Numa ação de rua de reivindicação de 1% do Orçamento de Estado para a Cultura, atores da Bonifrates de Coimbra eram Camões, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Natália Correia, e recitavam na Baixa da cidade poemas das figuras que representavam em agradecimento de cada assinatura no abaixo-assinado do Manifesto em Defesa da Cultura.
Ora espreitem: uma senhora abeirou-se da mesa a que sentava «Natália Correia» e disse-lhe «que pedir tão pouco é ser pobre a pedir». E assinou, juntando-se aos milhares de cidadãos que, por uma ou outra razão, o fizeram com gosto ao longo da tarde.
Dizer quando foi
Passos Coelho não se terá inteirado dos protestos desse 29 de setembro de 2012. Com razão – a sua visão da Cultura nunca foi muito além das habilidades exibidas em campanha eleitoral, em que «baritonava» umas larachas levemente operáticas. Coisas para risota, ou encantamento dos fiéis com a graça do líder.
É que, na substância, o circunstancial cantor nunca esteve muito longe da convicção salazarista de ser a Cultura coisa dos «alegres», aqueles que ficam para além da atividade económica, da pertinência política, da agenda da Humanidade.
Houve quem lhe tenha atirado com os números do peso das atividades da Cultura para o PIB nacional, mas nem isso o comoveu. Passos Coelho, assim como os governantes que oprecederam, atirou a Cultura para as malhas do «mercado», onde o artesanato do pensamento humano é facilmente esmagado pela indústria das emoções.
Naquela rua de atores e músicos, contudo, a Cultura atraía, naturais, as assinaturas para o papel. O que é importante é merecedor do maior cuidado, toda a gente estará de acordo, por isso não é de estranhar que a transeunte, que levou de agradecimento os versos de Ser Poeta, achasse que exigir 1%para o essencial fosse lutar por quase nada.
Alguém lhe terá explicado que o que se exigia era – pasme-se – dez vezes mais do que a verba inscrita em Orçamento do Estado, ao que a mulher respondeu com o sobrolho franzido com que se afastam os mentirosos. Reivindicar 1% era reivindicar quase tudo.
«Também neste setor, a chamada "crise" foi sendo o biombo que ocultou a elitização, a privatização e a mercantilização»
Cinco anos depois, no que se refere à defesa da Cultura, estamos quase na mesma. Por isso justifica-se, às portas de um novo Orçamento do Estado, o engrossamento do coro que reclama mais dinheiro mas, sobretudo, mais políticas de valorização da Cultura, democratizando o acesso, impulsionando a criação, estabilizando a vida dos trabalhadores da Cultura.
Também neste setor, a chamada «crise» foi sendo o biombo que ocultou a elitização, a privatização e a mercantilização. A Cultura passa hoje pelos discursos de palanque assumindo-se apenas mais uma área de atividade económica, centrada nas chamadas indústrias culturais, em que a livre e independente criação é substituída pela resposta da monocultura dominante.
Em todos os lugares da Cultura, da coletividade ao centro cultural, passando pela escola, a realidade é a da poupança, que é a maneira simpática de dizer desinvestimento. Nas traseiras do quintal do entretenimento, nos subsetores da cultura o investimento público caiu a pique; os cortes nos apoios às artes e os contínuos atrasos nos concursos levaram ao cancelamento (ou ao não lançamento) de eventos culturais e ao fecho de companhias.
Nos arquivos e nas bibliotecas, viver de quase nada significa não renovar, e na criação literária o tempo é de inibição acompanhada da concentração em grandes grupos da distribuição e edição, em resultado de uma política que privilegia os monopólios literários.
O Orçamento do Estado retirou-se do cinema, ficando os apoios à produção dependentes de uma taxa paga pelas empresas prestadoras de serviços de televisão. Nos museus, palácios e monumentos nacionais não se contrata ninguém, mas há quem se reforme sem que se possa proceder à «passagem de testemunho», um modo essencial de construção do conhecimento.
Esvazia-se de gente a tutela do Património Cultural, enfraquecendo a intervenção no terreno. O património abandona-se ou «turistifica-se» (o que, em alguns casos é uma e a mesma coisa), desembocando na degradação ou na privatização.
Nos setores da Cultura, o desemprego e a precariedade são regra alimentada por políticas de «fomento» que alimentam o alijar de responsabilidades e a recusa de soluções. O «problema» é que a cultura representa um potencial e um valor insubstituível de desenvolvimento, de libertação e emancipação individual, social e nacional.
Por isso é que falar de Cultura é falar de coisa pública, considerando que o Estado tem uma responsabilidade pública determinante enquanto garante de liberdade de criação artística e da sua fruição, de acesso e uso dos bens culturais, assumindo um papel que o mercado não desempenha nem pretende desempenhar. O que é diferente de municipalizar, a máscara que os governos vestem quando se trata de não tratar a Cultura como assunto nacional.
O associativismo também não tem escapado. Não se pretende, aqui, que recupere o papel essencial que foi o seu na resistência cultural ao fascismo, acolhendo e amplificando a voz de músicos, pensadores, poetas, atores, escritores, pintores, cineastas. Mas, pelo menos, que não se subestime o seu potencial de instrumento de democratização cultural, ainda que o agravamento das condições de vida dos trabalhadores seja determinante da indisponibilidade para o envolvimento associativo.
À porta do Orçamento do Estado para 2017 reivindica-se, de novo, 1% para a Cultura. Não se trata de ser pobre a pedir, como no lamento da subscritora do Manifesto. Trata-se do essencial para abrir caminho.
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