São já incontáveis as tentativas da Comissão Europeia em impor um acordo de livre comércio entre a União Europeia e os países do Mercosul. Em rigor, há mais de vinte anos que vai vegetando um acordo comercial com o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, os países do chamado Mercosul, que só não foi imposto até hoje, graças à luta dos agricultores europeus. Em junho de 2018 foi adotado um acordo de princípio, mas até à data o tratado não foi ratificado pelos 27 Estados-membros. A eleição de Lula relançou o processo em 2022 e presentemente, a União Europeia parece determinada a assinar o acordo até ao final do ano. O problema é que este acordo UE-Mercosul é profundamente assimétrico, sacrificando a agricultura europeia no altar do livre comércio internacional. Nem que para isso tenham de ser repudiadas todas as orientações políticas e técnicas em matéria de luta contra as alterações climáticas.
O tratado UE-Mercosul, na atual versão, representa o maior tratado de comércio livre jamais celebrado pela UE em termos de população envolvida (780 milhões de pessoas) e de volumes de comércio (entre 40 e 45 mil milhões de euros de importações e exportações). O acordo tem sido criticado por duas ordens de razão. Em primeiro lugar é profundamente assimétrico nos seus impactos. Prevê a entrada livre ou com taxas reduzidas de enormes contingentes de matérias-primas alimentares, com destaque para o milho, arroz, e carnes de suíno, bovino e aves. Em contrapartida, abre o mercado sul-americano aos produtos das principais indústrias europeias, com os automóveis à cabeça, mas também a indústria farmacêutica. Prevê igualmente um acesso facilitado aos mercados públicos para as grandes multinacionais (Veolia, Suez e outras). Representando uma bóia de salvamento para a indústria europeia de automóvel, poderá representar a ruína de milhares de agricultores e uma ameaça à soberania alimentar de muitos Estados-membros.
A segunda ordem de razão está relacionada com a incoerência do acordo e a sua incapacidade em garantir um mínimo de reciprocidade. Para além dos perigos económicos para os sectores sacrificados, este novo acordo é emblemático da dificuldade europeia em impor cláusulas e medidas de reciprocidade, e também da sua dificuldade em manter uma política ambiental coerente. Embora a UE reivindique justamente a sua vinculação aos acordos de Paris, permite, na prática com este acordo, que os fabricantes europeus continuem a produzir veículos com motor de combustão que a UE proibirá no seu solo, para os exportar para o Mercosul. Além disso, a UE concorda, de forma cínica, em importar carne produzida com grandes quantidades de emissões de GEE, mas que não serão registadas no contador europeu. Ao mesmo tempo que impõe um vasto conjunto de normas ambientais aos agricultores europeus, procurando assim garantir a sustentabilidade do setor, promove a importação massiva de produtos oriundos de países onde as práticas agrícolas são das mais intensivas do mundo!
«O problema é que este acordo UE-Mercosul é profundamente assimétrico, sacrificando a agricultura europeia no altar do livre comércio internacional. Nem que para isso tenham de ser repudiadas todas as orientações políticas e técnicas em matéria de luta contra as alterações climáticas.»
A Comissão Europeia procura passar a ideia de reciprocidade que, em teoria, impõe aos produtores do Mercosul os mesmos padrões sociais e ambientais. Todavia, este imperativo não tem condições para ser cumprido no Brasil, onde a fileira não está organizada para permitir a rastreabilidade por cabeça, o que torna difícil, senão impossível, saber com certeza a composição dos alimentos, a eventual incorporação de fatores de crescimento (proibidos na UE) e os tratamentos realizados durante a vida de um animal destinado à exportação.
A assinatura do acordo entre a União Europeia e os países do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia), na cimeira do Mercosul, que se realizou a 5 a 7 de dezembro, não implica a sua entrada imediata em vigor. Outras etapas são necessárias, o que poderá levar meses. O acordo, na sua atual versão, é rotulado como de «nova geração» e considerado de natureza «mista», segundo o jargão da Comissão Europeia. Nesta medida requer unanimidade no seio da União Europeia. Para resolver um anunciado impasse, com a discórdia francesa, a Comissão Europeia poderá separar a parte comercial do acordo, que requer apenas uma maioria qualificada no conselho (55 % dos Estados-nembros representando, no mínimo, 65 % da população total da UE). O governo português, fazendo jus à sua total subserviência à União Europeia, já aplaudiu o acordo. Veremos os desenvolvimentos, mas em todo o caso, confirma-se aqui, e mais uma vez, quem manda efetivamente na União Europeia.
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