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«Temos que pensar em conjunto qual é o propósito da ciência em Portugal»

Em dia de protesto dos trabalhadores científicos, no Porto, frente ao Encontro Ciência 2024, o AbrilAbril entrevistou a nova presidente da ABIC, Sofia Lisboa, para conhecer melhor as condições de precariedade que assolam este sector.

Sofia Lisboa, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica
Sofia Lisboa, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica Créditos / IHC

Quais são as expectativas da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) em relação a este novo governo? Esperam grandes alterações em relação ao mandato anterior?

Desde logo, uma das primeiras alterações é que nós temos, neste momento, um ministro que vai acompanhar um sector muito mais alargado e com muitos problemas para resolver. Nós até agora tínhamos dificuldades em reunir com uma ministra da Ciência e do Ensino Superior… Agora temos um ministro que agrega todos os problemas da escola pública, da negociação da recuperação do tempo de serviço dos professores, do subfinanciamento crónico do ensino superior, da necessidade de combater a precariedade na ciência. Isso é uma diferença óbvia.

Mas, de facto, na nossa perspectiva, e quando esta nova situação foi colocada, logo de início, dissemos que não era uma questão de princípio relativamente à organização dos ministérios, mas antes uma avaliação que fazemos do sinal que se dá numa fase em que há todos estes problemas para resolver. Juntar tudo num super ministério, consideramos preocupante.

E, sobretudo, conhecendo o programa de governo e aquilo que era mais ou menos anunciado no seu programa eleitoral. Por exemplo, não se fala de bolseiros, não se fala de precariedade, essas palavras não aparecem no programa de governo. Isso é o mais preocupante, no concreto, relativamente a este novo mandato. 

O Governo na prática já demonstrou algum tipo de interesse na questão dos bolseiros ou estão concentrados nos problemas do ensino?

Aquilo que surgiu em relação aos bolseiros foi, por exemplo, uma coisa que tem a ver com essa necessidade de resolver os problemas da escola pública, com uma ideia de que é preciso reforçar os quadros das escolas e atrair jovens para a carreira docente.

No final do ano passado, quando terminou o primeiro período, mais de 20 mil alunos não tinham tido aulas a uma disciplina e o Governo quer reduzir este número. Mas no dia em que foram anunciadas as medidas para resolver este problema, vimos que são contraditórias. Medidas como tentar atrair professores que estejam já aposentados com uma compensação para voltarem a dar aulas, ou professores que estejam quase a chegar à idade da reforma também com uma compensação salarial para continuarem a dar aulas e adiarem a reforma; um programa para atrair pessoas com mestrado e doutoramento para dar aulas, ou seja, sem mestrado de ensino, portanto sem possibilidade de aceder à carreira…

E depois, então, esta questão mais específica dos bolseiros: propor uma alteração ao Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI), que é o estatuto ao abrigo do qual os investigadores com vínculo de bolsa trabalham. Neste momento o estatuto prevê que se possa dar até quatro horas de aulas por semana e o que se pretende é alterá-lo para que se possa dar até 10 horas. 

Para termos uma ideia, um docente do ensino superior dá nove horas de aulas com um horário completo. Portanto, um investigador que está a fazer a sua tese, ou a desenvolver a sua investigação no âmbito de um projecto, que vá dar 10 horas de aulas ao ensino secundário, é uma ideia completamente despropositada e que tem aqui dois problemas à partida.

Primeiro, não vai resolver os problemas da escola pública porque não se está a resolver os problemas dos professores, nem da atractividade da carreira. E, portanto, se não estamos a resolver isto, não é indo buscar os mais precários dos precários como medida de emergência que se vai resolver os problemas da escola pública.

Por outro lado, nem sequer se tem muito uma ideia, pelo menos não percebemos que haja essa ideia, de quantos é que efectivamente esta medida vai atrair. Quantos bolseiros é que vão decidir deitar fora horas da sua investigação, que estão sempre em contra-relógio para desenvolver – porque se vai acabar a bolsa de doutoramento ou o financiamento do projecto – para ir dar aulas, para preparar as aulas, para corrigir testes… para ganhar um pouco mais no final do mês.

