Ora vamos lá outra vez. Porque chamamos comentador a uma pessoa que não comenta mas transporta a realidade observada para o seu campo de ideias e a derrete até que essa liga se misture com outras tantas que em si carrega? Podíamos chamar-lhe um efabulador, ficcionista, talvez poeta se daí saísse beleza alguma para se admirar. Admirei-me a observar Miguel Morgado a chamar pelo futebol para as suas notas ao debate de ontem, Paulo Raimundo zero, Rui Tavares um, como se afinal o que nos interessasse nesta coisa de entender o jogo – o futebolístico e o político – fosse apenas saber se a bola entra ou não, o tal golo que elas contam é lá dentro, admirei-me, enfim, porque há quem utilize a inteligência que tem para ser inteligente e há quem faça desse uso uma exibição de canibalismo da razão, como se nos tentasse comer com o seu subterfúgio, mas exibindo-se apenas a um nível onde a inteligência, afinal, se calhar não o é.
Oferece um golo, tirar o jogo
No fundo, o objetivo de Miguel Morgado e de outros comentadores que utilizam a mesma estratégia de redução das ideias dos outros ao ridículo próprio é exatamente esse – parece que está a conceder um golo, a proporcionar uma vitória, mas não, está sobretudo a tentar tirar-nos do jogo, da discussão, do eventual debate. Falamos de gente que não exerce o mínimo esforço para compreender o outro porque se vê num lugar de fala que lhe confere superioridade em relação aos demais. Aquelas pessoas que vivem demasiado convencidas da razão e originalidade do seu pensamento, que não exercitam a dúvida, apenas a certeza, procurando destruir tudo o que lhe passa pela frente.
«Para se perceber que afinal o grande projeto passa por não deixar que se escute quem o contraria, não vá ficar claro para toda a gente que não nos tem nada de consistente para dizer.»
Forma uma irmandade castiça com os treinadores de futebol que uma vez queimados os seus créditos para liderarem um projeto se ocupam a definir como fariam eles na pele daqueles que lhes ocupam os lugares.
O grande projeto político de Miguel Morgado falhou. A grande direita que procurou unir perdeu-se na falta de um líder executivo forte para a área do PSD, no desalinhar das diversas tendências do CDS para restar apenas um plano B do Montenegrismo e na total desobediência à ideia de projeto para o país que o Chega insiste ser. Uma vez falhado no campo da ação, explora a sua veia destruidora no comentário, apenas para se perceber que afinal o grande projeto passa por não deixar que se escute quem o contraria, não vá ficar claro para toda a gente que não nos tem nada de consistente para dizer.
Cheiro a velho
Vivemos num tempo onde se pode pegar num telemóvel, gravar uma mensagem e distribuí-la num canal que transforma idiotas em figuras apenas porque nos conferem provas de falar sem utilizar a capacidade do raciocínio. Um tempo onde a novidade é a repetição de falsas tretas de uma antiguidade onde ninguém quer voltar, mas de onde insistem não nos deixar sair. Quando um useiro infeliz pretende ditar regras sobre os comportamentos das namoradas, percebemos porque é que a luta das mulheres nunca deixou de ser luta. Os direitos não foram conquistados. A tensão sempre se manteve. O pai que castiga, a mãe que teme, as amigas que se encolhem, os amigos que não percebem, os vizinhos, os desconhecidos, as sombras, todas estão aí bem resumidas na simplista definição do useiro infeliz que nos relembra do caminho que não fizemos.
«O susto perante a revelação, o receio da perda do lugar, a expressão de noções curtas de moralismos sobre a forma como se pode entender o poderoso fenómeno do desporto.»
Esse cheiro a velho está mesmo em todo o lado, porque na agenda cíclica da época desportiva o que nos é proporcionado é um contínuo choque com o poder da repetição. Ao mesmo tempo que a luta das mulheres nunca terminou, no futebol a luta por um entendimento mais profundo do fenómeno do jogo continua a empancar nas falas que insistem em retrair-nos o fenómeno para uma conversa entre meninos da escola básica. O susto perante a revelação, o receio da perda do lugar, a expressão de noções curtas de moralismos sobre a forma como se pode entender o poderoso fenómeno do desporto. Não nos serve de muito lavar a casaca uma e outra vez para tirar o cheiro, se sempre acabamos por voltar aos mesmos lugares, pequeninos, encolhidos, sem elevar a voz para destrinçar uma nova direção.
A eterna repetição
Chegaste a este ponto do texto e ainda te perguntas o que é que isto tem que ver com futebol. Está aqui tudo. Pelo jogo e pelas suas dinâmicas, os contextos da vida podem ser explicados e compreendidos de uma maneira mais clara. Imagina o comentador de futebol que fala de um jogo sem lhe olhar às regras com que se joga, mas perante as regras de um outro jogo que prefere. Imagina o choque que não gera a maneira como se tende a impor regras de comportamento entre iguais, elaborando diferentes classes de adeptos porque uns se sentem com o poder de determinar a forma de estar dos outros. Imagina que podemos compreender melhor aquilo que acontece à nossa volta se nos predispusermos a entender os lugares de onde saem estas pessoas, os objetivos que perseguem. Sem medo de me ficar a repetir eternamente, é esta relação do futebol com as coisas do mundo que me continua a interessar.
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