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Teletrabalho ou Televida? As armadilhas do futuro

A normalização do teletrabalho aproxima-se, travestida de modernidade digital e de melhoria incontestável das condições de trabalho. É essencial assegurar que não se torne sinónimo da fragilização dos direitos.  

Créditos / Kiplinger

A pandemia da Covid-19 provocou transformações profundas no mundo do trabalho, algumas das quais se adivinham permanentes. As situações de lay-off e o desemprego colocaram muitas famílias em situações difíceis, revelando a precariedade das condições de trabalho, prévia à pandemia, e expondo desigualdades há muito instaladas que explicam que a população com menos recursos, menor acesso à saúde e acesso limitado à tecnologia seja a mais exposta aos riscos de desemprego, condições de trabalho precárias ou até perigosas, doença e demais consequências da crise.

Já o teletrabalho veio diluir um pouco mais as fronteiras já ténues entre vida profissional e pessoal, numa sociedade como a portuguesa, em que os trabalhadores a tempo inteiro trabalham mais horas do que a média europeia. O teletrabalho implica a diminuição das redes de apoio, a desestruturação da rotina e a perda de oportunidades de socialização e de desenvolvimento profissional e pessoal, colocando os trabalhadores numa situação de isolamento que, por si só, teria impacto na gestão do seu tempo, produtividade, na motivação e na saúde psicológica.

Trazer o trabalho para casa implica não apenas distender horários de trabalho, mas misturá-los com o tempo para a família, o cuidado aos filhos, as tarefas domésticas, o lazer e o descanso. O espaço físico, mas também psicológico, dedicado a cada uma destas dimensões, torna-se difuso, sobrecarregado, resultando em sentimentos de stress e ansiedade que somam aos provocados pelas restrições à interacção social e pela constante preocupação com a nossa segurança e a dos outros.

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Pandemia, crise económica e teletrabalho

A fragilidade que resulta do isolamento é uma vantagem que as empresas aproveitarão em seu benefício, e que teremos de combater para que o teletrabalho não seja mais um instrumento de precariedade.

CréditosPxhere / CC0 1.0

Fazer da crise uma oportunidade é uma frase batida que encontra o seu mais profundo sentido na necessidade do sistema capitalista em romper com ciclos económicos estabelecidos para induzir arrefecimento na economia e de seguida, no âmbito de um processo de retoma económica, aprofundar desigualdades sociais, através da acentuação dos níveis de exploração do trabalho. Daqui resulta o empobrecimento dos trabalhadores por contrapartida com a acumulação de capital em gente já muito rica, verdadeiras aves de rapina, que a comunicação social promove nos seus rankings para nos entreter, ou melhor para humilhar quem empobrece trabalhando.

A pandemia que resulta da COVID-19 suspendeu a economia mundial nos mais variados sectores forçando outros a novas modalidades de funcionamento: é o caso do teletrabalho. De um dia para o outro, milhares de trabalhadores com os mais variados tipos de contratos de trabalho, em situação de precariedade laboral ou outra, entraram num processo de confinamento social e passaram a trabalhar a partir de casa.

«De um dia para o outro, milhares de trabalhadores com os mais variados tipos de contratos de trabalho, em situação de precariedade laboral ou outra, entraram num processo de confinamento social e passaram a trabalhar a partir de casa»

Este novo enquadramento foi socialmente aceite pela grande maioria dos trabalhadores sem objecção, dadas as circunstâncias particulares em causa. Porém, com o passar do tempo, os problemas começam a levantar-se, porque o capital nunca perde o seu carácter predador e o trabalho está sempre na sua mira. Também por isso aos trabalhadores de maior fragilidade social não foram dadas condições de segurança, e garantiram o confinamento dos restantes.

Apesar do recurso ao teletrabalho ser um modelo bem-sucedido para todas as empresas privadas de serviços e para os serviços do Estado, com o passar do tempo tudo se altera. Os trabalhadores percebem que estão a entrar num processo de isolamento social e profissional, com limites ténues entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, e questionam o modelo de teletrabalho nas seguintes vertentes:

- O Teletrabalho é bom? A quem serve…

- O Teletrabalho é saudável?

