«Os jovens não querem saber» é uma asserção comum que já quase todos devemos ter ouvido (ou dito) por aqui ou ali, tanto relativamente à política como sobre os problemas sociais que os rodeiam. Todavia, independentemente de verdadeira ou não, sendo a escola um dos pilares da educação dos jovens, as denúncias de coacção e represálias dentro destas, que têm surgido um pouco por todo o País, são um claro motivo de preocupação.
Uma realidade que se evidencia com maior gravidade no caso concreto do ensino básico e secundário, com especificidades que nos levam a deixar de lado neste trabalho o ensino superior.
Em Portugal, o 25 de Abril consagrou na Constituição da República um Estado de Direito, que contempla direitos, liberdades e garantias fundamentais como a liberdade de expressão (art.º 37), de reunião (art.º 45) e de associação (art.º 46).
Porém, por todo o País, em escolas básicas (EB) e escolas secundárias (ES), esses direitos, por nós assumidos como adquiridos, foram postos em causa sistematicamente ao longo dos últimos anos, num claro abuso de autoridade e de repressão sobre os mais novos, que tem passado pelos pingos da chuva nos meios de comunicação.
O AbrilAbril foi ao encontro desta realidade, confrontando estudantes com relatos de situações de abuso de autoridade e de repressão sobre os mais novos que, num clima de medo conjugado com o facto de serem muitas vezes vistos como inexperientes, os leva a sentirem-se marginalizados e a sua voz abafada.
Eleições livres, excepto dentro da escola
Os estudantes, conforme previsto na lei do associativismo juvenil, têm direito a ser representados pela sua associação de estudantes, estando previstas as formas de constituição e reconhecimento das mesmas, embora esse processo se revele caro, burocrático e moroso.
No entanto, para os estudantes, os principais problemas estão no atropelo ao funcionamento e ao exercício dos seus direitos de participação, com ingerência e desrespeito das escolas pelo cumprimento da lei, tal como a obrigatoriedade de serem consultados pelos órgãos de gestão das escolas em diversas matérias da vida interna, o direito de consultarem os seus associados em Reuniões Gerais de Alunos (RGA) ou o de realizarem os seus processos eleitorais de forma autónoma.
Num levantamento de casos e denúncias apresentado ao Conselho Consultivo da Juventude (CCJ) - órgão de consulta e de acompanhamento do Governo para a área, que reúne uma multitude de associações representantivas dos jovens - são muitos os casos de escolas onde as direcções interferem ilegalmente no processo eleitoral, apesar de tal só caber à Comissão Eleitoral.
Referindo alguns exemplos comuns, na ES Artur Gonçalves, em Torres Novas, a direcção determinou o processo eleitoral, a composição dos membros das listas e o conteúdo do programa dos alunos. Na ES Cunha Rivara, em Arraiolos, ocorreu o mesmo, além de que colocou «sucessivos entraves à actividade da associação de estudantes», enquanto na ES Padrão da Légua, em Matosinhos, houve estudantes «impedidos pela direcção de constarem das listas por terem mudado de curso».
Mais grave é, por exemplo, o caso da ES Sebastião da Gama, em Setúbal, com «dois anos consecutivos de ingerência da direcção no processo eleitoral dos estudantes, não reconhecendo a lei do associativismo, no que toca à convocatória de RGA com 10% de assinaturas dos estudantes, não tendo este ano cedido sala para a sua realização», obrigando a que a mesma fosse realizada na rua. Recusaram também a comissão eleitoral eleita e procuraram «impedir, por todas as vias, os prazos definidos para eleições, incluindo através de ameaças a estudantes».
Directores proíbem estudantes de reunir
A repressão afecta também o direito de reunião dos estudantes, que, em diversas ocasiões, tentaram realizar assembleias dentro da escola mas, em reacção, encontram forte resistência de vários directores, seja proibindo a sua realização, seja recusando a cedência de uma sala para o efeito.
