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O círculo vicioso

Armar professores contra potenciais estudantes assassinos: é por aí que vamos?

A amarga verdade é a América está em guerra consigo mesma. Uma guerra civil que a consome por dentro e que causa cinco vezes mais mortes do que as guerras do Iraque e do Afeganistão juntas. A cultura americana de violência gera jovens mais agressivos. Os resultados estão à vista.

Manifestante segura cartaz em frente ao Capitólio estatal da Florida, em Tallahassee, a 21/02/2018, durante a marcha de protesto promovida por estudantes, pais e cidadãos de Parkland para promover alterações restritivas na legislação de acesso a armas de fogo, na sequência da morte de dezassete jovens, abatidos por um atirador no liceu Marjory Stoneman Douglas, a 14/02/2018.
CréditosEPA/Colin Abbey / Lusa

Os crimes e a National Rifle Association

Wayne LaPierre, dirigente da todo-poderosa NRA (National Rifle Association), referiu1, na sequência do novo massacre num liceu da Florida, e depois de ser pressionado por protestos contra a liberalização de venda de armas, em tom agressivo que «as elites [os que protestam] não se preocupam com o sistema de ensino americano nem com as crianças. O seu objectivo é eliminar a Segunda Emenda e as nossas liberdades em relação às armas, para que possam erradicar todas as liberdades individuais [sic!]».

Durante a Conservative Political Action Conference (CPAC), uma conferência de cariz conservador, LaPierre avisou também que existe uma «agenda socialista» por trás daqueles que querem mais controlo no que toca às armas e às leis sobre as mesmas. O direito às armas, frisa, é «garantido por Deus a todos os americanos como direito de nascença».

Acrescentou também que «os oportunistas não perderam um segundo para explorar a tragédia para ganho político», referindo-se mais uma vez ao massacre da Florida.

Em linha com a sugestão de Donald Trump de armar os professores «com treino militar», o líder da NRA disse que as «escolas têm de ser mais duras e o mal deve ser confrontado com toda a força necessária para proteger as crianças».

«Para parar uma pessoa má com uma arma é preciso uma pessoa boa com uma arma», disse LaPierre no fim do discurso, repetindo uma frase que já utilizou aquando do massacre de Sandy Hook, em Dezembro de 2012. Na mesma altura, Trump defendia a distribuição de armas aos professores para defenderem as escolas de alunos criminosos!...

O sofrimento transformou-se em raiva, era o título da edição online do Süddeutsche Zeitung do dia desta última tragédia da Florida, informando que estudantes, pais e professores da Florida se manifestaram por leis do armamento mais restritivas: «Basta, Basta!» e «Trump é uma vergonha». Em 19 de Fevereiro, a Spiegel online já falava sobre uma «rebelião de adolescentes». A chamada geração de Columbine (onde ocorreu o massacre numa escola em 1999) quer lutar e fazer algo com manifestações, com entrevistas de TV, com chamadas de protesto no Facebook, Twitter e Instagram.

Depois da inépcia revelada pelo FBI, que não tirou consequências da sinalização feita pelo jovem homicida do que poderia vir a fazer, e do acobardamento de um grupo de quatro polícias, que fugiu por estar insuficientemente armado (!), é de perguntar se este massacre da escola, com 17 mortos, não poderia ter sido evitado. Mas quem beneficiou com ele (Cui bono)? Esse crime poderia «pressionar» o presidente dos EUA a intensificar uma maior liberalização da venda de armas? Para já não, mas originou a grotesca intenção de distribuir armas aos professores!...

A Segunda Emenda

A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos, aprovada em 15 de Dezembro de 1791, estabeleceu, textualmente, que «sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido».

Protegeu, assim, o direito da população de, através de uma milícia, deter e ter porte de armas. Foi aprovada juntamente com as outras nove primeiras emendas constitucionais constantes da Carta dos Direitos dos Estados Unidos (em inglês, United States Bill of Rights)2 ou da Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos 3.

A Segunda Emenda baseou-se parcialmente no direito de ter armas e o seu porte, previsto na common-law da Inglaterra, e foi influenciada pela Declaração de Direitos de 1689, também inglesa. Esse direito foi descrito por Sir William Blackstone como um direito auxiliar, de apoio aos direitos naturais de autodefesa e resistência à opressão e ao dever cívico de agir colectivamente na defesa do Estado.

