|Silly Season

Delírios de Verão

Em Aveiro querem destruir o Rossio, no centro mais centro da cidade, para fazer um parque subterrâneo. «Coimbra precisa é de um aeroporto internacional!». Fui apanhado de surpresa. Delírios de Verão.

Ruas e paredes de Coimbra, inscrições e frases, IV (Agosto de 2016)
CréditosFonte: Ephemera - biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira

Talvez a atracção pelos aeroportos venha da época de férias ou da juventude de uma geração em que viagens pelo ar eram ainda uma aventura.

Confesso que, nesses anos de iniciação, o ambiente semeado de ecrãs com destinos exóticos exercia em mim uma atracção que se foi perdendo, passando a uma espécie de rotina de quem espera um autocarro, com a arquitectura padronizada e os preços das free-shops num roubo.

Talvez tenha sido esse sabor nostálgico que levou o Presidente da Câmara de Coimbra a, na última campanha eleitoral, ter encontrado o mote mobilizador das hostes do PS deixando muitos cidadãos embasbacados: «Um aeroporto! Do que Coimbra precisa é de um aeroporto internacional!».

Também eu fui apanhado de surpresa. Tinha sido deputado da Assembleia Municipal e, durante os quatro anos do mandato, nunca ouvira o Presidente da Câmara ou qualquer membro do executivo ou da Assembleia Municipal expressar tão aérea ambição.

«Machado promete solução definitiva para o aeroporto em Setembro», titula agora o jornal As Beiras de 30 de Junho de 2018, acrescentando que o presidente da autarquia já estará «em posse dos estudos necessários para afirmar soluções para o aeroporto».

Ora quanto a essa coisa de «estudos» para um aeroporto internacional (quando há um no Porto a uma hora de auto-estrada ou de comboio, menos do que se demora a chegar a casa partindo do centro de algumas grandes cidades), o anúncio deixa-nos um amargo na boca.

Lembramo-nos da centenária linha férrea da Lousã com um milhão de passageiros por ano que, para ser modernizada, ficou sem carris e com um trajecto vazio, substituída por um trôpego sistema tipo «camionetas de Portugal» que se prolonga há mais de uma década, agarrada ao famoso projecto Metro Mondego que vinte anos depois e 140 milhões de euros distribuídos em estudos, mordomias e numa Baixa cheia de destroços, deu em nada.

Como diz um graffiti escrito no trajecto abandonado de carris: «Já metro nojo!».

Passou-se pois dos milhões dos estudos do Metro Mondego para os de um aeroporto internacional. A ambição levantou voo deixando apeadas as multidões revoltadas do Ramal da Lousã.

Um novo «Bragaparques» em Aveiro?

Enquanto em Coimbra, que adoptei desde os tempos de estudante, as ideias estão no ar, em Aveiro, minha terra natal, os projectos mergulham no lodo.

O Rossio, o jardim de palmeiras e relva que faz a esquina do Canal Central no centro mais centro da cidade, está em vias de ser destruído.

O Presidente da Câmara (PSD) e compinchas de partido associados ao CDS pretendem aí fazer um parque de estacionamento subterrâneo coberto por uma grande e desolada laje, com um pequeno canto verde para disfarçar.

Nem o facto de haver parques de estacionamento nas proximidades com lugares, de ser caro e difícil construir em terreno lodoso e abaixo da cota permitida, de atrair mais automóveis para o centro, de destruir uma memória da cidade desenhada por excelentes arquitectos (Tércio Guimarães com a colaboração dos paisagistas Gonçalo Ribeiro Telles e Caldeira Cabral) e de abrir uma enorme cratera na mais bonita área da cidade, condicionando, durante anos, o usufruto do jardim, o comércio local e o crescimento do turismo, parecem afectar o chefe da autarquia que tem a fama de ser «teimoso», palavra elegante que, para muitos, caracteriza uma veia autocrática ligada a outros interesses.

Logo na apresentação inicial do projecto do Rossio, a «participação da população» não saiu da mudez por não terem sido permitidas perguntas ou sugestões. Nada. Come e cala.

Um novo «Bragaparques» em Aveiro? Estacionamento para um grande hotel de luxo a construir na outra margem?