Nos depoimentos prestados por vários estudantes, percebe-se que os actos de proibição e intimidação, em grande parte promovidos pela figura do director, variam de escola para escola. No actual modelo de gestão escolar, a maioria dos poderes está concentrada no director, o que, conjugado com o estatuto do aluno, abre caminho para abusos de autoridade. Das inúmeras denúncias, alguns exemplos:
- na ES Alves Redol, em Vila Franca de Xira, foi impedida a realização de uma RGA dentro da escola. Quando a mesma se deslocou para fora do recinto, o director, que mais tarde viria a ser destituído, chamou a polícia para impedir a sua realização;
- na ES Martins Sarmento, em Guimarães, a direcção impediu a realização de uma RGA e procurou intimidar os estudantes chamando-os à direcção e ameaçando-os;
- na ES Rainha D. Leonor, em Lisboa, a realização da RGA foi proibida, mesmo reunindo o número de assinaturas necessárias para a realização.
Estudantes castigados por denunciarem falta de condições
Por outro lado, em Novembro de 2017, o caso de uma aluna de Braga, a quem foi levantado um processo disciplinar por ter divulgado um vídeo a mostrar as más condições do refeitório da escola, trouxe para fora dos muros aquilo que é a prática de várias direcções pelo País.
Uma resposta já familiar para muitos estudantes, que explicam que o recurso aos regulamentos, entre os quais o Estatuto do Aluno, são frequentemente usados discricionariamente pelos directores como instrumentos de controlo e punição sobre os alunos, naquilo a que até chamam «Código Penal para estudantes».
Distribuições e manifestações de alunos reprimidas
Outro caso congénere sucedeu-se na ES Aurélia de Sousa, no Porto, no contexto de uma concentração de alunos à porta da escola, em protesto contra os exames nacionais, com cerca de 300 alunos. Em reacção, a direcção da escola coagiu os estudantes a deixarem o protesto e impediu outros de saírem para se lhes juntarem, alegando que «as leis [...] fora da escola não contam dentro da escola».
Em Leira, na ES Pinhal do Rei, vários elementos da direcção, professores e funcionários tentaram impedir os estudantes de distribuir documentos à porta da escola e de falar sobre os seus problemas, chegando mesmo a chamar a polícia.
Na ES José Gomes Ferreira, em Lisboa, a direcção retirou as faixas que os estudantes tinham colocado nas grades da escola e arrancou os cartazes que apelavam à manifestação dos estudantes, em Março.
Polícia cúmplice na repressão
Conforme já mencionado, em diversos ocasiões, a PSP foi chamada às escolas como instrumento de coacção sobre os estudantes, a pedido dos directores.
Aconteceu na ES do Restelo, onde uma manifestação de 500 estudantes à porta da escola teve o seu fim com a chegada de agentes da PSP, que desmobilizaram o protesto aos empurrões, coagindo alunos com exigência de identificação, apesar de não haver qualquer crime, e de entrega do contacto dos pais.
Na ES de Matias Aires, no Cacém, depois de a associação de estudantes ter pedido à direcção uma sala para uma RGA para discutir acções reivindicativas, que aquela negou, os alunos marcaram uma concentração à porta da escola no dia 22 de Março. No dia do protesto, os estudantes viram-se confrontados com uma carrinha de intervenção da PSP, num total de 14 agentes, tendo a direcção apelado a que os estudantes ou fossem para as aulas ou fossem para casa.
Já numa manifestação marcada para 21 de Março, no Agrupamento de Escolas de São João da Talha, em Lisboa, cerca de 50 estudantes assistiram à chegada da polícia momentos antes da concentração, com o objectivo de os desmobilizar e os obrigar a entrar na escola, alegando tratar-se de uma manifestação ilegal. Vários estudantes acabaram encostado às grades da escola.
Os exemplos aqui relatados por vários estudantes, relativos ao ano lectivo transacto, mostram uma realidade que urge alterar, com o empenho de professores, pais e alunos, e à qual o Ministério da Educação não pode ficar alheio. Trata-se do caminho de jovens no exercício dos seus direitos democráticos e não pode estar repleto de obstáculos com o intuito de afastá-los. Caso contrário, que tipo de jovens preparamos para o futuro?
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