- O Teletrabalho é seguro?

1) À primeira questão, diremos que a adopção generalizada do modelo de teletrabalho é benéfica para as entidades patronais por duas razões distintas:

- As empresas estão fisicamente subdimensionadas face ao número de trabalhadores que têm ao seu serviço, não cumprindo, na sua maioria, os critérios inscritos na lei relativamente à ocupação do espaço e distanciamento físico entre trabalhadores. Daqui resulta que o problema de espaço físico das empresas pode estar a ser resolvido por via da implementação do teletrabalho.

- Embora se possa considerar displicente, há uma poupança que resulta da ausência do trabalhador do local de trabalho. São os custos de água, luz e outros que serão directamente suportados pelo trabalhador, ou seja, o trabalhador suportará custos de funcionamento que anteriormente pertenciam à empresa. Isto para já não falar da internet e até dos equipamentos como telemóveis e computadores que em muitos casos pertencem aos trabalhadores em regime de teletrabalho.

Os trabalhadores quando reagem ao modelo de teletrabalho com agrado fazem-no por dois motivos:

- A moderna gestão empresarial impõe ritmos de trabalho e processos de competitividade interna entre trabalhadores que estão na origem de problemas graves de assédio no trabalho, e muitos trabalhadores entendem a possibilidade do teletrabalho como a oportunidade de se libertar destes problemas.

- Por outro lado, a economia do tempo despendido casa-trabalho-casa leva muitos a considerar que o teletrabalho é algo que pode melhorar a sua qualidade de vida.

2) Quanto à questão de saber se o teletrabalho é saudável para o trabalhador, muitos não terão a verdadeira dimensão deste problema. Porém, o tempo decorrido desde o confinamento, em Março, até ao momento actual, permite que os trabalhadores comecem a despertar para alguns problemas, nomeadamente:

O teletrabalho provoca isolamento:

- Social, em que o trabalhador perde relações sociais, o que pode levar problemas de natureza psicossocial.

- Profissional, na medida em que o trabalhador perde a relação interpessoal com a instituição e com os restantes trabalhadores, o que o torna mais frágil e mais exposto a todos os problemas decorrentes de uma relação de trabalho subordinada.

A fragilidade que resulta do isolamento é uma vantagem que as empresas aproveitarão em seu benefício, e que teremos de combater para que o teletrabalho não se torne mais um instrumento de precariedade.

3) O teletrabalho pode ainda apresentar-se como uma modalidade com grandes debilidades em matéria de segurança. As tecnologias da informação constituem-se através de sistemas permeáveis a «vírus» informáticos. São conhecidos os avultados montantes canalizados para a segurança dos sistemas de informação. Porém, também é conhecida a sofisticação cada vez maior dos ataques informáticos. O teletrabalho deixa as empresas mais expostas ao ciberataque e a questão que se coloca é a de saber se o trabalhador estará devidamente protegido, isto é, se no seu computador pessoal ao serviço da empresa, entrar um vírus que afecte a empresa, quais as consequências para o trabalhador? Para além deste problema existe ainda a confidencialidade dos dados, com todas as subtilezas que este tema contém.

Até agora centrámo-nos em matérias que decorrem de uma relação directa entre empresa e trabalhador por via da adopção generalizada de uma nova modalidade de prestação de trabalho: o teletrabalho. Contudo, problemas de natureza social também devem ser observados, na justa medida em que o teletrabalho traz consigo uma alteração de paradigma ao qual será necessário responder.

