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O caso BES, carcaças de pão e o apocalipse neoliberal

É preciso reafirmar que a injustiça do sistema em que vivemos não está na corrupção, esta não é mais que um prolongamento por outros meios da desigualdade total das nossas sociedades.

CréditosTiago Petinga / Agência Lusa

Há um ar de fim de um determinado tempo quando vemos as imagens do caso BES. É a parte visível do apodrecimento de um sistema em que o capitalismo financeiro dita as regras muitas vezes sem sequer cumprir as leis do Estado que domina.

A ideia de um caso pretende muitas vezes reduzir um sistema a uma anomalia. Quando o problema está no sistema, a anomalia é – muito mais que uma violação à lei penal – uma reafirmação da correlação de forças política e económica que permite tudo isto.

Esse momento em que a festa acabou antecipa grandes tempestades e faz lembrar, com as devidas distâncias, os tempos contados pelo filme Stavisky, de Alain Resnais, com argumento de Jorge Semprún. Nele, o obreiro do esquecimento não é uma doença degenerativa, mas uma bala. Estamos perante um exercício cinematográfico que antecipa a dissolução do regime capitalista parlamentar e que prepara o advento do fascismo.

O «Caso Stavisky» insere-se na crise política e económica francesa que ocorreu em Janeiro de 1934. O escândalo simboliza a ruptura de um regime instável e suspeito de corrupção e contribuiu para a queda do segundo governo do primeiro-ministro do Partido Radical, de centro-esquerda, Camille Chautemps, e para a eclosão de motins anti-parlamentares a 6 de Fevereiro de 1934.

Nessa data, a extrema-direita anti-parlamentar manifesta-se em Paris, o motim é reprimido fazendo dezenas de mortos e milhares de feridos e a queda do governo Édouard Daladier, também do Partido Radical.

«Quando o problema está no sistema, a anomalia é – muito mais que uma violação à lei penal – uma reafirmação da correlação de forças política e económica que permite tudo isto.»

A explosão de violência, conhecida como o «Motim dos Veteranos», foi uma manifestação de rua anti-parlamentarista em Paris, organizada por vários sectores de extrema-direita, que culminou na tomada da Place de la Concorde, perto do edifício da Assembleia Nacional francesa.

Dois anos antes, a 23 de Dezembro de 1932, o director do Crédit Municipal de Bayonne é preso por fraude e por ter posto em circulação obrigações ao portador falsas, no valor de 261 milhões de francos. A investigação revela que Tissier era apenas o executor do fundador do Crédit Communal, Serge Alexandre Stavisky, que tinha organizado a fraude (que lhe permitiu desviar mais de 200 milhões de francos) através de um esquema Ponzi.

A investigação mostrou a cumplicidade de Stavisky com muitos poderosos que desejavam o seu silêncio na queda. No filme de Resnais, Belmondo que faz o papel principal, ameaça revelar tudo:

«Amanhã de manhã, vou dar uma conferência de imprensa. Vou rebentar com isto tudo».

A polícia encontrou Stavisky agonizante numa moradia em Chamonix, a 8 de Janeiro de 1934. Um francês titulou sobre o acontecido: «Stavisky suicida-se com uma bala disparada a três metros de distância. É isto que significa ter um braço longo».

É preciso reafirmar que a injustiça do sistema em que vivemos não está na corrupção, esta não é mais do que um prolongamento por outros meios da desigualdade total das nossas sociedades.

A esse respeito, o filósofo estado-unidense Michael J. Sandel analisou as várias formas de conseguir entrar nas universidades de elite norte-americanas, que são instrumentos fundamentais da reprodução das elites políticas do país, permitindo aos mais ricos manterem o monopólio do poder na sociedade.

