram a lá ir com regularidade e com o mesmo propósito. A história da ARA passou de boca em boca e, tal como me disse a dona Maria quando falei com ela esta semana, os sócios e clientes deixaram de ser só «velhotes» e começaram a ser «jovens» também. A onda de solidariedade quebrou barreiras etárias e a ARA passou a ser local de paragem de vários jovens ao final do dia.
Este fenómeno levou a uma renovação também dos corpos sociais e à dinamização da actividade da ARA. Recentemente realizou-se na associação um evento a assinalar o Dia Internacional da Mulher, um debate com a Frente Anti-Racista, uma reunião aberta com várias estruturas do movimento associativo popular juntamente com o Porta a Porta em torno do direito à cidade, e assinalaram-se os 50 anos do 25 de Abril. No quadro da sua própria luta, a ARA solidarizou-se com todas as lutas e abriu as suas portas a todos os que querem lutar.
Toda esta dinâmica criada em torno da ARA levou-me novamente a falar com a dona Maria. Descobri que trabalha na ARA há quatro anos, que conheceu a associação graças ao seu irmão e que antes trabalhava numa outra associação chamada Unidos da Glória que ficava perto da Praça da Alegria.
Sobre os muitos jovens que param na associação, a dona Maria esboça sempre um sorriso. Começou por me dizer que «os primeiros a aparecer aqui foram o Luís, o Tomé, o Manel e eu puxei por eles para serem sócios» e que depois começaram a aparecer mais. «Isto é um espaço seguro para estarem. Vêm para aqui, estão, conversam, jogam snooker e ficam aqui entretidos. É melhor que estarem pela rua», complementou a dona Maria. A verdade é que em parte, grande parte dos jovens que vai à ARA é porque se sente bem no espaço e a dona Maria sabe disso. Disse-me que «quando a malta está aqui eu brinco, eu falo, eu junto-me ao pessoal. Não sei, pelo menos o pessoal diz que eu faço parte disto».
Acerca da cidade que está em transformação, a dona Maria diz que sobre isso nada sabe, mas que sabe sobre o futuro próximo da ARA, que vêm aí as marchas populares, os Santos Populares, que a marcha da Baixa irá para lá no dia de Santo António e que as portas da associação vão fechar às 10 horas da manhã.
A vida da dona Maria acaba por já estar ligada à ARA. Até falar mais a fundo com ela não sabia, mas fiquei a saber que a sua filha casou-se na ARA, que foi a própria a alugar o salão para dar a festa e realizar o almoço do casamento, e até já lá fez o aniversário da neta. «É assim, esta é como se fosse a minha casa. A minha casa, mesmo minha casa, é como se fosse só para eu dormir. Passo o tempo todo aqui. Quando vejo que alguma coisa pode ser melhorado ou arranjado, digo-o logo à direcção», contou-me. Entretanto continuámos a falar, mas se eu já tinha alguma ideia da importância da dona Maria na ARA, confirmei-a.
Ninguém saberá qual é o futuro da ARA, mas o mais certo é que todos os que a frequentam vão sempre lembrar-se do espaço único que acolhe todos os comuns numa cidade cada vez mais elitizada. Quem vai à ARA irá lembrar-se de todos os convívios que teve até às duas da manhã, das médias que partilhou com os amigos, dos derbys que lá viu, dos jogos de bilhar que ganhou ou perdeu, das conversas mais ou menos profundas e mais ou menos engraçadas que teve, das memórias que criou, das vidas que viveu e que se renovaram a cada momento por lá.
A ARA é o espelho da Lisboa que resiste mesmo quando a querem vergar. A Academia Recreio Artístico será sempre um capítulo da história de um associativismo que resiste e luta para continuar a existir.
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