«as habitações de cada um estarão devidamente preparadas para o teletrabalho, isto é, o trabalhador tem um espaço adequado, com mobiliário conveniente para garantir a sua saúde? Sabemos que existem trabalhadores que estão sentados no sofá com o portátil em cima das pernas durante o tempo de trabalho, e isto não são condições de trabalho, do mesmo modo que a mesa da cozinha também não»

O empobrecimento da classe trabalhadora tem-se acentuado de forma muito significativa, e os trabalhadores dispõem de pouco rendimento para satisfazer necessidades de bem-estar pessoal e familiar. Neste sentido, devemos questionar se as habitações de cada um estarão devidamente preparadas para o teletrabalho, isto é, o trabalhador tem um espaço adequado, com mobiliário conveniente para garantir a sua saúde? Sabemos que existem trabalhadores que estão sentados no sofá com o portátil em cima das pernas durante o tempo de trabalho, e isto não são condições de trabalho, do mesmo modo que a mesa da cozinha também não.

Por outro lado, a desregulação dos horários de trabalho e a interpenetração da vida pessoal e familiar com o trabalho impõe a ausência de limites entre o trabalho e a vida pessoal, o que reforça o poder das entidades patronais sobre os trabalhadores. O trabalho passa a estar sempre presente na vida das famílias, interferindo e condicionando a vivência familiar.

A possibilidade da redução do salário com supressão de prémios e bónus e eliminação do subsídio de alimentação faz parte de uma realidade que surgiu recentemente na actividade seguradora, e que o Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins (SINAPSA) conseguiu travar. Na prática, para o mesmo trabalho, ensaiou-se a diminuição do salário sem qualquer justificação, o que prova bem o espírito predador do capital e onde se quer chegar com este modelo. Valeu a estes trabalhadores a presença do seu sindicato.

Esta presença afirmou-se e conteve a empresa na sua acção predadora por dois motivos distintos: pela consciência de classe da estrutura sindical na empresa, mas também pelo Instrumento de Regulação Colectiva de Trabalho (IRCT)1 recentemente negociado e que a empresa tentou ignorar, e cuja existência relembrámos, visto que numa das suas cláusulas prevê o teletrabalho, com direitos. Se tivesse prosseguido na sua intenção, a empresa entraria numa violação clara do Acordo Colectivo de Trabalho negociado.

Isto significa que, mais uma vez, é a contratação colectiva que se apresenta como um instrumento de combate pelos direitos de que os trabalhadores não podem abdicar. Esta tem sido sempre a postura do SINAPSA que recentemente viu confirmada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, a validade do Contrato Colectivo de Trabalho para a actividade Seguradora, que os patrões diziam estar caducado.

  • 1. Nota da redacção: Instrumentos de Regulação Colectiva de Trabalho (IRCT) são contratos estabelecidos entre a organização sindical de um determinado sector e as entidades patronais do mesmo ou associações que as representem. Podem ser negociais (Contrato Colectivo de Trabalho, Acordo Colectivo de Trabalho, Acordo de Empresa, Acordo de Adesão e Decisão arbitral; ou não-negociais: Portaria de extensão, Portaria de condições de trabalho e Decisão arbitral. Fonte: Economias.
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Apesar do início de um novo processo de desconfinamento, foi recentemente promulgado o diploma do Governo que prorroga até 31 de Dezembro de 2021 o regime de teletrabalho. Ao mesmo tempo, ouvimos em todo o lado que este regime «excepcional e transitório» pode contribuir para normalizar uma tendência crescente ao longo dos últimos anos, criando uma oportunidade para acelerar uma revolução com proclamadas vantagens.

A adopção generalizada do teletrabalho e a digitalização dos processos traduzem-se certamente em novas áreas de negócio (nomeadamente na área das tecnologias), redução de custos para as empresas (de água, de luz, de equipamentos), diminuição dos fluxos nos transportes e redução do impacto ambiental. No entanto, implicam riscos sérios para os trabalhadores, mesmo para os que sempre sonharam trabalhar a partir de casa e para quem é hoje evidente que a ilusão inicial de autonomia na organização das tarefas e horários é, na verdade, sinónimo de disponibilidade contínua, dificuldade em desconectar e invasão do tempo e espaço privados. Já a transição digital poderá colocar milhões no desemprego, potencialmente extinguindo cerca de 85 milhões de postos de trabalho.