Em muitos estados federados norte-americanos, qualquer pessoa, independentemente da cor, raça ou credo, pode pedir e obter licença para a posse e o porte de armas sob algumas condições (ressalvando-se que cada estado tem também suas regras específicas). A arma em questão, quando transportada, deve ser visível e não deve conter munição no cano. A compra de armas por menores de idade é proibida, mas nem sempre. No seu uso durante a prática de caça, por exemplo, o menor pode usar armas, desde que esteja acompanhado pelos pais ou pessoa responsável.

Como várias outras emendas constitucionais, a Segunda Emenda é produto de um contexto, neste caso do da luta pela independência face ao império britânico que, mesmo depois da declaração da independência, atacou o novo país. A posse de armas pelas milícias era, então, considerada a única forma de os cidadãos defenderem o seu território.

Do sentido inicial evoluiu para um direito relacionado com a segurança pública, mesmo individual, que devia estar cometida às autoridades competentes como acontece noutros países.

A partir do século XIX, os tribunais dos Estados Unidos passaram a dar diferentes interpretações à Segunda Emenda, no sentido de proteger este entendimento.

Já no século XXI, a Segunda Emenda passou a ser objecto de renovado interesse académico, jurídico e político. A questão central é se o direito de porte de armas seria extensivo aos cidadãos individuais ou se seria limitado apenas às milícias (os actuais exércitos nacionais).

«As armas de fogo estão a roubar, implacavelmente, em média, as vidas de 33 880 habitantes por ano – quase cinco vezes mais que a soma dos soldados americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão (4530 e 2408, respectivamente)»

No caso do processo «Distrito de Columbia versus Heller» (2008) o Supremo Tribunal proferiu uma sentença histórica4, afirmando expressamente que a Segunda Emenda protege o direito individual de posse e porte de armas de fogo e, ao mesmo tempo, declarando inconstitucional a lei do Distrito de Columbia que vetava a posse de armamento aos residentes.

Assim ficou estabelecido o direito individual dos cidadãos dos Estados Unidos de se armarem, anulando-se a lei que, 32 anos antes, proibira que se tivesse em casa uma pistola para defesa pessoal na cidade de Washington. Todavia, no processo «McDonald versus Chicago» (2010), o Tribunal esclareceu as suas decisões anteriores, declarando expressamente que a decisão se aplicava não apenas ao governo federal, mas também, na mesma medida, aos governos estaduais e locais. A sentença deu uma interpretação definitiva à Segunda Emenda, que sancionou o direito de porte de armas, reconhecendo esse direito como inviolável, tal como acontece como o direito ao voto e a liberdade de expressão5.

Essa decisão continua em debate nos EUA, sendo continuamente alvo de discussões por parte de quem dela discorda – são cada vez mais pessoas a fazê-lo.

A pista esquecida

Na comunicação social e na internet discute-se sobre a origem de casos de assassinatos nas escolas. Com argumentos comprováveis cientificamente e outros perfeitamente inverosímeis.

Mas há sempre um dado ausente da controvérsia – como refere Carey Wedler 6 – que se pode encontrar repetido nos perfis dos autores dos vários assassínios: um número crescente de atiradores em massa tem vínculos com os militares, incluindo Nikolas Cruz, que era membro da organização de preparação militar da escola, a JROTC (corpo de treino de oficiais de reserva juniores).

«um número crescente de atiradores em massa tem vínculos com os militares, incluindo Nikolas Cruz, que era membro da organização de preparação militar da escola»

Carey Wedler, Global Research, 25/02/2018

Os Estados Unidos entregaram-se a uma cultura de militarismo «patriótico» durante décadas, glorificando essa violência institucionalizada como sinal de força e de boa moral. Como foi observado na semana passada, pouco depois do tiroteio da Florida, os norte-americanos guardam na memória aqueles que cometem violências em nome do governo e têm-nos na mais elevada estima enquanto criticam outros que expressam opiniões diferentes ou não se inclinam perante as pessoas que servem essas instituições.

Na verdade, essa glorificação da violência protege e estimula os indivíduos que cometem actos de violência em massa.