CréditosHenrique Borges / Henrique Borges

E não pode ser uma boa experiência, para os bolseiros, a prática de dar aulas? 

Isso é uma boa questão. Porque é uma questão que também se coloca relativamente a dar aulas no ensino superior, que já acontece ao abrigo do Estatuto. 

Portanto, os bolseiros de investigação não são vistos como trabalhadores, mas são obrigados à exclusividade para desenvolver as suas investigações, porque são investigações que estão a ser financiadas pelo Estado e, portanto, o Estado considera, «vocês não são trabalhadores, mas nós queremos que estejam dedicados a 100% à investigação», e isso é uma das obrigações previstas no EBI.

E tem esta excepção das quatro horas. Hoje acontece que muitos bolseiros dão aulas, normalmente no ensino superior e, normalmente, a suprir necessidades do funcionamento de cada instituição. Se assim não fosse, seria preciso contratar docentes para garantir o normal funcionamento dos cursos. Portanto, há muitos bolseiros que fazem isto nas suas áreas no ensino superior e ninguém diz que isto não é uma experiência interessante. Prepara o investigador para a articulação que é esperada entre as duas carreiras, da docência e da investigação. O problema não é dar aulas, mas sim o vínculo precário destes trabalhadores: estas pessoas não têm subsídio de férias, de Natal, não têm descontos para a Segurança Social que correspondam aos seus vencimentos, não vão ter subsídio de desemprego e, portanto, estão permanentemente a trabalhar sem horário de trabalho para fazer as suas investigações e cumprir os seus objectivos. 

Logo, todo o tempo em que estão a fazer outra coisa, que pode ser interessante e que pode ser enriquecedor a muitos níveis, é tempo que não estão a dedicar ao seu trabalho. E isto compromete as investigações que estão em curso e as obrigações destes investigadores.

Dito isto, é difícil imaginar sequer que um trabalhador nestas condições poderia dar 10 horas de aulas no ensino secundário sem ser altamente prejudicado... 

A ABIC acompanha também os bolseiros de investigação que trabalham noutras entidades, que não apenas as instituições de ensino superior?

Todos os bolseiros estão abrangidos por este trabalho associativo, digamos assim, este trabalho que é um trabalho parasindical importa dizer – não é sindical porque nós não somos considerados trabalhadores. Há bolseiros em instituições de investigação, laboratórios, ou em empresas, por exemplo, e todos os que fazem investigação com este vínculo precário estão aptos a organizar-se na ABIC para contestar estas condições e exigir outras.

As realidades são muito parecidas, no privado e no público? 

Bem, todas estas instituições, para acolher bolseiros, têm de cumprir o estatuto de bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), portanto, esses bolseiros estão ao abrigo do EBI, que é a norma legal. Depois há uma grande discricionariedade. Há situações em que há vantagens e outras em que há desvantagens. Há instituições onde se garante o subsídio de alimentação, que não está previsto no estatuto. Mas mesmo entre as várias instituições universitárias há muitas diferenças. 

Há bolseiros que dão aulas sem receber e outros que lutaram para que as aulas fossem pagas – no limite das quatro horas permitidas pelo EBI – e que conseguiram.

Há bolseiros que dão aulas sem receber uma vez que assinaram um contrato com as universidades na sequência de um edital em que a situação era apresentada dessa forma. Estes bolseiros são contratados através de fundos da FCT para projectos, aquilo a que chamamos os bolseiros indirectamente financiados. Na página de internet da universidade aparecem como «docentes a título gracioso»...

E muitas vezes até não cumprem propriamente os critérios das quatro horas porque depende da distribuição da carga lectiva por semestre…

Diria que existe uma enorme discricionariedade em relação a uma série de regras supostamente estabelecidas no Estatuto do Bolseiro de Investigação.

E há grandes diferenças para a situação dos bolseiros de outros países?