«Em Março de 2019, enquanto os finalistas do ensino secundário esperavam os resultados das suas candidaturas ao ensino superior, os procuradores federais fizeram um anúncio surpreendente. Acusavam formalmente 33 pais ricos de se envolverem num elaborado esquema de fraude para que os seus filhos fossem admitidos em universidades de elite como Yale, Stanford, Georgetown e a Universidade da Carolina do Sul», conta o filósofo.

Nesse esquema estava envolvido o consultor de admissões universitárias William Singer, que usava vários expedientes, incluindo fornecer falsas credenciais desportivas aos candidatos, de modo a entrarem nas bolsas para atletas nessas universidades de elite. Singer criou falsas credenciais desportivas colocando o rosto dos candidatos em fotografias de verdadeiros atletas em acção.

No total, Singer arrecadou mais de 25 milhões de dólares ao longo dos oito anos que durou o seu esquema fraudulento de acesso às universidades de elite.

Ao anunciar a acusação, o procurador federal explicou o que está em causa: «Não pode haver um sistema separado de acesso à universidade para ricos».

Mas há muito que o dinheiro pagava o acesso às universidades. George W. Bush e os filhos de Trump acederam a universidades de elite em troca de generosas doações. Trump teria doado mais de 1,5 milhões de dólares à Escola Wharton, da Universidade da Pensilvânia, na altura em que os seus filhos Donald Jr. e Ivanka frequentavam essa escola de negócios.

«Singer, o mestre do embuste das admissões universitárias, reconheceu que uma grande doação pode, por vezes, assegurar que um candidato pouco qualificado seja admitido pela "porta das traseiras". Mas ele tinha a sua própria técnica, à qual chamava "porta lateral", que via como uma entrada alternativa de baixo custo. Dizia aos seus clientes que a abordagem convencional da "porta das traseiras" era "dez vezes mais cara" do que o seu sistema de fraude, e que era menos segura», afirmou Sandel.

«A falência de grande parte do sistema financeiro português e os mais de 25 mil milhões de euros que os contribuintes tiveram de meter para salvar os bancos não são devido, sobretudo, aos desvios feitos pelos seus gestores, mas à lógica intrínseca do sistema.»

O discurso tradicional garante que, ao contrário das entradas pela «porta das traseiras» e «porta lateral», a entrada dos alunos que concorrem às vagas existentes, a «porta da frente», seriam devidas ao mérito. Na realidade, as entradas devido às classificações nos testes SAT correspondem aos rendimentos familiares: quanto mais rica é uma família do estudante, mais alta é a nota que poderá obter.

Tendo em conta estes factos, não é surpreendente, como nota Sandel, que mais de dois terços dos estudantes das universidades de elite da Ivy League provenham dos 20% mais ricos da população. Princeton e Yale têm mais estudantes, 1%, da população mais rica do que dos 60% da população mais pobre.

A falência de grande parte do sistema financeiro português e os mais de 25 mil milhões de euros que os contribuintes tiveram de meter para salvar os bancos não são devido, sobretudo, aos desvios feitos pelos seus gestores, mas à lógica intrínseca do sistema.

Em plena crise dos bancos de todo o mundo, os seus gestores receberam prémios de desempenho com bancos a fechar. Os estados tiveram de encher de dinheiro os buracos financeiros, mostrando que o neoliberalismo é uma espécie de socialismo para capitalistas financeiros: quando há lucros os capitalistas recebem dividendos, quando há prejuízos os contribuintes pagam.

O capitalismo contemporâneo é um sistema em que a riqueza produzida por quem trabalha é cada vez mais repartida pelos pontos distribuídos no jogo da especulação financeira. Um sistema em que os accionistas são recompensados por fecharem fábricas, investirem em casas para ficarem vazias e em NFT, sem nenhum valor de uso, certificados por blockchain.

Essa forma de ilusionismo ideológico reforça-se na desvalorização do trabalho e na criação da ideia de que são os accionistas que produzem a riqueza. É verdade, como se viu na crise do subprime, que a especulação sem limites pode produzir crises económicas e financeiras, mas não produz uma única carcaça de pão.

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