Veremos, é claro, no que dá, mas desta vez já foi diferente. A 14 de Fevereiro, um ex-aluno de 19 anos entrou na Escola Secundária Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, na Florida, armado com uma espingarda semi-automática (uma AK-15) adquirida legalmente um ano antes e, em apenas seis minutos de tiroteio, matou 17 alunos e funcionários e feriu algumas dezenas mais, 14 dos quais foram levados para o hospital. Depois, foi a pé para um McDonald’s, tendo sido detido na rua pela polícia menos de duas horas após a chacina.
A AK-15 foi uma das 24 armas do atirador que, em Outubro passado, matou 58 pessoas e feriu 851, após disparar do seu quarto de hotel sobre a assistência de um concerto, em Las Vegas. Tornou-se o maior massacre por um atirador, nos EUA, desde o ocorrido em Orlando, no ano imediatamente anterior (50 mortos).
150 000
crianças já sofreram com tiroteios em escolas
No seu rescaldo, renovou-se o debate sobre o controle de armas, a possibilidade de rever o sistema de verificação de antecedentes e de banir carregadores com mais de 10 rodadas de munição ou bumpstocks (que permite a armas semi-automáticas ganhar a velocidade de disparo de armas automáticas). Mas nada de consequente foi aprovado no Congresso. Mais uma vez. Assim foi depois de vários outros incidentes. Um reacender de discussão, poucas ou nenhumas alterações legislativas.
Mesmo as excepções demoram o seu tempo e são limitadas e temporárias. Uma proposta para banir armas de assalto – algo apoiado pela grande maioria dos Estadunidenses – foi introduzida no Senado após em 1989, em Stockton, na Califórnia, um atirador munido de uma espingarda de assalto (AK-47) ter morto cinco crianças e ferido outras 29 num recreio escolar. A proposta foi chumbada, mas reavivada em 1993 após dois massacres seguidos. A lei, aprovada em 1994, bania 18 modelos de armas de assalto e carregadores de grande capacidade. A lei teve impacto: o número de mortes em massacres diminuiu entre 1994 e 2004 (a violência com armas em geral não foi afectada, mas esse fim maior não era o objectivo específico da lei). Mas depois, em 2004, a lei expirou e não foi renovada, e este número voltou a aumentar para níveis superiores aos anteriores à lei.
#NeverAgain: os estudantes fazem ouvir-se
Estima-se que mais de 150 mil crianças tenham vivido um tiroteio na sua escola. Em Parkland, um adolescente que ainda não tem idade legal para comprar bebidas alcoólicas cometeu um massacre com uma arma de guerra comprada legalmente.
«Mobilizando-se em comícios, falando aos colegas e à população, organizando-se, fazendo uso das redes sociais (#NeverAgain) e depois ganhando a atenção dos media, dezenas de estudantes eloquentes e contundentes confrontaram, pelas suas próprias vozes, políticos e defensores da posse de armas, com fortes argumentos e firme convicção»
O rescaldo de mais este incidente poderia ter sido nova ronda de lamentos e discussão estéril, se não fosse a reacção dos estudantes da escola (e depois muitos outros, no estado e pelos EUA) exigindo mudança, medidas concretas que impedissem novos massacres em escolas, que lhes permitissem ir aprender sem temer pela vida.
Mobilizando-se em comícios, falando aos colegas e à população, organizando-se, fazendo uso das redes sociais (#NeverAgain) e depois ganhando a atenção dos media, dezenas de estudantes eloquentes e contundentes confrontaram, pelas suas próprias vozes, políticos e defensores da posse de armas, com fortes argumentos e firme convicção, ignorando a lenga-lenga habitual nestes rescaldos, de que o discurso público não deve ser inflamado e divisivo (leia-se, não se deve discutir a questão da posse de armas, ou medidas mais específicas de banir certas armas ou modificações), mas sim de comiseração e luto; que os jovens não deveriam falar, mas ser protegidos da exposição pública, etc.
Num encontro público, transmitido em directo pela CNN, na Florida, os apupos e gritos às afirmações do senador Marco Rubio e à porta voz da Associação Nacional de Rifles (NRA) foram claros: queremos menos armas.
A resolução e capacidade dos jovens de Parkland causou uma onda de admiração e respeito, mas também de alguma vergonha escondida por parte dos que nada fizeram, assim como de medo entre políticos face à opinião pública, e entre empresas que têm contribuído financeiramente para a NRA. Várias empresas, que davam descontos e linhas de crédito aos membros da NRA, cortaram as suas ligações, acto que a NRA descreveu como «uma exibição de cobardia política e cívica» (!). As linhas aéreas da Delta e United Airlines afirmaram no fim de semana passado que não iriam dar descontos nas viagens para a conferência da NRA este Maio, em Dallas. O governador do estado da Geórgia, onde a Delta está sediada, disse que caso a empresa não reconsiderasse deixaria de a apoiar com benefícios fiscais.
Da retórica violenta aos actos violentos vai um passo
Uma reacção particularmente revoltante foi alegar que o movimento dos estudantes tinha sido promovido por grupos liberais, com dinheiros de Soros, que os estudantes mais destacados eram actores pagos. Apesar de facilmente desmentida, a ideia ganhou ascendente nas redes sociais e chegou à boca de alguns políticos.
O incidente veio demonstrar, mais uma vez, que visibilidade nas redes sociais não reflecte veracidade, e serve de alerta para que partilhar uma falsidade, mesmo que para a refutar e criticar, acaba por reforçar a sua visibilidade, havendo mesmo algumas falsidades que ascendem sobretudo devido às críticas.
Este clima pernicioso de «pós-verdade» permite também facilmente desvalorizar informação genuína. Por exemplo, o atirador de Parkland tinha uma conta de Instagram, entretanto apagada, onde na sua foto de perfil se via uma cara tapada com o chapéu vermelho da campanha presidencial do Trump, dizendo «Façamos a América Grande de Novo» («Make America Great Again», ou MAGA). Defensores de Trump rapidamente espalharam que se tratava de um perfil falso.
Não convinha que, mais uma vez, se verificasse que actos violentos fossem associados a defensores do presidente... A conta porém foi verificada como autêntica, e possuía vários sinais, que juntamente com outros elementos, deveriam ter servido de alerta.
Mas o problema é bem mais vasto que os contornos particulares deste atirador (incluindo questões de saúde mental) e logo o ênfase que a NRA pretende dar, estreitando o debate, ao processo de verificação de antecedentes.
Como muito bem apontam os estudantes, o que importa é banir a posse de armas de guerra. Ponto. Trump foi forçado a abordar a questão, mas tem considerado poucas soluções concretas. A que mais verbalizou, munir 20% dos professores (cerca de 700 mil) com armas, tem sido largamente criticada como medida inconsequente, até perigosa, e lesiva da função lectiva.
Mas a questão da violência por armas vai muito além das escolas (estimam-se cerca de 150 mil sobreviventes de massacres), mesmo a violência às crianças e jovens. Nos EUA, em cada dia, são baleadas duas dezenas de crianças (uma por hora) 93 pessoas são mortas. A vida de milhões de crianças é marcada pela presença de tiros e vítimas, e pela ameaça de violência causada por armas de fogo nos seus bairros.
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