Progressivamente estamos a ficar mais isolados relativamente a esta realidade, porque muitos países europeus já não têm bolseiros. Portanto o que têm é PhD researchers. A ABIC até se relaciona a nível internacional com outras organizações que são de PhD researchers, ou seja, investigadores que estão a fazer o seu trabalho e que estão ainda a terminar o doutoramento, mas que têm contratos para essa duração.

Em Espanha, por exemplo, deixaram de existir bolseiros mais ou menos em 2017, quando nós estávamos em Portugal a conquistar o Decreto-Lei n.º 57 em que se generalizava o contrato de trabalho para os investigadores já doutorados.

Essa alteração em Portugal, que foi fruto de uma grande luta, também teve uma influência na ABIC, porque muitos daqueles que durante décadas estavam envolvidos na associação deixaram de ser bolseiros e passaram a ser contratados, ainda que com um contrato precário…

E é curioso que temos bolseiros que ganham bolsas da FCT, que vêm trabalhar para Portugal, vindos de países onde já não há bolsas, e que ficam muito impressionados com esta realidade de precariedade que ainda existe aqui.

Mais de 100 investigadores protestaram contra o governo PS e a política de precariedade na ciência, durante a sessão de abertura do Encontro Ciência 2023. Aveiro, 5 de Julho de 2023  CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

E voltando ao assunto dos bolseiros em diferentes tipos de instituições, como é que a ABIC vê os doutoramentos em ambiente não-académico? Não são sequer instituições de investigação privadas, são empresas. Como é que isso funciona?

Existe este novo programa, que são os Doutoramentos em Ambiente Não-Académico. E isto é uma medida que vem substituir um outro modelo que existia antes, com a mesma lógica, de incentivar o desenvolvimento de doutoramentos em contexto empresarial. Não houve propriamente um relatório, nem um balanço, nem qualquer tipo de conclusão sobre a eficácia dessa medida. E digo eficácia porque esta ideia de haver doutoramentos no seio das empresas corresponde à necessidade de criar emprego para esta mão-de-obra altamente qualificada, que não passe apenas pelo meio académico.

E, portanto, haver uma ponte para o meio empresarial e o sector privado, e tentar convencer o sector privado que é vantajoso contratar e investir em pessoal com este tipo de qualificações. Sabemos que temos um tecido empresarial maioritariamente composto por micro, pequenas e médias empresas. Mas mesmo nas empresas maiores existe uma grande resistência em contratar pessoas com este nível de especialização. A generalização dos baixos salários está relacionada com isto.

A ideia de desenvolver um programa em que os investigadores estão ainda a fazer esta parte da sua formação, mas já em contexto empresarial, teria este objectivo.

A novidade deste novo programa é garantir 400 bolsas para contexto não académico, dentro do número total e habitual de bolsas atribuídas. E, portanto, isto vai condicionar o tipo de ciência que se desenvolve, a começar pela questão das áreas.

Aquilo que nos parece é que com este programa estamos a legitimar esta precariedade e a exportá-la para o sector privado: é uma medida que institui este mecanismo para que as empresas possam dispor de mão-de-obra de graça, paga pelo Estado, para estar a fazer investigação que responda às suas necessidades, de desenvolvimento dos seus produtos e serviços. E é totalmente diferente pensar que este ambiente não-académico possa ser no sector social, na administração central, no sector cultural, ou numa empresa privada com fins lucrativos.

O dinheiro público deveria ser investido no desenvolvimento de uma ciência que é posta ao serviço da sociedade. Estudar os problemas da sustentabilidade da segurança social? Matérias relacionadas com ciência fundamental, da física ao ambiente? Da nossa história e cultura? Isso é totalmente diferente de desenvolver estudos para responder a necessidades de negócios: optimizar o algoritmo para uma empresa de distribuição gerir os seus recursos humanos, para dar um exemplo problemático.

Mas os investigadores que são formados através de investimento público não terão todos lugar para continuar a fazer investigação no meio académico, certo?

Pois é, mas isto é entrar numa questão mais profunda, que é a das próprias políticas nacionais, como o caminho de desindustrialização que foi seguido, para referir apenas uma. É uma questão muito importante, porque nós enquanto trabalhadores científicos temos dois problemas sobre os quais nos devemos debruçar.