Os legisladores ainda não quiseram enfrentar a amarga verdade de que a América está em guerra consigo mesma. Uma guerra civil que a consome por dentro. As armas de fogo estão a roubar, implacavelmente, em média as vidas de 33 880 habitantes por ano – quase cinco vezes mais que a soma dos soldados americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão (4530 e 2408, respectivamente). Em média, 93 pessoas são mortas pela violência armada todos os dias, e pelo menos 239 tiroteios escolares ocorreram nos Estados Unidos desde 2012. A maioria das mais de 400 vítimas é de menores de dezanove anos. E, no entanto, depois de cada carnificina, ouvem-se os líderes políticos a sugerir que não é o momento certo para falar sobre leis de controlo de armas quando as famílias e os amigos das vítimas agonizam com a perda de seus entes queridos. Quando chegará o momento certo? Quanto mais sofrimento devem os cidadãos norte-americanos receber, antes que se actue em conformidade?

Para um entendimento da «geração Columbine»

Como qualquer outra designação da geração envolvida nestes massacres, esta, resultante da oportunidade jornalística do termo, não compromete o conjunto da necessária reflexão.

Pouco depois do último tiroteio no liceu de Portland, na Florida, um antigo oficial da CIA e do FBI, Philip Medd, especialista nestes casos, afirmou à CNN que este assassinato em massa não se deu por acidente, nem por azar, mas como consequência da inacção da América, que não pode aceitar passar por uma «epidemia de matanças em massa».

Referimos ainda trabalhos de outros psicólogos. Já de há muitos anos é sabido, com base em estudos científicos, que os comportamentos agressivos e violentos, tal como outros comportamentos humanos, devem ser entendidos não como inatos mas como como resultantes de relações sociais. Os cientistas norte-americanos Albert Bandura e Richard Walters7  referiam, nas suas investigações, que as crianças imitavam pais, irmãos e amigos de brincadeiras. E assim como adquiriam competências cognitivas e sociais, ganhavam comportamentos agressivos logo nos primeiros anos de vida. É uma aprendizagem feita a partir do que são os seus modelos de referência.

Esta influência dos modelos é tão forte que até as crianças sem predisposição para a violência assumem o comportamento agressivo dos modelos que seguem. Com esta explicação, certas teorias de agressão (hipótese de um comportamento agressivo, hipótese da frustração de agressão) e outras teorias acabaram por ser refutadas.

Ao procurar as causas do aumento da violência juvenil, é importante destacar o papel do universo mediático, especialmente a violência nos computadores e os videojogos. Tem-se verificado que os produtos cada vez mais brutais de TV e os jogos violentos contribuem significativamente para o desenvolvimento da delinquência infantil e juvenil e para o aumento da violência juvenil.

Videojogos violentos e os «jogos assassinos» de computador têm sido disponibilizados com grandes recursos publicitários aos jovens de todo o mundo desde o início da década de 90 pela indústria de jogos, com valores de vários milhares de milhões de dólares, como entretenimento e como «diversão pelo jogo». São produzidos em cooperação com o Pentágono. O psicólogo militar norte-americano, internacionalmente reconhecido, coronel Dave Grossman, especialista em psicologia da matança, descreve estes jogos de violência como «simuladores de assassínios em massa».

«Videojogos violentos (...) têm sido disponibilizados (...) aos jovens (...). São produzidos em cooperação com o Pentágono. (...) Dave Grossman, especialista em psicologia da matança, descreve estes jogos de violência como "simuladores de assassínios em massa"»

O psicólogo alemão Rudölf Hansel, perito em prevenção de violência juvenil, de Lindau, na Alemanha, sublinhou que, apesar das investigações sobre o impacto do universo mediático ter eliminado, já há muitos anos, as últimas dúvidas e conduzido a provas conclusivas de que o uso de videojogos violentos produz filhos mais agressivos e menos tolerantes - independentemente da idade, género ou contexto cultural - o lobby do sector de filmes e jogos, em associação com jornalistas, políticos e cientistas, conseguiu, ao longo da última década, desestabilizar pais, professores e educadores, com declarações falsas e questionando os sólidos resultados das investigações8.