O trabalho não apenas transforma a matéria, mas a vida psíquica, social, cultural, política e económica, pelo que, considerando os perigos que um ano a trabalhar em casa já permitiu identificar, é preciso reflectir sobre os reais benefícios da anunciada revolução laboral, identificando claramente os riscos associados ao trabalho remoto.

«Aqueles com vínculos mais precários e níveis mais baixos de literacia digital serão os mais vulneráveis aos efeitos desta transição, que os coloca numa situação de imprevisibilidade e insegurança, logo, em maior risco de problemas de saúde psicológica»

A investigação sobre o assunto aponta para efeitos mistos na produtividade, na criatividade ou na inovação, bem como diferenças menores em questões como a satisfação no trabalho, avaliação de desempenho ou rotatividade. Pouco sabemos ainda sobre riscos especificamente associados ao teletrabalho ou quais as variáveis que poderão moderá-los (idade, género, personalidade, situação familiar, cultura), mas, a avaliar pelos resultados de um ano a trabalhar a partir de casa, é claro que transportar o trabalho para o espaço doméstico agravará a exposição a múltiplos riscos psicossociais.

Em primeiro lugar, não deixa de ser relevador que os mais expostos aos efeitos de crises (como aquela agravada pelo contexto pandémico) sejam os menos beneficiados por auspiciosas revoluções. Aqueles com vínculos mais precários e níveis mais baixos de literacia digital serão os mais vulneráveis aos efeitos desta transição, que os coloca numa situação de imprevisibilidade e insegurança, logo, em maior risco de problemas de saúde psicológica. São também eles os que o têm menos apoios (por exemplo, acesso a seguros de saúde) e menor capacidade de lidar com a perda de emprego ou com a doença.

Em risco estarão também os trabalhadores mais jovens e em situações contratuais mais frágeis, bem como grupos específicos nos quais as desigualdades e injustiças sociais poderão ser agudizadas. Um cenário do trabalho remoto generalizado permite ainda antecipar maiores riscos de burnout, aumento do presentismo (por exemplo, em situações em que um trabalhador doente se mantém a trabalhar) e dificuldades acrescidas na manutenção da dinâmica trabalho-família que, por sua vez, se associam problemas de gestão de tempo e energia, a um provável aumento de conflitos familiares e até de violência e a disparidades de género no volume de trabalho total (um dado inquietante aponta, por exemplo, para um regresso a papéis de género mais tradicionais).

A nível físico, podemos esperar o agravamento de lesões músculo-esqueléticas (nas quais Portugal apresenta já uma percentagem de ocorrência superior à média da União Europeia) e doenças cardiovasculares associadas ao sedentarismo decorrente da falta de exercício ou da desregulação alimentar.

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Teletrabalho: da promessa da autonomia à realidade da exploração

A ideia de que cada trabalhador deve ser livre de escolher se quer ou não transitar para um regime de teletrabalho trata-se de uma falácia: as relações de trabalho não são relações de igualdade.

CréditosPxhere / CC0 1.0

Ao largo dos últimos meses temos assistido ao aparecimento e intensificação do debate em torno do futuro do Trabalho, essencialmente ligada à questão do teletrabalho. A discussão em si não é nova e está condenada a manter-se por cá, porque, acompanhando a permanente mudança das sociedades, também o Trabalho mudará sempre para se adequar às necessidades e possibilidades tecnológicas de cada momento.

Até aqui nada de muito novo. Na realidade, a novidade deste momento que agora vivemos decorre não da natureza da discussão, mas antes do pretexto em que se alicerça para ser projectada. Enquanto que até hoje a inovação tecnológica (existente ou prevista) foi o motor deste debate, neste momento é a pandemia de COVID-19 a oferecer o pretexto não apenas para a discussão, mas para efectivas transformações na forma como o Trabalho se desenvolve.

