Se a NATO tudo pode, dentro e fora das leis internacionais – como está ricamente documentado através da realidade actual e também das últimas décadas – o mais natural é que o seu secretário-geral seja um indivíduo arrogante e sem limites, comportamento próprio de quem usa o argumento da força contra a força dos argumentos.
Logo, se Portugal está dentro da NATO, mesmo que a opinião dos portugueses jamais tenha sido consultada quanto a essa situação, não poderemos admirar-nos de que o dito secretário-geral, na circunstância o norueguês Jens Stoltenberg, tenha o desplante de multiplicar exigências sobre o que o país deve ou não fazer. Para ele é um comportamento burocrático, insensível, banal; para isso lhe pagam os donos do mundo – e quem paga exige, não pede nem sugere.
O secretário-geral da NATO e as suas exigências a Portugal
Através da comunicação social ficou a saber-se que Stoltenberg terá renovado a exigência de que Portugal gaste dois por cento do seu PIB em «defesa e segurança», expressão que, no léxico da NATO, significa armar-se a níveis mais elevados para o que lhe vier a ser exigido no âmbito das ameaças, dos jogos de guerra e das matanças transnacionais que a organização promove e mantém com zelo sanguinário, embrulhado em hipocrisias «humanitárias».
«a contribuição actual de 1,32 por cento do PIB para o aparelho de guerra da NATO é superior à de muitos outros países da organização, entre eles grandes potências como a Alemanha, Itália e Espanha»
Portugal tem de cumprir essa meta, insistiu o secretário-geral, aproveitando agora o facto de a sua economia estar a crescer e as disponibilidades serem maiores para gastar nas centrais de compras da NATO. Não se esqueçam de que os comandantes operacionais da aliança já não podem ver os soldados portugueses manejar as velhinhas G3 nas «missões internacionais», além de haver sempre uns submarinos em saldo; e agora também um apetitoso lote de quatro ou cinco aviões KC 390, que podem até ser usados nos combates a incêndios, pela módica quantia de 400 milhões de euros.
Ao secretário-geral da NATO cabe exigir; por favor, não lhe peçam para fazer contas, tarefa que compete aos orçamentistas portugueses, desde que devidamente corrigidos pelos infalíveis fiscais de Bruxelas. Consta até em seu abono, ainda segundo a comunicação social, que o chefe executivo da NATO, num invulgar assomo de solidariedade, quis dar conhecimento da satisfação que sentiu ao saber da «solução» do problema do roubo de armas em Tancos, incidente que diz tê-lo incomodado apesar de não caber no âmbito da sua missão – o que muito terá sensibilizado círculos governamentais de Lisboa.
«quando a tragédia do terrorismo incendiário martirizou Portugal não consta que, por gentileza da NATO, tenha chegado sequer um simbólico balde de água»
A um dirigente com a missão de Stoltenberg concede-se até o direito de ser oportunista e um propagandista de grosseira sensibilidade quando vem lembrar que o respeito pelo «compromisso» de dois por cento do PIB para armas, guerras e morte é agora mais viável porque a economia portuguesa já cresce; no entanto, a exigência não deixou de ser exactamente a mesma quando Portugal se debatia na recessão, asfixiado pela troika e pelo governo de turno enquanto os portugueses eram trucidados por uma austeridade cruel, que ainda não se desvaneceu.
Também quando a tragédia do terrorismo incendiário martirizou Portugal não consta que, por gentileza da NATO, tenha chegado sequer um simbólico balde de água; pelo que não devemos esperar compreensão de Stoltenberg para com o hipotético argumento de ser muito mais prioritário, para Portugal, fazer sarar as chagas humanas e territoriais provocadas pelos fogos do que investir numa «defesa» que, quantas vezes, se transforma em operações agressivas e de risco para servir interesses alheios.
Posto isto, é fácil concluir que o secretário-geral da NATO representa, e bem, o seu papel.
O ministro que faltou aos portugueses
Para que a sua missão não atingisse em cheio, e como sempre, os interesses dos portugueses era importante que Jens Stoltenberg encontrasse pela frente, deste lado, alguém que lhe pusesse os limites que ele, por definição, não tem, não precisa de ter, não quer ter.
Alguém que lhe dissesse que a contribuição actual de 1,32 por cento do PIB para o aparelho de guerra da NATO é superior à de muitos outros países da organização, entre eles grandes potências como a Alemanha, Itália e Espanha. E que os 2150 milhões de euros da contribuição anual portuguesa, correspondentes a esses 1,32 por cento, excedem duas vezes e meia as verbas reservadas para a pesca, a agricultura e o esforço exigido para reflorestar o país e protegê-lo dos incêndios. Sem contar com as necessidades urgentes da saúde, da educação, da cultura, sobretudo depois de agravadas pelas imposições desumanas da troika e seus capatazes.