Ao lado do Rossio e na sua continuidade, bordejando o Canal das Pirâmides até à antiga Lota com as suas ruínas descarnadas, tropeça-se numa enorme área votada ao abandono, já com um plano de urbanização do programa Polis aprovado, que requalificaria toda a zona, criando um novo canal e espaços de estacionamento à superfície. Porque não gastar os milhões do buraco que tanta polémica causa, na concretização dessa obra que rasga uma nova centralidade aumentando o espelho de água?

O projecto da direcção camarária embate de frente com os «cagaréus» preocupados com a sua cidade, que encheram, como não há memória (literalmente), a Assembleia Municipal onde se iria discutir o assunto, com direito a intervenções «do povo» antes do início dos trabalhos.

No icónico edifício da antiga Capitania, a sala fica a abarrotar. Todos os metros quadrados com gente de pé que transborda e invade os corredores e entradas. E cidadãos e associações cívicas tomam a palavra, somando argumentos cheios de sentido contra a aberrante escavação do Rossio, a que se junta um abaixo-assinado (que nem cheguei a assinar) e que logo conseguiu mais de duas mil assinaturas.

Começam os trabalhos. E como pontapé de saída, a solicitada antecipação do ponto da ordem do dia sobre o tema que mobilizara tanta gente – estranhamente colocado em segundo lugar –, é de imediato recusada pelo Presidente da Câmara que se sobrepõe à decisão soberana do órgão que o fiscaliza, mandando às urtigas o respeito pelos deputados e cidadãos ali presentes.

Para quem não conhecia ao vivo o ambiente do executivo municipal (como era o meu caso), o tom estava dado.

«até se pode discutir o tipo de laje ou gravilha da cobertura, mas quanto ao parque subterrâneo (…) podem pôr uma pitada sal desde que engulam a sopa toda»

Despachada a saudação à «inédita» participação cidadã e rebéu-béu-béu de pirolito, tenham paciência e bico calado que aqui quem manda é o rei e vocês, formiguinhas irritantes, ainda vão ter muito que amargar…

E foi assim que centenas de pessoas se mantiveram horas, de pé, a aguardar pelo segundo ponto da ordem de trabalhos, (o que tratava do Rossio), tendo chegado à meia-noite sem passar do primeiro, com longas intervenções do Presidente sobre outros assuntos, que apenas serviram para cansar as pernas dos presentes, quatro horas e meia depois do início.

Queriam ver como os partidos vão votar o buraco do Rossio? Ora aprendam para não serem abelhudos! Hoje a Assembleia fica por aqui. Se querem mais, voltem para a semana com a Madonna que talvez se arranje um lugar para ela estacionar!...

Daí a uma semana, depois de um piquenique colectivo no Rossio a marcar no local o significado do protesto, a sala da Capitania fica ainda mais apinhada. Uns chatos, estes aveirenses que não desistem.

Nova prova de resistência, com o Presidente a dizer que está tudo numa fase preliminar, que foi um concurso de ideias, que também quer mais relva e árvores à superfície, que até se pode discutir o tipo de laje ou gravilha da cobertura, mas quanto ao parque subterrâneo, nada a acrescentar. Podem pôr uma pitada sal desde que engulam a sopa toda.

E o PSD e CDS em maioria votam a destruição do Rossio e o novo Aveiroparque a escavar no lodo, contra o PCP, o BE e o resto do mundo, com o PS às voltas, tendo os seus vereadores votado a favor no executivo, votando contra (com uma excepção) na Assembleia Municipal.

A culminar a romaria da asneira, no site da Câmara surge um texto num português mal amanhado, onde o protesto dos cidadãos é atribuído a uma perversa «instrumentalização partidária» e o Presidente diz ao Jornal de Notícias que, se os cidadãos querem intervir, ponham comentários no facebook do município…

Aveiro enterra-se cada vez mais no lodo, Coimbra afunda-se cada vez mais no ar.

Lá como cá, há aeroportos que são pistas de automóveis

E se os parques de estacionamento são o negócio do século perturbando as mentes autárquicas, aeroportos internacionais cheios de futuros risonhos que acabam como o Ramal da Lousã, também não faltam.

Inaugurado há sete anos com pompa e circunstância, o aeroporto de Beja, cuja requalificação para uso civil custou 33 milhões de euros e mais uns trocos, serve hoje apenas de parque de estacionamento e de manutenção de algumas aeronaves.