Sejamos claros: a pandemia existe e tem consequências muito visíveis na saúde das pessoas (podendo levar até à morte), pelo que a adopção de medidas sanitárias de prevenção do seu alastramento se justifica – inclusive no mundo do Trabalho.

Não obstante, a clareza de espírito não deve redundar em ingenuidade: ainda ninguém sequer falava de COVID-19 e já o actual Governo português dedicava várias linhas do seu Programa (p. 165) à transição para o teletrabalho na Administração Pública, em particular, e aceleração da digitalização da economia, em geral - que não sendo o mesmo que teletrabalho, encontra neste uma componente importante. E, por isso, sim, a pandemia é um pretexto que legitima uma opção; não uma contingência que obriga a que se desenhem imprevistas opções. De resto, a pandemia oferece um contexto em que a transição para o teletrabalho surge em pezinhos de lã, algures entre o desejável e o inevitável, retirando espaço para debater uma transformação que, noutro quadro, poderia e deveria merecer bem mais discussão e reflexão.

«a pandemia oferece um contexto em que a transição para o teletrabalho surge em pezinhos de lã, algures entre o desejável e o inevitável, retirando espaço para debater uma transformação que, noutro quadro, poderia e deveria merecer bem mais discussão e reflexão»

Ora, dado que essas alterações se apresentam como para ficar, muito mais que como uma resposta circunstancial, vale a pena reflectir sobre elas e, antes disso até, sobre os (falaciosos) argumentos a partir dos quais se justificam. Por questões de síntese, abaixo exploro os cinco que me parecem mais relevantes:

1) Um admirável mundo novo. Embora seja o primeiro da lista, este é, na verdade, uma espécie de «argumento zero», que fala por si mesmo, mesmo quando não é explicitamente invocado, porque se dirige à experiência individual de cada um. Ele justifica o teletrabalho como um recém-descoberto paraíso: livre dos intermináveis engarrafamentos, dos transportes sobrelotados, dos locais de trabalhos húmidos, demasiado frios no Inverno ou quentes no Verão e sem luz natural, dos superiores hierárquicos abelhudos, dos colegas chatos, das casas de banho partilhadas e mal limpas, etc. Valendo-se de realidades que existem e têm fortes implicações reais na vida de milhões de trabalhadores, a falácia consiste na ideia de que é possível uma transformação radical (a passagem para o teletrabalho), mas que todos os elementos indesejáveis do quadro actual são inultrapassáveis por qualquer outra via.

2) A entidade empregadora assume os custos. Correspondendo a uma determinação legal já existente, qualquer entidade empregadora tem de assumir os custos com o teletrabalho (equipamentos, comunicações, etc.). Tenho poucas dúvidas que, regra geral, as entidades empregadoras assumam essa obrigação – de resto, algumas até fizeram questão de comprar mobiliário ergonómico para os trabalhadores que mandaram para casa. Tudo muito bem, mas três questões se levantam: a) gastos não directamente mensuráveis: água do autoclismo, electricidade do aquecimento, etc., quem assume?; b) se, como a maioria das famílias, o/a trabalhador(a) viver numa casa em que não tem uma divisão que possa dedicar de forma exclusiva ao seu trabalho, ele/a deve trabalhar na sala, na cozinha, no quarto?... e se for mais do que uma pessoa lá em casa em teletrabalho? Dificilmente veremos entidades empregadoras a financiar a transição para casas com dimensões mais adequadas, no entanto, os trabalhadores terão que reger a sua escolha de casa (também) por esse critério; c) mesmo que não seja no imediato, o que acontecerá com complementos salariais/subsídios que tantas vezes (erradamente) são decisivos nos rendimentos dos trabalhadores, como sejam o subsídio de alimentação ou de transporte? As empresas estarão disponíveis para aumentar os salários dos trabalhadores?