A Rudölf Hansel não escapou a profecia do ex-presidente norte-americano Reagan na década de 1980: «Recentemente ouvi algo interessante sobre jogos de vídeo. Muitos jovens desenvolveram destreza incrível nas mãos, olhos e na coordenação do cérebro nestes jogos. A Força Aérea acredita que essas crianças serão pilotos excepcionalmente bons quando pilotarem os nossos jactos»...

Voltando a Dave Grossman, no seu livro de 1999, Stop Teaching our Kids to Kill (disponível na Amazon) refere:

«Há três coisas que são necessárias para atirar e matar de forma eficaz e eficiente, disse um veterano da guerra do Vietname a um jovem de onze anos em Jonesboro. Qualquer pessoa que não preencha as três falhará nos esforços para matar alguém. Primeiro, é necessária uma arma. Depois a capacidade para atingir o alvo com a arma. E, finalmente, ter vontade de usar essa arma. A arma, a capacidade e a vontade. Destes três factores, os militares sabem que os simuladores da morte tratam de dois: a capacidade e a vontade para matar um ser humano»9.

O resultado amargo deste treino para o assassinato são as crianças e adolescentes que disparam sobre irmãos, pais, seus colegas de escola e professores. Numa personalidade narcisista, isso é geralmente provocado por supostos insultos, rejeições e interpretações negativas de acontecimentos. O sentimento de estar certo e restaurar a justiça também desempenha um papel10. Se o jovem tiver uma arma disponível, essa agressão narcisista transforma-se em assassinato em massa com muitas mortes - como aconteceu recentemente na Florida.

Além do uso excessivo de jogos de violência, um outro factor é também responsável por crimes como tiroteios na escola: os adultos não estão suficientemente presentes na vida de crianças e adolescentes. A sua atenção para com eles são de grande importância para o desenvolvimento na infância e na adolescência.

Se os adultos não estão presentes na vida dos adolescentes, também não lhe podem ensinar valores de adultos, como autoconfiança, autodisciplina, cortesia, respeito mútuo, paciência, generosidade e empatia com os outros. As investigações empíricas sobre «tiroteios escolares» nos EUA revelam fortes evidências da ausência de aconselhamento e orientação de adultos e especialmente por parte dos pais11.

Quem conhece as escolas e os seus alunos deveria conhecer os hábitos de uso de redes sociais, videojogos e consumo de filmes de violência, os respectivos ambientes familiares por detrás dos comportamentos violentos e das más classificações escolares. E disso sinalizar as autoridades competentes nos planos educativo, social e de segurança. Uma nova função do professor?

  • 1. Diário de Notícias, 22/02/2018.
  • 2. Primary Documents in American History: The Bill of Rights. The Library of Congress.
  • 3. The Bill of Rights (texto original e texto actual, em inglês).
  • 4. CRS Report for Congress «District of Columbia v. Heller: The Supreme Court and the Second Amendment». Congressional Research Service T. J. Halsted, Legislative Attorney, American Law Division. Order Code RL34446. 11/04/2008.
  • 5. Liptak, Adam (28/06/2010). «Justices Extend Firearm Rights in 5-to-4 Ruling». The New York Times, 17/12/2012
  • 6. Carey Wedler, Global Research, 25/02/2018.
  • 7. Maclennan, B., «Adolescent Aggression by Albert Bandura and Richard H. Walters», International Journal of Group Psychotherapy, 1961, 11(1), p. 94. Para procurar a obra recenseada, há muito esgotada, considerar: Bandura, A.; Walters, R. (1959), Adolescent aggression; a study of the influence of child-training practices and family interrelationships, New York: Ronald Press.
  • 8. Rudölf Nansel, Global Research, 23/02/2018.
  • 9. Grossman, D.; DeGaetano, G. (2002). Wer hat unseren Kindern das Töten beigebracht? Ein Aufruf gegen Gewalt in Fernsehen, Film und Computerspielen, Stuttgart, p. 86. Disponível a edição original, em inglês, na sua mais recente edição: Stop Teaching Our Kids to Kill: A Call to Action Against TV, Movie & Video Game Violence, Harmony (2014).
  • 10. Füllgrabe, U. «Gewaltförderung durch falsche Paradigmen», reportpsychologie 1/2007, p. 12-27.
  • 11. Schneider, H. J. «Delinquenz Jugendlicher», Kriminalistik 4/2000, p. 26.

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