Logo aqui ao lado, em Espanha, o aeroporto da Ciudad Real ou «Madrid-Sul», uma parceria pública-privada com um custo de mil e cem milhões de euros, inaugurado em 2009 e entregue às moscas desde 2012 depois de abandonado pelas low-cost, tendo apenas servido para filmagens de carros a acelerarem, acabou por ser vendido em 2016 por 56,2 milhões, cerca de vinte vezes menos o que custou, sonhando agora voar baixinho.

A verdade é que se um aeroporto não dá para grandes voos, ainda serve para automóveis sem ser preciso escavar no lodo.

Como noticia o Público de 29 de Junho de 2018, na Alemanha os Volkswagen aldrabados que se acumularam depois do escândalo do «Dieselgate» vão ser depositados no aeroporto de Berlim-Brandeburgo, que, com inauguração aprazada para 2011 e um custo previsto 2,5 mil milhões de euros, já vai em 6 mil milhões continuando encerrado depois de se ter constatado que não foi construído segundo o projecto, que o sistema contra incêndios não funciona, que há 90 quilómetros de cabos eléctricos com defeito, que o sistema de arrefecimento não é adequado e mais algumas miudezas do género. Mesmo os 750 ecrãs de partidas e chegadas (ligados todos estes anos só para o boneco), chegaram ao fim da sua vida útil sem que um avião tivesse descolado.

Esperemos que este exemplo de rigor alemão, para alguns mais próprio dos genes latinos, não seja seguido em Coimbra, e que o parque subterrâneo do Rossio, em Aveiro, não se encha de carros da Autoeuropa com gases a mais.

Roteiro compacto para a silly season nacional e internacional

E com esta silly season invulgarmente nublada, Costa passos-coelhiza-se voltando ao «não há dinheiro» do centrão e da troika, Constâncio despassos-coelhiza-se criticando a austeridade e a displicente ignorância do Banco Central Europeu de que foi até há pouco Vice-Presidente – «quem poderia adivinhar que a Grécia iria perder mais de 20% do PIB…?» – a chuva fez Portugal poupar no carvão o suficiente para o governo pagar o que deve por lei aos professores, Obama veio ao Porto ganhar meio de milhão para dizer umas tretas sobre o ambiente de que já ninguém se lembra, o SNS está cada vez mais pobre «porque não há dinheiro» e o Diário de Notícias escreve «recorde de facturação nos grupos privados de saúde», o National Health Service (NHS) inglês deixa de efectuar cirurgias «desnecessárias» – às varizes, às hemorróidas, ao túnel cárpico... – «porque não há dinheiro», subindo mais um degrau no abandalhamento iniciado com as «melhorias» de Tatcher e Blair, a RTP2 passa o filme The Spirit of 45 de Ken Loach que mostra como o «estado social» e a criação do NHS foi, na Inglaterra depauperada do pós-guerra, uma questão de vontade política e não de dinheiro, o tribunal decide que Jardim Gonçalves, ex-presidente dos buracos do BCP, deve continuar a receber mensalmente 167 mil euros de pensão com carro, chofer e segurança mas sem avião privado, o Estado dá um prémio de meio milhão à ex-equipe do BPN, alguns com processos judiciais na pele, a cimeira da UE decide criar uns «campos» para prender e seleccionar refugiados, talvez porque 40% dos governos da «Europa» já são fascistas ou próximos disso (e esperemos que não ponham nos portões «O trabalho liberta»1), na Grã-Bretanha o governo conservador de May desfaz-se sem que as duas páginas do Público dedicadas ao assunto falem uma única vez de Jeremy Corbyn, líder do «Labour» apagado dos media por ser insensatamente de esquerda, e muitos refugiados começam a regressar à Síria depois da vitória do «ditador» Assad de quem, segundo o «Ocidente», alegadamente fugiam.

Já agora, só mais um conselho (menos caro do que os do Obama): se está em férias, conte os dias que lhe faltam porque o PS juntou-se ao PSD e ao CDS para chumbar a reposição dos 25 dias de antes da troika. Por isso, quando vierem com conversas sobre «alianças», não se deixe levar por palavras ocas que disfarcem a falta de conteúdo e pense: «alianças para conseguir o quê?... Tá bem, tá bem! Só se forem para melhorar a vida da malta!…»

Boas férias!

  • 1. «Arbeit macht frei», «O trabalho liberta», foi a inscrição colocada no portão de acesso de vários campos de concentração e de extermínio nazis, entre eles os de Dachau e Auschwitz

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