3) Estamos a salvar o ambiente. É evidente que se nos mantivermos mais por casa podemos emitir menos gases poluentes, mas este é outro argumento de perna curta... vejamos: a) quantas questões que podiam ser resolvidas presencialmente passarão a exigir um elevadíssimo consumos de dados, o que por si conduzirá a um consumo energético exponencial? É verdade que há opiniões diferentes sobre se esta é ou não uma questão para alarme, dado que no futuro, talvez seja possível resolvê-la, mas enquanto ainda assim não é (e mesmo que assim seja um dia), não seria mais eco-friendly criar condições aos trabalhadores para recorrerem a mecanismos de mobilidade suave para se deslocarem para o seu local de trabalho (preferencialmente situado num local não muito distante da sua residência)?; b) ainda no plano do consumo energético, locais de trabalho partilhados têm tudo para ser mais eficientes, desde logo porque são partilhados, mas também porque poderão corresponder a entidades que têm os meios para garantir essa eficiência de forma mais concentrada e não a sua proliferação pela casa de todos e cada um dos seus trabalhadores (sem prejuízo de graduais e justas melhorias nas casas dos trabalhadores que vão nesta direcção).


4) A autonomia total. Livre de qualquer supervisão física, o/a trabalhador(a) poderá, segundo os apologistas do teletrabalho, gozar de uma autonomia sem limites, organizando os seus horários a seu bel-prazer. Pode soar bem, mas a realidade está longe de ser tão maravilhosa quanto se pinta... desde logo, como já aqui se disse (ver caixa), o controlo dos trabalhadores está hoje altamente sofisticado, não sendo necessário um controlo fisicamente presente para que este ocorra; além disso, duma forma mais geral, a ausência de um local de trabalho definido e de um horário estipulado podem rapidamente converter-se numa invasão do espaço e do tempo privado/social/de lazer pelas tarefas do trabalho, seja por imposição explícita das entidades empregadoras, seja por necessidade de corresponder a objectivos que, na maioria das vezes, vão para além dos limites da saúde física e psicológica dos trabalhadores. Por um lado, sabe-se muito pouco sobre as patologias associadas ao teletrabalho para que se olhe para este como uma opção sem riscos; por outro, nas relações de trabalho do sistema capitalista (orientado pela maximização do lucro) as ocasiões em que o aumento da produtividade é acompanhada pelo aumento dos rendimentos e direitos dos trabalhadores costumam ser efémeras, pois esse não é o seu objectivo - mas sim aumentar os lucros das entidades patronais.

5) A relação trabalhador-entidade patronal não se altera. Esta é uma questão complexa, porque se for reduzida à escala individual, pode até ser que o argumento não seja tão distante da verdade assim. Porém, se pensarmos à escala da acção colectiva (única verdadeira arma de defesa dos seus direitos e interesses por parte dos trabalhadores) veremos que a prática pode trazer consequências profundamente nefastas. Um «local de trabalho» onde ninguém se conhece, cada um tem o seu horário, onde não há quaisquer laços sociais que permitam a criação de confiança e solidariedade entre colegas não será jamais igual a um local de trabalho onde vínculos de camaradagem se forjam no quotidiano. Aos trabalhadores até pode ser «dada» a possibilidade de organização sindical, de contacto entre si pelos meios que entendam, mas não é difícil perceber que - sobretudo num contexto em que se introduza precariedade e competitividade - cada trabalhador se encontrará isolado no campo paradoxalmente por si próprio delimitado, desprovido (ou pelo menos muito limitado) na sua capacidade de intervenção.

«De pouco serve correr velozmente rumo ao horizonte se formos a olhar para o infinito e pensar no que as coisas podiam ser: fazê-lo serve apenas para, mais tarde ou mais cedo, chocar de cabeça contra a parede da realidade!»

Por último, uma espécie de pós-argumento é a ideia de que cada trabalhador deve ser livre de escolher se quer ou não transitar para um regime de teletrabalho. Mais uma vez, na maioria dos casos, trata-se de uma falácia: as relações de trabalho não são relações de igualdade, elas são profundamente desequilibradas em desfavor dos trabalhadores. Achar que, num contexto de alastramento da precariedade e desemprego, os trabalhadores (particularmente os mais jovens) terão outra liberdade que não a de procurarem adequar-se àquilo que ditam a suas entidades empregadoras, constitui uma profunda ingenuidade, só justificada por um olhar desatento para o panorama presente e passado do mundo do Trabalho.

