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Taxar o teletrabalho: trabalhadores vs. trabalhadores

O Deutsche Bank lançou um estudo onde propõe um novo imposto a ser aplicado a quem se encontre em teletrabalho, que reverta para os que não podem trabalhar remotamente ou tenham perdido o emprego.

Créditos / trabalhador.pt

Uma das actividades que sofreu alterações mais significativas na nossa rotina, nos últimos meses, foi o trabalho. Após décadas de uma existência tímida e modesta depois do seu aparecimento nos anos 70, o conceito de teletrabalho entra definitivamente no nosso vocabulário.

Se nos anos 70 este conceito aparece enquadrado numa crise de combustíveis que nos fez equacionar a necessidade de reduzir as deslocações para o trabalho, hoje em dia os motivos são, como se sabe, bem diferentes. Vemos cada vez mais sectores a adoptarem esta medida e pessoas a exercerem a sua actividade profissional a partir de casa.

Este tema tem feito rolar muita tinta pelos mais variados motivos. Inicialmente, denunciavam-se os abusos das empresas para com os seus trabalhadores, obrigando os mesmos a trabalhar em casa mesmo em regime de lay-off, a adquirirem os seus próprios equipamentos de trabalho (portáteis por exemplo) bem como a perderem a sua privacidade em casa para fazerem prova de que estão a trabalhar.

«existem muitas profissões que não podem ser canalizadas para o teletrabalho, e estas, normalmente, estão em sectores onde os salários são mais degradados [...] mas uma coisa é certa, o teletrabalho e as condições sociais e salariais de quem o pratica não devem causar divisão entre trabalhadores»

Este último aspecto é especialmente carismático. Existem vários provérbios populares a justificar a necessidade de vigiar o trabalhador e parece que os inovadores e vanguardistas modelos de gestão ainda não se conseguiram desprender de crenças tão antigas como «o olho do patrão engorda o gado» ou «patrão fora dia santo na loja».

A verdade é que, com o auxilio do Instituto Nacional de Estatística (INE), percebemos que nem todos os trabalhadores se encontram abrangidos por este regime.

Segundo um estudo do INE feito no segundo trimestre deste ano, os trabalhadores que estiveram em teletrabalho receberam em média mais 56% daqueles que não tiveram esta possibilidade. O mesmo estudo indica que aqueles que tiveram de ir recorrentemente para o trabalho recebem em média 839 euros mensais contra os 1311 euros que recebem aqueles que ficaram em casa.

Percebemos assim que existem muitas profissões que não podem ser canalizadas para o teletrabalho, e estas, normalmente, estão em sectores onde os salários são mais degradados.

Sectores como a indústria e a construção, operadores de máquinas e linhas de montagem, logística, agricultura e pesca são vulgarmente aqueles em que o teletrabalho é residual.

Para colmatar esta situação, tal como já tive oportunidade de referir em textos anteriores, são várias as acções de caridade que as empresas têm apresentado em forma de benefícios.

Mas uma coisa é certa, o teletrabalho e as condições sociais e salariais de quem o pratica não devem causar divisão entre trabalhadores. Apesar de, pessoalmente, não poder adoptar este regime, prefiro mil vezes ver os meus direitos valorizados e verificar uma genuína preocupação com a minha situação sanitária do que perder tempo a invejar aqueles que logram trabalhar a partir de casa.

Taxar os trabalhadores em casa é saque

Quem parece ter uma opinião diferente é o Deutsche Bank, um colosso bancário alemão que em Portugal tem a difícil tarefa de ser um dos mais importantes parceiros do Governo na área das Finanças.

Em meados de Novembro deste ano, esta entidade lançou um estudo onde propõe um novo imposto de 5% a ser aplicado a todos aqueles que se encontram em teletrabalho, para que o mesmo reverta para os que não podem trabalhar remotamente ou tenham perdido o emprego no contexto da pandemia.

«Luke Templeman, [...] afirma que "há anos que precisamos de um imposto sobre os trabalhadores remotos – a covid tornou isso óbvio". Esta citação leva-me a crer que o carácter solidário desta medida não será por ventura o mais relevante»

Luke Templeman, o economista responsável pelo estudo, concluiu que as pessoas em teletrabalho tem menos gastos com transportes, refeições, roupa e serviços de lavandaria... e que esse dinheiro deve ser taxado e repartido por aqueles que se continuam a deslocar para o trabalho.

Confesso que ao ler esta estudo fico na dúvida se estou na presença de um documento redigido por um grupo de especialistas em economia ou se estou num qualquer café do meu bairro.

Mas ficam algumas questões por responder: como se enquadra esta prática na tão afamada meritocracia capitalista? Será que um trabalhador por estar em casa perde automaticamente a sua capacidade? Por que motivo não foi apresentada nenhuma taxa suplementar para as empresas que, com o teletrabalho, deixaram de precisar de escritórios físicos e viram os custos destinados a esses mesmos escritórios drasticamente reduzidos?

Quem nos ajuda a responder a estas e outras questões é o próprio autor do estudo, Luke Templeman, quando afirma que «há anos que precisamos de um imposto sobre os trabalhadores remotos – a covid tornou isso óbvio». Esta citação leva-me a crer que o carácter solidário desta medida não será por ventura o mais relevante.

Com as votações do OE e todas as questões que o mesmo levantou é normal que por agora este não seja um tema a considerar pelos nossos governantes, contudo não seria de estranhar que ouvíssemos falar de uma medida com estes contornos num futuro próximo.

É importante valorizar quem se desloca para o trabalho todos os dias, mas sem comprometer a vida de quem não o faz. E muito menos utilizar este argumento para criar uma divisão social que coloque os trabalhadores uns contra os outros a discutir de forma estéril quem tem maior relevo na sociedade e quem tem mais direitos.

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