Na agitada Lisboa, na Avenida Duque de Loulé, em frente ao Pingo Doce, o Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP/CGTP-IN) montou um acampamento. Duas tendas, uma mesa enorme, duas dezenas de cadeiras e activistas sindicais presentes numa acção de luta diferente.
Realizou-se aí uma vigília de 24 horas com o propósito de denunciar a proposta de revisão do Contrato Colectivo de Trabalho apresentado pela Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), a associação patronal que abrange o sector da grande distribuição.
Segundo o CESP, o patronato propõe novamente que os trabalhadores em topo de carreira fiquem a receber apenas 30 euros acima do Salário Mínimo Nacional; mantém a proposta de 150 horas de trabalho gratuito, com o banco de horas e quer alastrar a precariedade, com contratos de até 12 meses para campanhas e inventário, algo que é actividade diária das lojas.
Na vigília, chegámos ao contacto com Orlando Gonçalves, dirigente da Direcção Regional de Lisboa do CESP que nos explicou que, apesar da acção de luta se aplicar a todo o sector da grande distribuição, o Pingo Doce foi o supermercado escolhido porque o presidente da APED é do Pingo Doce. «Achámos simbólico fazer aqui uma acção de denúncia e uma vigília à porta do Pingo Doce», disse.
«Fazemos esta acção porque a proposta que veio para cima da mesa foi imposição do banco de horas e proposta de aumento para os trabalhadores em topo de carreira é de 850 euros. Isto é inaceitável: quando o Pingo Doce apresenta os lucros que apresenta, a Jerónimo Martins teve os lucros que teve, quando o CEO da empresa recebe 400 000 euros por mês e quando a proposta para quem trabalha, para quem gera os lucros da empresa, para quem cria riqueza é 850 euros», explicou Orlando Gonçalves.
Na vigília esteve também Célia Lopes, dirigente sindical do CESP responsável pela negociação do Contrato Colectivo de Trabalho com a APED. «Este processo negocial arrasta-se desde 2016. Desde Setembro desse ano, a associação patronal coloca em cima da mesa, como condição para a revisão do Contrato Colectivo de Trabalho, a introdução de um regime de banco de horas de 150 horas de trabalho gratuito», começou por nos explicar.
O banco de horas não é necessariamente novo, mas a dirigente sindical explicou a diferença deste que está a ser proposto, revelando que era «algo complexo». De acordo com a mesma, este mecanismo proposto «coloca o trabalhador a dever horas». «Os trabalhadores ficam devedores do patrão. O trabalhador pode apresentar-se a trabalhar e o patrão pode dizer que não precisa dele e que ele pode ir-se embora. Basicamente, quem trabalha fica a “dever horas” e quando o patrão precisar passa a poder chamar o trabalhador quando quiser. É a total desregulação da vida da pessoa».
«Para além disto, a associação patronal coloca como condição a possibilidade de contratarem a prazo durante 12 meses para campanhas e inventários, quando todos nós que somos clientes das empresas de distribuição, todas as semanas recebemos notícias, mensagens ou emails a dizer “saiba já a campanha desta semana”. Ou seja, campanhas é o que eles têm todas as semanas. Como é que querem contratar a prazo para uma situação de excepção que é um trabalho regular de todas as lojas?», explicou a Célia para ilustrar o passo de gigante que o patronato quer dar no sentido de intensificar a precariedade.
Este processo negocial está a ser um autêntico braço de ferro. Após quatro anos de negociação, tendo sido encerrado em 2020 sem acordo, o governo de então procurou mediar o impasse verificado com uma proposta que Célia Lopes assume que «até era pior que a proposta dos patrões». Quando o processo negocial foi retomado, as propostas patronais foram exactamente iguais.
«O Passos Coelho tentou acabar com os subsídios de férias e de Natal e passá-los a duodécimos. Se pensarmos que nessa altura, no governo de Passos Coelho, os trabalhadores de um supermercado em topo de uma carreira recebiam 140 a 150 euros acima e neste momento recebem 30 euros, ficamos a entender que nos 14 meses já se acabaram os subsídios de férias e de Natal. Ou seja, a desvalorização dos salários dos trabalhadores faz com que estes, atualmente, recebam em 12 meses aquilo que antes recebiam em 14». A dirigente sindical acabou por explicar cristalinamente que todo o impasse negocial serviu para que o patronato pudesse vir a aplicar aquilo que sempre quis impor.
Na conversa ainda houve tempo para a Célia Lopes nos explicar o funcionamento e a visão da APED. Segundo a dirigente sindical, desde a fundação da APED, a Jerónimo Martins e a Sonae partilham de forma rotativa a direcção da associação patronal, ficando cada representante do grande grupo económico dois anos cada com a presidência.
A mesma explica ainda que quando estas empresas são confrontadas com os lucros, «não têm reacção nenhuma» e que «ainda recentemente, quando confrontado, o presidente do Pingo Doce fez sair uma notícia a dizer que não pagava menos de 1100 euros aos trabalhadores e claro que alguns quando viram isso perguntaram se era preciso enviar o recibo de vencimento para receber o que está em falta».
Também Filipa Costa, presidente do CESP, esteve presente na acção. Apesar de, à data da conversa, ainda faltar um dia para acabar a semana de luta nas empresas de grande distribuição que foi de dia 20 a 27 de Junho, foi-nos dado um pré-balanço da acção. «Foi uma semana muito positiva. Iniciámos a semana no dia 20, no Porto, com uma marcha que passou por várias empresas de distribuição na qual fizemos uma denúncia sobre o Contrato Colectivo de Trabalho, os horários desregulados e os ataques à liberdade sindical», começou por contextualizar.
«Para além dos plenários que realizámos ao longo desta semana, os contactos em centenas e centenas de locais de trabalho também foi positivo. Amanhã temos uma greve e do que vem dos locais de trabalho é uma boa perspectiva de adesão, não quer dizer que venha tudo para Lisboa porque falamos de uma greve a nível nacional. Os trabalhadores estão muito descontentes, o que é normal dado os baixos salários num sector de milhões de lucro», considerou Filipa Costa.
Face a esta contradição que se verifica entre os baixos salários e os lucros extraordinários nas grandes empresas, a presidente do CESP diz que «é impossível não sentir descontentamento». «Quem recebe o salário mínimo, ou mesmo que leve para casa entre 900 a 1000 euros, percebe as dificuldades vividas… pagar a casa, pagar as contas e ver o salário do patrão. No Pingo Doce, enquanto o trabalhador para levar perto de 1000 euros tem que se esfolar e não tem tempo para viver, o patrão leva 400 000 euros», reitera Filipa Costa, no seguimento do que acabou por ser referido pelos restantes dirigentes sindicais com quem o AbrilAbril esteve à conversa.
A luta não ficou por aqui e, para além da greve que está a ocorrer hoje no sector da distribuição, em Lisboa realizaram-se duas manifestações em simultâneo: uma a começar em frente à loja do Continente da Rua Almirante Barroso e outra a começar em frente à loja do Mini Preço do Jardim Constantino. Ambas as manifestações acabaram em frente à loja do Pingo Doce da Avenida Duque de Ávila, local onde se realizou a vigília de 24 horas.
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