7 000 000 €
Custo diário da NATO a Portugal
Alguém que, num elementar exercício de dignidade, lembrasse o secretário-geral de que o país gasta já sete milhões de euros por dia com um aparelho de guerra que serve essencialmente interesses alheios, o que representa um encargo de 230 euros anuais para cada cidadão; e que se Portugal, por absurdo, cumprisse a exigência de dois por cento do PIB, passaria a suportar encargos obscenos de 3260 milhões anuais, nove milhões por dia e uma verba muito próxima dos 300 euros por cidadão.
Alguém que, invocando a prioridade das prioridades do Estado português – os interesses e a qualidade de vida dos seus cidadãos – comunicasse a Jens Stoltenberg que a verba correspondente a 1,32 por cento do PIB já representa muitos milhões de euros mal gastos num país que continua a não respeitar os compromissos que admite ter estabelecido com os seus idosos; um país que paga antecipadamente parcelas de uma dívida especulativa e incobrável que teimosamente se recusa a renegociar; um país que se furta também a estabelecer uma política fiscal que onere as mais-valias insultuosas resultantes de trabalho precário e de outras modalidades sem direitos, grande parte das quais transferidas para o eterno recato de paraísos fiscais como o Luxemburgo e a Holanda, por exemplo, que contribuem com ninharias para a NATO.
«[A contribuição de Portugal para a NATO excede] duas vezes e meia as verbas reservadas para a pesca, a agricultura e o esforço exigido para reflorestar o país e protegê-lo dos incêndios. Sem contar com as necessidades urgentes da saúde, da educação, da cultura»
Em suma, o secretário-geral da NATO deveria ter encontrado, do lado português, alguém que lhe explicasse o que acima ficou escrito, e outras coisas com a mesma relevância; e não alguém que lhe fez uma vénia enquanto dizia: «Portugal assumiu o compromisso de dois por cento com a defesa e segurança e vai cumpri-lo»; ou, «Portugal tem a intenção de reforçar o investimento e os gastos com a defesa»; ou ainda, «se a contribuição (dois por cento do PIB) não fosse viável Portugal não afirmava o seu compromisso».
Isto é, falou por Portugal alguém que recitou uma espécie de mea culpa nacional, em vez de impôr ao secretário-geral da NATO os limites que balizam a soberania de um país e do seu povo.
O ministro da Defesa e o seu «absurdo» duplo
Mais uma vez, e lamentavelmente, Portugal respondeu com subserviência à arrogância, acobardou-se perante exigências absurdas.
Recorre-se aqui a este termo – «absurdas» – por ser o mesmo que o ministro português da Defesa, Dr. Azeredo Lopes, usou há cerca de um ano para qualificar o valor de dois por cento do PIB como contribuição do país para a «defesa e a segurança». Razão pela qual, em alternativa, sugeriu «outras métricas» para avaliar as comparticipações de cada Estado membro da aliança.
vEJA A DIFERENÇA
ANTES: «Se falarmos em 2% [do Produto Interno Bruto] para Portugal é um absurdo se compararmos com outros países». 07/06/2017, TVI.
DEPOIS: «O compromisso que nós temos para com as metas que foram estabelecidas em 2014 mantém-se». Portugal tem que canalizar 2% do seu Produto Interno Bruto para o sector da Defesa até ao ano de 2024. Para Azeredo Lopes, «se não fosse viável, Portugal não afirmava o seu compromisso». 14/01/2018, Panorama.
O Dr. Azeredo Lopes é alguém que andou pelas áreas da comunicação social; por inerência, conhece – pelo menos tem a obrigação de conhecer – as atrocidades cometidas pela NATO no Afeganistão, na ex-Jugoslávia, na Líbia e em várias outras paragens, quantas vezes em colaboração estreita com bandos terroristas, chamem-se Al-Qaida ou Daesh ou UCK, como outrora se designaram Gládio. Por certo, tomou conhecimento de algumas das falsidades em que assentam agressões cometidas pela aliança, por exemplo a do uso de armas químicas pelas forças governamentais sírias, agora desmontada pelo próprio secretário norte-americano da Defesa, James Mattis. Razões mais do que suficientes para que os muitos milhões de euros arrancados dolorosamente aos portugueses não sejam usados para suportar tais actividades. E que também legitimam, perante tal cenário, o recurso ao qualificativo «absurdo».
Porém, lamentavelmente para Portugal e para os portugueses, o tempo que leva de labor governamental deteriorou as opiniões e influiu negativamente nas decisões e atitudes do ministro Dr. Azeredo Lopes. Não sendo provável, entretanto, que esse tempo tenha apagado de sua memória o conhecimento do que é, o que faz e quem a NATO representa; nada leva a crer, pois, que o ministro da Defesa em exercício ignore o nocivo resultado, para o país, das vénias feitas a um indivíduo como Jens Stoltenberg, secretário-geral da organização.
«Absurdo», como ele mesmo disse – quiçá noutra incarnação.
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