Por um lado a luta laboral, pura e simples. Uma vez que somos investigadores, fazemos investigação seja em projectos individuais ou não, financiados através do Estado ou de outros fundos. As pessoas são contratadas para desenvolver este trabalho, produzir conhecimento, trazer resultados novos para permitir novas conclusões e novas soluções para determinados problemas. E, portanto, estas pessoas estão a trabalhar. Seja três, quatro anos, seja seis meses, a esse trabalho deve corresponder um contrato, onde estejam salvaguardados todos os direitos previstos na nossa legislação.

Aí há igualmente uma questão ideológica, porque há os que defendem que os investigadores que ainda estão a cumprir esta fase de formação são estudantes. Nós contrariamos isto, dizendo que, por exemplo, também os médicos, quando ainda estão a fazer a sua parte de treino, não têm acesso à carreira médica enquanto não cumprirem aquela parte de formação, que é o internato, e, mesmo assim, têm um contrato de trabalho, estão a trabalhar no hospital.

No concreto, os investigadores publicam artigos, organizam conferências, fazem tratamento de dados e de documentos, tudo isto conta para as métricas até de financiamento das universidades, dos rankings e por aí fora.

Depois há a segunda questão, que é para que serve a ciência em Portugal. E é muito mais complexo, porque não ficamos apenas no universo do que está sob a tutela do Ministério da Educação.

Estamos a formar pessoas especializadas e estamos a investir nesta formação para quê? Qual é, neste momento, o entendimento para o nosso país de desenvolver determinadas áreas estratégicas, determinados sectores?

E isto parece-nos um problema, porque, obviamente, vem causar aqui algum desconforto relativamente à forma como o nosso país se quer desenvolver, não é?

E as opções estratégicas que nós temos enquanto país, do ponto de vista da indústria, de outros sectores da economia, de outros problemas sociais que eventualmente se podem resolver através da investigação, da salvaguarda do nosso património cultural e histórico. E, portanto, ficamos um bocadinho inquietos quando nos apercebemos que este investimento cumpre apenas o objectivo de Portugal subir naqueles indicadores de proporção de doutorados relativamente à média europeia. Isto sem prejuízo do mérito de toda a investigação que é desenvolvida em Portugal.

E este novo ministro, Fernando Alexandre, deverá seguir esse mesmo caminho?

Sim, com a agravante de ter muito menos pudor em defendê-lo. E digo isto desta forma porque não me parece que seja muito diferente daquilo que era defendido e seguido até agora, do ponto de vista das políticas. 

Mas com este ministro, daquilo que conhecemos dele e das políticas das forças que compõem este Governo, esperamos justamente que se aprofunde um caminho de mercantilização da ciência. No sentido em que haja muito mais investimento privado para desenvolver a investigação, porque a investigação deve servir esses interesses. É um bocadinho a mesma lógica que pode ser aplicada, por exemplo, à cultura e às questões de mecenato. A cultura deve deixar de ser um encargo do Estado e passar a ser uma coisa que se desenvolve segundo o critério do interesse privado, seja ele qual for. 

Portanto, investindo o conhecimento científico segundo a lógica da rentabilidade.

Exacto, o que também me leva a referir a questão dos critérios que cada vez mais sobrevalorizam a ciência aplicada à ciência fundamental.

Mas importa esclarecer o seguinte: a ABIC não tem nenhum problema de princípio com o facto de existirem grandes empresas a contratar investigadores e fazer investigação para gerir os seus negócios. Aqui a questão é não entendermos que o dinheiro público deva servir para isso.

E priorizar-se a ciência com uma aplicação a curto prazo, a chamada ciência aplicada, para a atribuição de financiamento, é muito preocupante. 

Isso faz sentido numa empresa que quer fazer investigação para ter ali um resultado imediato no produto e no serviço que está a desenvolver. Do ponto de vista do investimento público não tem qualquer sentido, porque nós estamos a condicionar os projectos que são financiados pondo em causa todo o sistema científico no futuro. Há muito conhecimento que só se atinge com muito tempo, muito trabalho, e muitas tentativas. E isto tem que ser uma prioridade do Estado.

