|Sérgio Dias Branco

Francisco, um Papa com rosto de irmão

Francisco foi um construtor de pontes, um promotor da união e do encontro, num momento histórico em que a polarização e a divisão assumem contornos destruidores.

O Papa Francisco chegou hoje a Portugal para participar na Jornada Mundial da Juventude. No seu primeiro discurso, o Sumo Pontífice fez questão de falar sobre a necessidade de acabar com «mortandades no mar e berços vazios», sobre a<br />falta de capacidade «e, muitas vezes, de vontade» dos decisores políticos de enfrentarem desafios como «as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias», e alertou ainda para as «derivas totalitaristas» que «usam e descartam» a vida humana. 
CréditosMiguel A. Lopes / Agência Lusa

Foi sob o signo de São Francisco de Assis que Jorge Mario Bergoglio inaugurou o seu pontificado ao escolher um novo nome: Francisco. O religioso italiano assumidamente menor abriu-se à escuta dos outros, do mundo, dos animais, e da natureza, e não falava apenas para os seus companheiros de fé. O Papa Francisco foi beber a esse radical amor fraternal, corporizado na atenção aos necessitados e à Terra como lar comum, e fez dele o centro da sua missão. A fraternidade é o antídoto para aquilo a que ele chamou a globalização da indiferença, que apaga, ignora, ou mesmo provoca o sofrimento alheio como se a pessoa que sofre não tivesse dignidade, como se não lhe fosse reconhecida a mesma humanidade. A demonização dos imigrantes é um caso flagrante desta lógica. Nascido de imigrantes italianos, criado num bairro operário de Buenos Aires, a condição de imigrante definiu a identidade de Francisco, particularmente atento aos dramas dos imigrantes e refugiados.

Na encíclica Fratelli Tutti (FT) sobre a fraternidade e a amizade social, publicada em 2020, Francisco reclamou, desde a primeira linha, a inspiração de São Francisco. Este documento fixou a sua defesa da dignidade de cada ser humano e a promoção da fraternidade como o sonho de «uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos» (FT 8). Foi com este espírito que fortaleceu o diálogo inter-religioso, que teve no encontro com o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em 2019, e no «Documento sobre a Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum», uma das mais consequentes páginas. A sua advocacia ecológica inclui sempre uma consciência social e transformadora, na medida em que o «urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar» (Laudato si’ 13).

Francisco foi um construtor de pontes, um promotor da união e do encontro, num momento histórico em que a polarização e a divisão assumem contornos destruidores. Procurou as periferias, onde estão os rostos de quem é facilmente descartado e esquecido. Levantou a voz contra o sofrimento humano provocado pela exploração económica, pela exclusão social, e pelos conflitos armados. No centro da sua visão humanista estava a exposição da fragilidade das coisas deste mundo e a denúncia da violência que as devasta – exposição e denúncia alimentadas pela esperança na construção de um outro mundo ao jeito de Jesus, movido pela compaixão e temperado pela ternura. O seu humanismo era concreto, chamava à acção, como se pode ler na sua última mensagem para o Dia Mundial da Paz, a 1 de Janeiro de 2025: «Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade.

«Procurou as periferias, onde estão os rostos de quem é facilmente descartado e esquecido. Levantou a voz contra o sofrimento humano provocado pela exploração económica, pela exclusão social, e pelos conflitos armados.»

 

Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são factores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.»

Falar assim expõe conflitos sociais e não os evita. O silêncio seria uma forma de cumplicidade perante uma realidade de desigualdades escandalosas que cortou laços fraternos e solidários. Perante estes conflitos sociais, Francisco propôs que a resposta é olhar para as suas causas e ousar curar o mundo. Ao reflectir sobre o perdão e a concórdia social, Francisco chamou a atenção para o facto de Jesus Cristo convocar os seus discípulos a serem fiéis à sua opção – e que isso tem custos. Tal «não convida a procurar conflitos, mas simplesmente a suportar o conflito inevitável» (FT 240). Assim: «Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa dignidade. Somos chamados a amar a todos, sem excepção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo correctamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano.» (FT 241). Estas palavras têm especial importância para os activistas sindicais e membros de organizações sociais e populares para não perderem de vista a sua missão de serviço intransigente aos mais fracos e indefesos, sem se deixarem corromper pelo ódio e pelo ressentimento nem desistirem da justiça e do bem comum.

A sua voz pregou muitas vezes quase sozinha na cena internacional. Falou para quem tivesse ouvidos, como quando afirmou, em Março de 2022, que a guerra «é fruto da velha lógica política de poder que continua a dominar a chamada geopolítica». Acrescentando: «A verdadeira resposta, no entanto, não são mais armas, mais sanções, mais alianças político-militares, mas sim um foco diferente, uma forma diferente de governar o mundo, agora globalizado, e de configurar as relações internacionais.» Deixou um apelo à cooperação internacional renovada e convicta, reconfigurando o multilateralismo de forma mais democrática e respeitando os direitos dos povos. Como disse na sua primeira mensagem para o Dia Mundial da Paz, a 1 de Janeiro de 2014: a fraternidade permite vencer a pobreza, ajuda a guardar e cultivar a natureza, e o fundamento e o caminho para a paz.

«Falou para quem tivesse ouvidos, como quando afirmou, em Março de 2022, que a guerra "é fruto da velha lógica política de poder que continua a dominar a chamada geopolítica".»

 

Disse Francisco na mensagem Urbi et Orbi, para a cidade de Roma e para o mundo, no dia de Natal de 2018: «Sem a "fraternidade" que Jesus Cristo nos concedeu, os nossos esforços por um mundo mais justo ficam sem fôlego, e mesmo os melhores projectos correm o risco de se tornar estruturas sem alma.» Por isso, desejava «votos de fraternidade». «Fraternidade entre pessoas de todas as nações e culturas. Fraternidade entre pessoas de ideias diferentes, mas capazes de se respeitar e ouvir umas às outras. Fraternidade entre pessoas de distintas religiões. Jesus veio revelar o rosto de Deus a todos aqueles que o procuram.» No fim da sua vida terrena, Francisco tem sido acompanhado por um coro de vozes que a ele se juntou, que se revê no seu exemplo e legado e que não o querem deixar cair no esquecimento. Ele mostrou-nos que as diferenças humanas não são um problema ou uma ameaça, mas uma riqueza.

A via que Francisco escolheu não foi amena e encontrou oposição, mais ou menos aberta, até dentro da própria Igreja Católica, nomeadamente sobre os seus gestos inclusivos de amor e compaixão pelas pessoas LGBT+ e divorciadas recasadas. Foi com o mesmo zelo que introduziu reformas no Vaticano, lidando com a corrupção e com a má gestão financeira, aumentando o número de mulheres em cargos de responsabilidade, e deixou um Colégio dos Cardeais que reflecte melhor a diversidade geográfica e cultural dentro da Igreja e a sua universalidade. Tratou de frente os abusos sexuais na Igreja, aproximando-se e apoiando as vítimas, e implementando novas medidas de responsabilização e uma política de tolerância zero. Deu passos largos na concretização do espírito do Concílio Vaticano II com a escuta e participação das leigas e dos leigos na vida e missão da Igreja. Não se trata de simples sementes lançadas para o futuro, mas de frutos que já se vêem, de raízes que ganharam profundidade. Estamos em pleno Jubileu da Esperança, inaugurado por Francisco no Natal de 2024. O caminho da esperança ancorado em Cristo e trilhado por Francisco, o Papa com rosto de irmão, há-de prosseguir.

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