Dito tudo isto é oportuno dizer que nem o teletrabalho tem de significar o agravamento da exploração, nem a tecnologia está necessariamente contra o direito dos trabalhadores. No entanto, como sempre, a questão determinante é saber ao serviço de quem ambos são utilizados.

De pouco serve correr velozmente rumo ao horizonte se formos a olhar para o infinito e pensar no que as coisas podiam ser: fazê-lo serve apenas para, mais tarde ou mais cedo, chocar de cabeça contra a parede da realidade!

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É provável que, à boleia das lições da pandemia, assistamos, pelo menos, à integração de modelos de trabalho híbridos em muitos locais de trabalho. Garantindo a socialização e rotinas do trabalho presencial e associando-as à flexibilidade do trabalho remoto, estes permitem, pelo menos em teoria, aliar o melhor dos dois mundos. No entanto, ainda que a questão careça de investigação, é fácil intuir que as desvantagens e desafios para os trabalhadores superam os possíveis benefícios. Aos problemas acima citados acrescem factores de risco particularmente presentes quando em teletrabalho (por exemplo, de cyberbullying e assédio virtual), bem como os gastos adicionais em água, gás, electricidade e internet que decorrem da transformação da casa no local de trabalho, efeitos que muitos milhares já sentem na pele.

A maior parte dos riscos psicossociais, que põem em causa e geram riscos para a saúde psicológica, relacionam-se com as tarefas executadas e com a intensidade do trabalho. Face ao paradigma que ameaça instalar-se, as organizações e o Estado têm o dever de assegurar que os trabalhadores em teletrabalho gozam dos mesmos direitos individuais e colectivos que os demais, acautelando os acréscimos de despesas, assegurando os equipamentos necessários para trabalhar a partir de casa (secretárias, cadeiras e equipamento informático adequado e adaptado) e desenvolvendo estratégias que possam garantir a sua saúde física e psicológica.

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O teletrabalho e o direito ao subsídio de refeição

O teletrabalho não voltará à posição do antes da «crise», mas esta mudança não pode ser aproveitada para reduzir salários ou para cortar na fatia do rendimento nacional que está afetada aos salários.

Créditos / trabalhador.pt

As medidas tomadas pelo Governo na área laboral, com o propósito de combater o COVID 19, algumas antes e outras depois do decretamento do estado de emergência, estão a provocar um verdadeiro caos na vida dos que têm no salário a única fonte rendimento.

A concentração da informação nas medidas de proteção e na sua obrigatoriedade tem levado à generalização da ideia de que os direitos dos trabalhadores são coisa secundária, abrindo-se um caminho para práticas ilícitas e até criminosas de patrões menos escrupulosos e/ou oportunistas, que procuram, dentro do caos, mais uma oportunidade de enriquecimento ilegítimo.

Neste contexto é preciso que as entidades especialmente obrigadas a fiscalizar e a sancionar tais práticas, em especial a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), assumam as suas obrigações, lembrando que as normas de direito laboral se encontram plenamente em vigor.

Com efeito, os regimes ora criados têm natureza especial e temporária, não afetam a aplicação dos regimes regra constantes do Código do Trabalho, nem da Constituição da República Portuguesa.

«O regime regulatório do teletrabalho [tem] como caraterística distintiva do trabalho presencial, o facto de a prestação laboral ser realizada fora da empresa, através do recurso a tecnologias de informação, isto é, à distância. [...] Ainda assim, a prestação laboral em regime de teletrabalho é realizada com subordinação jurídica (art.º 165.º do CT), obrigando as partes em matéria de direitos e deveres, como se o trabalho fosse prestado em instalações da entidade empregadora»

Neste sentido, foi criado um regime especial simplificado de lay off e o teletrabalho tornou-se obrigatório nuns casos, e um direito potestativo noutros, o que foi feito sem se mexer no Código do Trabalho, isto é, sem mexer nos regimes previstos neste importante diploma legal.