Créditos

Há bolseiros a abandonar este percurso por causa das condições de trabalho?

Diria que o jogo já está condicionado à partida. Isto é, as pessoas que aqui chegam já ultrapassaram uma série de obstáculos, de barreiras socio-económicas, que já pôs de fora qualquer ilusão de acesso democrático ao conhecimento e à produção de conhecimento.

Dito isto, sim, as pessoas vão abandonando ao longo do caminho. Há pessoas que abandonam depois de 10 anos de precariedade. Outras depois de 20. Outras mais cedo, terminam o doutoramento – ou não terminam – e escolhem uma via profissional mais estável.

Esta é uma carreira em que as pessoas têm que viver períodos de vários meses sem rendimentos, com frequência: entre projectos, à espera do resultado de candidaturas, mas mesmo antes, à espera de começar a receber durante meses depois de assinar o contrato de bolsa com a FCT, ou durante os vários meses em que se espera pela defesa da tese de doutoramento. E a normalização desta realidade mostra-nos um bocadinho o entendimento de quem nos governa sobre aqueles que fazem investigação em Portugal.

Não queremos com isto dizer que não interessa fazer este percurso e que estas pessoas não irão depois trabalhar seja onde for, levando imensa aprendizagem de uma experiência como esta. Mas tendo em conta as nossas necessidades sociais e económicas enquanto país, parece-nos dinheiro público mal gasto. Já para não falar das condições de instabilidade a que estas pessoas são obrigadas, com uma narrativa de amor à camisola, neste caso, amor à Ciência.

E quais são os motivos do protesto de hoje?

Os motivos da manifestação não são novos. O protesto junta uma série de organizações que representam os trabalhadores científicos de todo o país.

A urgência é a mesma – agravada com o passar do tempo – que motivou a manifestação de Maio do ano passado, no Dia Nacional do Cientista.

As reivindicações apresentadas nessa altura tiveram o mérito de empurrar a ministra para apresentar um programa, e esse programa foi o FCT-Tenure, para criar um mecanismo para a contratação permanente de investigadores ao abrigo da carreira de investigação. 

A decisão vem de 2016, quando se aprovou o Decreto-Lei n.º 57, que transformou as coisas significativamente, e que foi também fruto de um governo minoritário do PS, que – sem maioria – era obrigado a negociar uma série de medidas, nomeadamente as que tinham a ver com o combate à precariedade.

E no caso dos investigadores, concretamente, esta lei veio estabelecer que um investigador doutorado não podia continuar com este vínculo precário, a bolsa, e que era preciso haver uma integração na carreira de investigação. A carreira de investigação existe tal como existe a carreira docente e de forma geral não é aplicada.

Nessa altura, com o ministro Manuel Heitor, o decreto-lei estabelece que estes trabalhadores seriam contratados através de um Concurso de Estímulo ao Emprego Científico, financiado pela FCT por 6 anos, para depois serem contratados pela instituição. Esta lei tinha vários problemas. Primeiro, as universidades dizem que não têm dinheiro para contratar estas pessoas, e portanto, só as iriam contratar se o governo decidisse que ia transferir para as universidades a verba necessária.

Segundo, este decreto-lei inventou uma posição de investigador júnior só para pagar menos do que o valor da primeira posição da carreira. Estes investigadores ficaram a receber mais do que recebiam enquanto bolseiros de investigação, mas foi imposta esta nova categoria. 

Terceiro, apenas as universidades públicas estavam obrigadas a contratar ao fim dos 6 anos. Portanto, todas as pessoas que estão a trabalhar em fundações ou instituições privadas sem fins lucrativos, não eram contempladas.

A grande manifestação surge no momento em que estes trabalhadores perceberam que não havia nenhuma solução real para este problema e que os seus contratos iam chegar ao fim. 

Foi a maior manifestação de sempre do sector, e obrigou a ministra a finalmente apresentar um programa que é o FCT Tenure e que está, mais uma vez, muito longe de ser um mecanismo eficaz para acabar com a precariedade na ciência.