O regime regulatório do teletrabalho encontra-se previsto nos artigos 165.º a 171.º, do Código do Trabalho tendo, como caraterística distintiva do trabalho presencial, o facto de a prestação laboral ser realizada fora da empresa, através do recurso a tecnologias de informação, isto é, à distância.

Ainda assim, a prestação laboral em regime de teletrabalho é realizada com subordinação jurídica (art.º 165.º do CT), obrigando as partes em matéria de direitos e deveres, como se o trabalho fosse prestado em instalações da entidade empregadora, nomeadamente: a entidade patronal mantém a obrigação de fornecer os instrumentos de trabalho e de pagar as despesas inerentes à sua utilização e manutenção, de manter o seguro de acidentes de trabalho, de assegurar a formação profissional (art.º 168.º e 130.º a 133.º do CT). E o trabalhador beneficia dos direitos laborais em condições de igualdade com os demais trabalhadores da empresa em regime de trabalho presencial (art.º 169.º, n.º 1, do CT).

A propósito da retribuição devida ao trabalhador em regime de teletrabalho, têm surgido na comunicação social posições no sentido de que o subsídio de alimentação não seria devido a estes trabalhadores. Tais posições têm sido justificadas com a natureza do próprio regime, isto é, com o fundamento de que o trabalhador não se desloca e, como tal, não necessita de tomar a refeição fora de casa. O argumento poderia merecer uma análise mais desenvolvida, não fosse o facto de o próprio regime afastar expressamente tal interpretação no art.º 169.º, n.º 1, do CT que, a esse propósito diz que «o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores…».

Ainda assim, se quiséssemos ir mais além, sempre se diria que o subsídio de refeição é pago como contrapartida do trabalho (só não é pago em caso de falta o que deixa evidente o vínculo da prestação com a execução da mesma), tem carater de regularidade (art.º 258.º, do CT) e não se encontra afastado pelo disposto do art.º 260.º do CT). O facto de ter um regime de tributação próprio não lhe altera a natureza retributiva, sendo certo que as normas que o regem têm, em geral, como fonte de direito as convenções coletivas, que lhes definem as condições de aplicação, ou os usos laborais, igualmente fonte de direito nos termos do art.º 1.º, do CT.

O teletrabalho não voltará à posição do antes da «crise», mas esta mudança engendrada pela situação presente não pode ser aproveitada para reduzir salários ou para cortar na pequena fatia do rendimento nacional que hoje está afetada aos salários, de si já muito baixos no nosso País.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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Estas passam, sobretudo, por promover um verdadeiro equilíbrio entre vida profissional e pessoal, implementando planos de prevenção e intervenção nos riscos psicossociais (acções no âmbito do stress ocupacional, violência, assédio ou conflitos, medidas de apoio à parentalidade, protecção na doença, etc.) e ainda adequando os horários e carga de trabalho às competências dos trabalhadores, envolvendo-os no planeamento do trabalho, por forma a potenciar a autonomia e controlo sobre as tarefas, evitando ritmos de trabalho intensificados, poucas pausas para descanso e exigências contraditórias.

Paralelamente, e tal como no trabalho presencial, é necessário assegurar a justa remuneração do trabalho extraordinário, trabalho nocturno ou trabalho por turnos.  Em suma, é fundamental precaver que a normalização do teletrabalho não seja sinónimo da fragilização dos direitos dos trabalhadores, de precariedade e de exploração no trabalho, realidades antigas e enraizadas, tão difíceis de combater, que agora nos chegam mascaradas de modernidade digital e de ferramenta de melhoria incontestável das condições de trabalho e de vida. Assim não é:  Os riscos são reais – mas não inevitáveis.

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