O FCT-Tenure prevê 1000 lugares numa primeira fase e 400 numa segunda edição. Mas os que vão ver os seus contratos terminados agora são mais do dobro deste número. Além disso, há outro detalhe: as universidades podem contratar docentes ao abrigo deste programa. Ou seja, estes investigadores poderão ser contratados para a carreira docente ou para a carreira de investigação, consoante os perfis que cada instituição apresenta.

Embora a ministra tenha garantido 20 milhões de euros extra para financiar as universidades no sentido de incentivar as que contratassem especificamente para a carreira de investigação… existe uma certa resistência, mesmo do ponto de vista das universidades, em integrar nos seus quadros permanentes os investigadores que lá trabalham.

Existe muito essa perspectiva de que os investigadores devem começar a carreira e desenvolver-se enquanto profissionais num contexto de precariedade?

Sim, existe. E o que tem alguma graça é que a maior parte das pessoas que diz isto, o diz de uma posição de estabilidade. A ministra Elvira Fortunato, que aliás, iludiu muita gente da ciência, porque era a cientista com grandes projectos financiados que viria resolver os problemas do sector, uma pessoa com provas dadas na investigação, mas era a primeira a dizer que integrar os investigadores era matar a ciência. 

Pelo contrário, a ABIC considera que com estabilidade estes trabalhadores estarão em melhores condições para desenvolver as suas investigações e que até podem ter mais tempo e disponibilidade para concorrer a determinados fundos, os chamados financiamentos competitivos por exemplo.

A Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) tem vindo a desenvolver lutas pela defesa dos interesses dos bolseiros e contra a precariedade do emprego científico. Foto de arquivo. Créditos

A ABIC tem realizado uma série de plenários por todo o país. O objectivo é chegar a bolseiros em todas as instituições?

Sim, mas não é um objectivo novo, naturalmente. É a actividade normal da ABIC.

Precisamos de criar organização onde ela não existe e de quebrar um isolamento que é característico deste tipo de trabalho. Não podemos dizer que é igual em todas as áreas, porque há sítios em que os bolseiros efectivamente têm gabinetes e laboratórios e trabalham ao lado dos seus colegas. Mas o trabalho de investigação pode ser um trabalho bastante solitário e há muitas áreas em que as pessoas pura e simplesmente não se cruzam com outros colegas. 

Isto constitui uma dificuldade maior à nossa organização, bem como o facto de os bolseiros estarem nessa condição às vezes por pouco tempo, também fruto do Decreto-Lei n.º 57, o que acaba por ser uma consequência de muitos dos que eram bolseiros durante décadas terem passado a ser considerados trabalhadores e por isso passarem a organizar-se nos sindicatos do sector. 

A ABIC tem 21 anos e a luta dos investigadores bolseiros já conquistou muitas coisas ao longo destas duas décadas. Mas a ideia é crescer enquanto associação, rumo à extinção. O objetivo é a sua extinção mas, entretanto, enquanto não se acabar com o estatuto do bolseiro, a associação deve juntar todos aqueles que estejam disponíveis para contribuir para combater a precariedade.

Dando alguns exemplos, devemos conseguir envolver na ABIC todos os que estejam de acordo com o fim da taxa que temos que pagar para entregar a nossa tese de doutoramento, ou todos os que estejam de acordo que não podemos continuar a aceitar um regime de contribuições como o seguro social voluntário, que muito nos prejudica, ou todos os que queiram exigir às universidades que garantam a existência de gabinetes ou outros espaços físicos adequados para trabalhar.

Por outro lado, temos que pensar em conjunto qual é o propósito da ciência em Portugal: que ciência é que se quer fazer, e como é que deve ser assegurado o financiamento para que essa ciência se possa desenvolver. 

Porque produzir conhecimento para responder a perguntas que ainda não foram respondidas, tem a ver com aquilo que se quer tornar possível no nosso país, com os problemas que queremos ver resolvidos enquanto sociedade.

Esta não é uma reflexão apenas dos cientistas, evidentemente, mas os cientistas não podem estar alheados desta reflexão porque somos nós que estamos a desenvolver este trabalho.

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